Cultura

Filosofia e hermenêutica da literatura angolana

Luís Kandjimbo |*

Escritor

Nas últimas semanas, por força dos condicionalismos da pandemia que nos assola, animei um debate com estudantes e professores de doutoramento da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. E no Brasil, proferi uma palestra destinada a estudantes e investigadores brasileiros da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte que estiveram reunidos num colóquio virtual sobre literaturas de língua portuguesa.

09/05/2021  Última atualização 14H37
© Fotografia por: DR
Parti da premissa segundo a qual existe uma tradição filosófica africana antiga que remonta ao egipto faraónico. O debate sobre a Filosofia Africana que durante a segunda metade do século XX mobilizou a comunidade de filósofos contemporâneos provou isso. Isto é, a existência de (1) problemas; (2) tematização e pensamento elaborado; (3) métodos; (4) relações genéticas entre o continente africano e suas diásporas.

O título da minha proposta de conversa permite identificar desde logo uma unidade morfológica copulativa que é o conector dos dois substantivos a que se junta o determinativo ou genitivo. Assim, o enunciado "Filosofia e Hermenêutica da Literatura” remete para um campo de duas disciplinas, a Filosofia, por um lado, e a Hermenêutica, por outro lado. Ambas tematizam problemáticas de uma prática, uma instituição e um objecto do saber, a Literatura.

Mas é o lugar de origem desse objecto do saber que vai determinar a sua qualificação enquanto Literatura Angolana. Longe de qualquer determinismo, o lugar e o espaço constituem deste modo importantes categorias analíticas, tendo em conta apenas a experiência humana associada aos lugares que o território angolano conforma, à luz de uma antropologia filosófica. Tal como outras disciplinas, Filosofia e Hermenêutica são unidades de classificação do conhecimento, articuladas a princípios que obedecem aos condicionalismos institucionais do ensino, às realidades históricas e culturais. Elas estão na base do surgimento de comunidade disciplinar, a comunidade de escritores filósofos e filósofos da literatura.

Na história da filosofia ocidental, uma referência à comunidade de escritores filósofos e filósofos da literatura traz à conversa a célebre "querela entre a filosofia e a literatura”. Como se sabe, Platão preocupava-se com as reivindicações de sabedoria por parte dos poetas. Foi ele e o seu mestre, Sócrates, que deram início à referida "querela”. Em certo trecho do seu livro "A República”, lê-se: "Acrescentemos ainda (...) que é antiga a querela entre a filosofia e a poesia.” (República,607b).

Para que os filósofos tivessem notoriedade, Platão defendia a marginalização dos poetas, tornando inacessível o reino da filosofia para que a poesia não prosperasse. Foi  Aristóteles, seu discípulo,  que desqualificou a importância da "querela”, afirmando o seguinte: "Portanto, a poesia é mais filosófica e tem um carácter mais elevado do que a História. É que a poesia expressa o universal, a História o particular.” (1451b6). Por isso, na tradição filosófica ocidental, Aristóteles é considerado o "pai da filosofia da literatura”.

Filosofia da Literatura
Na Europa do século XVIII, a Filosofia da Literatura não era ainda um domínio da estética. A problematização acerca da importância filosófica da literatura começa nos séculos que se seguem. No século XX, a filosofia da literatura na Europa tem o seu suporte em diversos paradigmas teóricos: 1) marxismo e teoria crítica; 2) fenomenologia; 3) hermenêutica; 4) existencialismo; 5) estruturalismo; 6) teoria psicanalítica; 7) pós-estruturalismo; 8) teorias pós-coloniais.

A filosofia da literatura é um ramo da filosofia. Caracteriza-se especialmente pelo tratamento filosófico das questões suscitadas pela literatura. Alguns autores admitem mesmo que a filosofia da literatura  é um sub-ramo da estética. O seu centro de gravidade reside na seguinte questão: O que é arte verbal? A análise de conceitos críticos e o estudo  da literatura enquanto fenómeno são outras das suas derivações. Assim, o estatuto ontológico de uma obra literária e dos mundos possíveis na ficção são alguns dos problemas com que se ocupam os filósofos da literatura.

A presente proposta de conversa pretende ser uma reflexão sobre a crise das teorias literárias,  apontando para a legitimidade de filosofias das literaturas africanas e, por conseguinte, de uma filosofia da literatura angolana. Por essa razão, a sua prática,  disciplinarização e problemáticas inscrevem-se no campo das filosofias africanas. Embora se saiba que os fundamentos da filosofia africana foram lançados por escritores, tais como Aimé Césaire e Léopold Senghor, através do movimento da negritude na década de 40 do século XIX, a verdade é que as relações genéticas entre a filosofia e as literaturas africanas não têm sido suficientemente exploradas. As correntes da filosofia africana têm negligenciado a importância das obras literárias na construção do pensamento africano. Isso manifesta-se com a ausência do seu reconhecimento como disciplina nos cursos e departamentos de filosofia das universidades africanas. Na pior das hipóteses, integra a oferta curricular dos cursos apenas como disciplina optativa.

