Opinião

Gostar do que é nosso

Luciano Rocha

Jornalista

O hábito de consumir o que é produzido no país, por razões diversas, vai levar mais tempo do que o desejável, embora possa ser encurtado, pelo menos em alguns casos, desde que haja fiscalização constante e verdadeira.

29/04/2021  Última atualização 10H11
O consumo do que é produzido cá dentro depende, essencialmente, da qualidade e do preço de venda ao consumidor, que recorre, maioritariamente, ao "mais em conta”, principalmente se estiver à vista e for mais conhecido. Ora, neste último caso, o nacional perde preferência, designadamente nas superfícies de vendas de artigos alimentares e outros de consumo caseiro. Porquê? Por serem descaradamente depreciados por quem os vende. Como? Privilegiando, em termos de exposição, o que é estrangeiro, que, ainda por cima, chega a ser mais barato. Neste tempo de lufa-lufa, principalmente nas grandes cidades, que se sai do trabalho a correr, na esperança de evitar engarrafamentos para chegar a casa a horas de fazer o jantar, nas idas às lojas para comprar "coisas de última hora”, leva-se o que estiver mais à mão.

O apelo, entre nós, ao consumo do que é estrangeiro salta à vista em qualquer superfície de artigos de mercearia: café, enlatados, frutas, guloseimas, tudo importado. Não raro águas que, após muitas insistência, quase rogos, de quem compra, às vezes é retirada do armazém, onde aguardava por tempo para ser arrumada na geleira ou prateleira; até o jindungo pequenino, que noutros anos chamavam do kimbundu, é mandado vir,da estranja, seco e empacotado. Nem nossos quitutes, de fazer recuar memórias de meninice, de fisga no bolso, e fruta, colhida nos paus, na boca, aparecerem e quando "dão o ar de graça” fazem-no em embalagens minúsculas, que custam "os olhos da cara”. A fuba -de bombô ou milho - também rareia. É mais fácil encontrar bacalhau oriundo de gélidas águas de vikings e vizinhos de esquimós, do que garoupa ou corvina secas. O azeite doce, de tantas marcas e origens, é adquirido facilmente, enquanto o de palma parece ter passagem barrada em cada vez mais portas.

O incentivo ao consumo do que é feito em Angola não pode ficar pelos apelos ao incentivo, tem de estender-se à fiscalização rigorosa, desde as fábricas, fazendas e lavras ao vendedor, de forma a evitar falcatruas, compadrios, que afectam, no imediato, o consumidor, mas que se alastram ao todo nacional, cujos efeitos continuamos - sabe-se lá até quando - a pagar diariamente, com juros.
O que se passa, a nível de venda de produtos do quotidiano das famílias, estende-se. de certo modo, à restauração. Também aqui, o apelo ao consumo do produzido em Angola deve funcionar.
Os pratos da nossa culinária - tantos e tão variados, de Cabinda ao Cunene, do Mar ao Leste - devem começar a ser servidos diariamente, a todas as refeições. Sem prejuízo de outras emendas. Até ao matabicho, almoço, lanche, jantar, quando a pandemia que vivemos for debelada. A nossa gastronomia, tão vasta e diversa, deve, também ela, contribuir para a diversificação da nossa economia esfrangalhada que foi por quem a pôs de parte por entender que isso era sinal de evolução social, quando revelava, exactamente, o contrário. Nenhum povo se afirma, renegando hábitos ancestrais. É assim com a música, artes plásticas, literatura, línguas, falares. Todas juntas, características de nossas diferenças que nos unem, fazem a História que continuamos a escrever ao minuto.

O hábito de consumir o que fazemos não é, nem pode ser, obrigação decretada, é apelo à consciência de cada qual. Por isso vai levar mais tempo do que se possa imaginar. Requer alterações de mentalidade. Que, sabe-se, não é fácil, nem se consegue com malabarismos, sequer varinha mágica. Para começar, aprendamos - ou reaprendamos? - a gostar de nós e do que é nosso.

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