Opinião

Heróis modernos

Jacques dos Santos

Escritor

No dia 2 de Fevereiro de 1995, assinava neste Jornal e nesta mesma coluna, uma crónica à qual dei o título de “Os heróis e os outros”. Falei então dos verdadeiros heróis e dos outros que pretendiam a designação. Referi o facto de terem passado vinte anos sobre a data da independência nacional e que, apesar das duas décadas dobradas naquela altura, pouco ou nada de palpável se registava no país, em termos de desenvolvimento

28/03/2021  Última atualização 11H23
Abordei nessa peça o heroísmo dos que, desde o início, lutaram de armas nas mãos e tornaram possível a realização do sonho de liberdade. Onde cabia o desenvolver da terra, fazendo dos angolanos pessoas verdadeiramente felizes. Ficariam para resolver coisas aparentemente mais simples, como a questão das estrofes do hino e as cores da bandeira. Mas havia a premissa de sermos sempre iguais uns aos outros. Não deixei de assinalar os muitos recuos e os poucos avanços que se faziam e até me atrevi a falar dos percursos sinuosos feitos à sombra e no calor da guerra. Falei de desvios de rota, de interesses vários e de algumas traições pelo meio, também da esquizofrenia e do oportunismo de certos compatriotas a quem acusei de responsáveis pela situação complicada que se vivia no país. Falei inclusivamente da memória curta dos homens que permitiam que, naquela altura, a Praça da Independência se transformasse já numa pequena e confusa kitanda. Já vigorava, livremente, a falta de cuidado e de respeito por tudo e por todos, mas não me tinham ainda cortado o direito à palavra no Jornal de Angola.

Àqueles vinte anos de então, adiciono mais vinte e seis, dezoito dos quais vividos em paz absoluta, num ambiente que não incluiu tiros de canhão, apenas beliscado pela crueldade de certos gestos e pela incoerência de determinadas palavras, vindas principalmente dos que fizeram da guerra um certo modo de vida. Na tentativa de capitalizar dividendos, algumas dessas palavras e os gestos explícitos que as acompanhavam tornaram-se mais perigosas que as rajadas de metralhadoras que cantaram música mortal nas batalhas já esquecidas. Assumiram-se compromissos em conferências, no país como no estrangeiro, em momentos mais ou menos inesperados. Ocasiões houve em que se soltaram palavras sem sentido, não lembrariam ao diabo e não eram, de modo algum, aquelas pelas quais mais se aguardavam. Umas deram discursos de boa oratória para a posteridade, falavam de sociedade civil e de democracia, de uma terra boa para se viver. Angola era o tal sítio especial. Construíam-se com todo o afinco, os alicerces para a edificação, que era suportada por um imenso canteiro de obras. Outras baboseiras, ditas ou escritas por barões e viscondes especializados em comunicação e engenharia tanto como em desunião, racismo, preconceito e provincianismo, tanto como em inveja, exclusão e xenofobia, a ferir gravemente olhos e ouvidos dos que tinham paciência de os ler ou de os escutar.

Sem espanto nenhum, decepcionaram obviamente, as palavras proferidas pelos representantes da classe política angolana. Pouco verdadeiras e nunca neutras, cercadas pela demagogia das atitudes, até em momentos solenes foram utilizadas palavras graves, agudas e esdrúxulas que, na maior parte das vezes, se assemelhavam a laranjas. Bonitas na sua cor amarela da próxima dos tons da abóbora, como as de Cassoalala, de bom cheiro e conteúdo sumarento, mas no fundo do tipo de laranjas mecânicas que ao serem espremidas, ao invés de deitarem sumo aproveitável, deixavam cair gotas de um líquido enferrujado, sugerindo antiguidade, uma qualidade que o embuste e a mentira produziam e os faziam manter-se nos cargos.

Entretanto, passaram a ouvir-se com outra acutilância as palavras de novos heróis que surgiram em cena, os de pena afiada e os de palavra fácil. A fala passou a ser adornada em debates radiofónicos e televisivos compostos por politólogos e activistas onde, lamentavelmente, eram e ainda são muito raros, os de boa craveira. E, como em terra de cegos quem tem um olho é rei, ganharam notoriedade os que se consideram bons (até os há muito bons) e apanharam boleia na carroça da política nacional os pretensiosos analistas e pivots politiqueiros de meia-tigela (que também existem, e aos magotes).

E foi, e é vê-los a quererem ser heróis, a imitarem radicais e conservadores de outros quadrantes e a almejar o poder dos reis e o simbolismo dos da saga do 4 de Fevereiro e dos demais iniciadores da luta. Declamando canções cujos temas defendiam o povo desprotegido. Cada um a utilizar a sua táctica, algumas mais caducas do que as utilizadas pelos verdadeiros heróis, esquecidas na poeira da evolução das sociedades, ressuscitando doenças da alma gentia, persistindo em percursos sinuosos de outrora, mas desviando-se claramente da rota desejada, num contexto diferente, moderno, fora de época. Ao longo de todos estes anos que fizeram de nós filhos sofridos de um povo heróico, fomos observando, contabilizando e chegando à conclusão de que, afinal, a guerra não terminou. O inimigo de hoje é muito mais perigoso que o de então. É duro, inteligente e maldoso, não consente que alcancemos a felicidade que nos foi prometida pelos heróis no início da luta. Mostram o gosto cruel de ver o outro em dificuldade, de expô-lo à humilhação, de vê-lo perder o emprego.

Entre essas figuras pouco gratas ou com a sua razão, notabilizam-se as que perderam a fé, não acreditam mais nisto, mas ainda assim, apoiam a mudança do paradigma da governação, enfrentando timidamente aqueles que afirmam que aqui não habita o Rei Midas e tem que se dar tempo ao tempo. No meio de tudo isto eu continuo a defender que foi um enorme ganho podermos estar aqui descobrindo saídas e a falar sem problemas, chegando ao cúmulo de enfrentar com algum abuso o mais Alto Magistrado da Nação. E por aqui me fico, triste pela partida da Leda Neto, da Maria Alexandre, do Pimentel Araújo, da Guida Teixeira, preocupado com o estado crítico do Arlindo Barbeitos e do Daniel, desolado também por todos os outros que têm abalado inesperadamente.

No meio dessa imensa dor vem o amenizar das perdas e sinto a satisfação de certas novidades, como o pedido de desculpa à população, vindo da Governadora de Luanda, à frente. Pode ser prenúncio de novas posturas. Tem que ser, e é assim que deve ser. Só assim honraremos os nossos heróis, se formos sinceros e assumirmos os nossos erros, que são imensos e perfeitamente escusados. Mas passíveis de correcção, se assim quisermos. Chorando diariamente os que nos vão deixando, despeço-me de todos. Até domingo à hora do matabicho.

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