Crise da teoria da Literatura
Na sua formulação nominal, enquanto disciplina, a "teoria da literatura”, surge no espaço institucional académico norte-americano em 1949, quando René Wellek e Austin Warren publicam a obra "Teoria da Literatura”. Durante as décadas de 70 e 80 do século XX, a teoria da literatura revelou-se imperial no campo dos estudos literários, ao extremo de ter adquirido um estatuto que não podia ter. Apesar da sua relação com a filosofia da literatura, a teoria da literatura não é uma filosofia da literatura. Este é o ponto de vista do francês Antoine Compagnon.

Na verdade, nunca existiu "a teoria da literatura” como se fosse única e universal, porque a pergunta "O que é literatura?” suscita diferentes respostas. Existiram sempre "teorias da literatura” mesmo em situações de carácter potencial, sem ser uma realidade. Para o caso de África, chega-se facilmente a esta conclusão, quando se lêem obras que veiculam propostas  teóricas e críticas  de autores africanos, tais como Abiola Irele (1936-2017), Chidi Amuta, George Ngal ou a antologia de crítica e teoria das literaturas africanas, organizada por Ato Quayson e Tejumola Olanyan (1959-2019).

Para todos os efeitos, a "teoria da literatura” não pode dar respostas aos problemas de natureza filosófica que as literaturas africanas levantam. De modo que na Europa tal sintoma deu origem ao reconhecimento da crise com o anúncio do "fim da teoria da literatura”. É o que pretendeu fazer o noruegês Stein Haugom Olsen, ao considerar, em livro com título apocalíptico, que a "teoria da literatura” é não só impossível, mas também desnecessária,  indesejável. Outros como Antoine Compagnon, descreveram-na como um "demónio”.

A Filosofia da literatura, um ramo que se autonomiza no campo institucional na filosofia analítica ortodoxa euro-americana, tem vindo a distinguir-se pelo seu objecto de estudo que consiste em examinar conceitos, convenções e práticas produzidas a partir de um centro de gravidade definido pelo conceito de literatura e texto literário. Mas, é necessário avaliar os argumentos que caracterizam o monismo e o pluralismo das alternativas propostas, a partir de contra-exemplos das filosofias e das literaturas não-ocidentais, podendo assim ser afastado o espectro do sectarismo filosófico.

É necessário admitir a existência de outras Humanidades, na medida em que a investigação das Literaturas Africanas supõe uma epistemologia disciplinar que se ocupe de problemas específicos, para lá da bipolaridade subjacente aos debates entre o monismo e o pluralismo. Por essa razão, o poder explicativo dos conceitos analítico de literatura não pode ser generalizado, desde logo por estar vinculada às tradições ocidentais. Trata-se de um conceito de fraca validade argumentativa e reduzido alcance. Se operarmos com a noção de textualidade literária constituindo-a como centro gravitacional da problemática, admitimos que a construção de uma "ordem do texto” em África supõe um universo de referentes que englobam o texto literário oral e comunidades interpretativas da "razão oral”.

Portanto, uma filosofia da literatura angolana introduz a possibilidade de uma hermenêutica literária, tendo em conta a relação interdisciplinar que esta pode estabelecer com outras disciplinas humanísticas. De resto, a sua presença tem conduzido a reivindicações que se julgam legítimas segundo as quais o exercício da crítica literária exige um "método” ou "teoria” que deve identificar-se com o ponto central da hermenêutica, isto é, os processos de "compreensão”, especificamente adequados à marca humana que impregna uma obra e seu "significado”. Mas a avaliação dos fundamentos filosóficos da hermenêutica para a interpretação literária em determinadas comunidades académicas dos Estados Unidos da América, por exemplo, tem permitido constatar a ausência da consciência histórica que parece ser um verdadeiro "problema crítico”. Razões como estas sustentam os apelos para a renovação da hermenêutica literária que se deve dotar de instrumentos apropriados.

A necessidade de delimitar a hermenêutica literária e definir os termos da sua  autonomização constitui a problemática sobre a qual o congolês-democrata Okolo Okonda W’oleko reflecte, considerando que a elaboração de qualquer teoria geral da hermenêutica, entendida como teoria da interpretação do sentido, revela a existência hermenêutica de tradições particulares. Por isso, é defensável a exploração de "hermenêuticas africanas” insuficientemente teorizadas.
A este propósito, tem relevância assinalar a génese do pensamento filosófico-literário angolano. Foi o escritor Joaquim Dias Cordeiro da Matta que pela primeira vez enunciou a ideia de uma filosofia da literatura e correspondente hermenêutica com o seu livro publicado em 1891 cujo título é por si só eloquente: "Filosofia Popular em Provérbios Angolenses”.

Na "Nota preambular” do livro, revela um profunda preocupação com a construção de uma literatura angolana (a literatura dos angolenses), ao inscrever um sumário em que se pode ler: "Importância dos provérbios angolenses. - Origem dos provérbios e seu emprego e aplicação na antiguidade. - Seu valor filosófico. - Como coleccionamos estes provérbios e ortografia que neles adoptámos. - Como João de Pinho considera os seus patrícios. - Sua ortografia na língua vernácula. - Necessidade de Angola ter uma literatura sua. - Como os angolenses a devem desenvolver. - O que é a literatura dum povo.”

 * Ensaísta e professor
universitário

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