Opinião

Foi pena que tivesse chovido no Huambo

Choveu no Huambo e caíram por terra todos os receios de uma praga que terá sido lançada pelo Rei do Bailundo por causa da sua condenação.

22/02/2021  Última atualização 07H37
Verdade ou mentira, dois meses sem chuvas foram o suficiente para que o temor se instalasse e dominasse milhares de conversas, o que quer dizer que, de um modo geral, acreditamos que as autoridades tradicionais tenham realmente uma relação com o divino e com o sobrenatural, capaz de aliviar os tempos de estiagem; os males do feitiço e coisas do género.

O alívio sentido com a chuva demonstra a hipocrisia dos nossos tempos, em que, por um lado, alguns desvalorizam publicamente a realidade social, política e cultural das nossas comunidades e seus líderes tradicionais e, por outro, mantêm na intimidade as crenças tradicionais herdadas dos seus ancestrais. Não sejamos, no entanto, ingénuos: essa pressão sobre o cidadão originário das comunidades africanas do nosso país é feita por grupos da sociedade (escola, igreja, imprensa e lobbies culturais), que se esforçam por desvalorizar as tradições africanas, que as vêem como inferiores, incultas e incivilizadas.

Vivemos uma identidade de fachada, em que nos queremos todos comportar como se fossemos descendentes de europeus, portanto não vinculados às tradições africanas, mas depois nos socorremos dos quimbandas, acreditamos no komba-o-ditokua (cerimónia de evocação aos falecidos para protecção dos vivos), casamento e justiça tradicionais e até há quem reclame o direito de manter a prática de "lundular” (quando o homem é obrigado a "casar-se” com a irmã, sobrinha ou prima da finada esposa ou, no caso feminino, juntar-se ao cunhado, sobrinho ou primo do finado).

É essa identidade de fachada que alimenta vários estereótipos do nosso dia a dia, donde sobressai, infelizmente, a ideia de uma hierarquização cultural do que é europeu sobre o africano, em quase todos os aspectos da vida pública. As nossas referências cognitivas, estéticas e culturais são ocidentais e o nosso próprio olhar para as comunidades e ancestralidade tradicionais é baseada no olhar ocidental, marcado pela diferenciação entre a ciência/sabedoria e não ciência/ignorância. A religião, a escola e a política continuam a ser os grandes pilares de uma cultura ocidental "colonizadora”, que afasta as experiências e vivências das autoridades tradicionais e teima em não aceitar que muitos dos costumes das comunidades também sejam fontes do direito e exemplos de boas práticas para a actual governação.

Nesse aspecto, foi pena ter chovido no Huambo. Tudo volta ao fingimento de sempre e o legislador ordinário vai continuar a não ver as autoridades tradicionais como representantes das comunidades e elementos de ligação com a ancestralidade e identidade cultural de cada um dos povos que integram o nosso país.
Não se entende que dez anos passados de CRA nenhuma lei ordinária permita que as de-cisões tomadas por autoridades tradicionais sejam reconhecidas pelo Estado, salvo nos casos muito específicos com interesse particular dos "civilizados”, como, por exemplo, o testemunho para obtenção de cartões de eleitor ou para a mudança de titularidade de terras comunitárias.

É esse preconceito civilizacional que leva o Estado a reconhecer o casamento religioso, feito por igrejas de inspiração ocidental, mas a não admitir sequer a possibilidade de fazer o mesmo com o casamento tradicional, praticado em muito maior número, em quase todas as comunidades e que é, diga-se, aquele que mais honra os cônjuges perante as suas comunidades tradicionais. Assim, também se explica que as autoridades tradicionais tenham competência para testemunhar a nacionalidade de um adulto, mas estejam inabilitadas a efectuar registos de nascimento de crianças.

Poucos repararam no facto de, enquanto os "civilizados” mantinham na praça pública uma acesa troca de acusações, as autoridades tradicionais do Moxico, Lunda-Sul e Lunda-Norte reuniram-se em am-biente de concórdia e enviaram três mensagens ao país: primeiro, a sua inteira legitimidade da representação das comunidades; segundo, a sua disponibilidade para a intermediação da relação dos cidadãos com as autoridades e, em terceiro, a sua condenação aos actos de violência e à instrumentalização política dos problemas sociais de Cafunfo.

Os mecanismos tradicionais de resolução de conflitos e de conciliação familiar sempre funcionaram. A escola e a sociedade é que têm sido incapazes de aproveitar os seus ensinamentos. Pelo contrário, a intromissão do Estado levou, por exemplo, ao enfraquecimento dos mecanismos familiares tradicionais, tentando que estranhos à família façam o papel culturalmente reservado aos tios, padrinhos e conselheiros familiares.

O mesmo ocorre ao nível político, que em vez da adopção de modelos de consulta, tolerância e linguagem dos makotas, querem impor-nos a violência verbal ocidental, o insulto e o desrespeito aos mais velhos. Foi pena que tivesse chovido no Huambo. Assim, tudo volta ao normal e continuaremos a ser essa sociedade de brandos costumes ocidentais, plantada no coração da África Negra.

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