Cultura

Jean-Luc Nancy e formulações neocomunitaristas

Luís Kandjimbo |*

Escritor

Na ressaca dos acontecimentos que nas últimas semanas afectaram a segurança ontológica da comunidade histórica a que pertencemos, proponho um tópico de conversa para nos interrogarmos acerca do nosso destino, interpretando o que os membros de outras comunidades falam a respeito de si mesmos

21/02/2021  Última atualização 20H55
© Fotografia por: DR
A alusão ao jacobinismo, uma ideologia revolucionária dos turbulentos anos da França do século XVIII, corresponde ao lançamento de uma âncora de tal modo que, mais adiante, possamos centrar a conversa no tópico que convoca a filosofia neo-comunitarista francesa, num breve comentário sobre o pensamento de Jean-Luc Nancy (na imagem). Estão patentes as tensões ainda actuais entre os jacobinismos e seus contrários. Mas a filosofia neo-comunitarista francesa é radicalmente diferente das formulações homónimas norte-americanas em que pontificam autores como Amitai Etzioni e Philip Selznick. O neo-comunitarismo da estirpe norte-americana defende igualmente a relação indissolúvel  entre o indivíduo e o Estado, admitindo que a fractura irredutível pode ser fatal para o liberalismo, à luz das condições específicas da democracia liberal e representativa americana.

Na historiografia da Revolução Francesa, o jacobinismo anda associado à imagem do Estado omnipotente, garante da igualdade e liberdade para todos, assente numa ortodoxia ideológica, na disciplina de um aparelho militante centralizado, eliminação sistemática dos adversários e dos amigos, na manipulação autoritária das instituições eleitas e o controlo dos indivíduos. Mas, como se sabe, no lema da República Francesa, a comunidade é designada pela fraternidade, "modelo de família e de amor”, tal como sustenta Jean-Luc Nancy.

Esse modelo de Estado nacional de tipo ocidental, de que a Revolução Francesa é um dos pilares históricos, foi sendo abalado por sucessivas e violentas crises sanguinárias, ao longo de quatro séculos. As suas manifestações se foram alterando até à queda do Muro de Berlim. Daí em diante registar-se-iam outros abalos nos seus fundamentos, tal como se foi observando em diferentes países que, por razões históricas, herdaram o referido modelo. A desintegração da União Soviética e dos Estados da Europa do Leste, durante as décadas de 90 do século XX, é um dos melhores exemplos. Nesta medida, o Estado-nação em crise foi sendo problematizado nos domínios da história, ciência política, da sociologia política ou dos estudos interdisciplinares. Mas no campo da filosofia, o debate sobre este tema revela-se através das controvérsias que opõem comunitaristas e neo-comunitaristas a liberais e neo-liberais; ou liberalismos e neo-liberalismos contra comunitarismos e neo-comunitarismos. No eixo euro-americano, o referido debate originariamente académico e norte-americano, teve início na década de 80, nos Estados Unidos da América, e alcançou o seu apogeu na década em que se dá a desintegração do socialismo real na Europa do Leste. Um dos mais eficazes catalisadores desse debate foi o livro do filósofo norte-americano John Rawls (1921-2002), intitulado "A Theory of Justice” (Uma Teoria da Justiça), publicado em 1971. Trata-se de uma advocacia da igualdade, justiça e liberdade individual típica das sociedades liberais e            neo-liberais.

Contra as teses de Rawls estão os comunitaristas. Partem do pressuposto de que a comunidade precede a liberdade e a igualdade. Procuram-se respostas sobre o que deve ter primazia na vida em sociedade: os valores da comunidade, a vontade da maioria ou a liberdade individual? As críticas que os comunitaristas dirigem aos liberais trazem ressonâncias de ataques às teorias clássicas liberais europeias.
Os filósofos políticos liberais ocidentais  consideram o indivíduo como figura central daquilo a que designam por "comunidade não-comunitarista”. Assim, os indivíduos não têm necessidade de estabelecer qualquer vínculo de pertença a grupos de natureza religiosa, económica, sexual, étnica ou outra. É a soberania do indivíduo, da autonomia da sua vontade e primazia das suas preferências.

Os comunitaristas entendem que as premissas do individualismo são falsas, na medida em que o comportamento humano não pode prescindir das referências ao indivíduo nos seus contextos social, cultural e histórico. Neste sentido, qualquer indivíduo pertence a uma comunidade, clã, etnia, família ou nação. Por isso, o Estado não pode ser neutro, tal como pretendem os liberais. O bem comum requer uma determinada "unidade social”, outros diriam unidade nacional. Essa é a razão por que os comunitaristas defendem o intervencionismo do Estado no domínio da cultura, por exemplo. Paradoxalmente, é em França, país que se tornou célebre pela sua política da identidade assimilacionista e da "excepção cultural”, onde nasce uma das mais originais filosofias neo-comunitaristas europeias pela mão de ensaístas e filósofos da literatura pelos quais cultivo uma predilecção. São eles Georges Bataille (1897-1962), Maurice Blanchot (1907-2003) e Jean-Luc Nancy (1940). A "excepção cultural” que reemergiu na década de 90 do passado século, por ocasião das negociações multilaterais que dariam origem à Organização Mundial do Comércio, para cuja liderança foi recentemente eleita a nigeriana Ngozi Okonjo-Iwela, traduz uma representação social francesa enraizada na história da república. Aliás, é o general Charles de Gaulle, um dos presidentes da V República, que recupera a fórmula de "uma certa ideia da França”, recuando aos anos de 1870. Esta "excepção francesa” é reveladora da importância que tem o comunitarismo jacobino e dirigista do Estado, entre as décadas de 60 e 80 do século XX.


(Anti) e (neo)-comunitarismos

A vaga do pensamento neo-comunitarista francês ocorre nas décadas de 70 e 80, num período em que se destacam figuras políticas que revolucionaram as políticas culturais, tais como Charles de Gaulle e François Mitterrand. Por outro lado, verifica-se um  desencanto da sociedade francesa com a democracia, causando síndromes de contra-discursos. A necessidade de enfrentar ameaças da americanização cultural desencadeia ideias sobre a "excepção francesa” e a "excepção cultural”. São esses receios da comunidade gaulesa que vão dar lugar ao conceito de "diversidade cultural”, no contexto do debate sobre a cultura no comércio internacional.

Quando Jean-Luc Nancy inaugura a sua reflexão sobre a "comunidade”, fá-lo por débito a partir do pensamento de George Bataille e Maurice Blanchot. Numa leitura recíproca de textos, Jean-Luc Nancy concorda com Blanchot acerca da recusa em tomar a comunidade como um sujeito que transcende as existências individuais e a que se devia atribuir a obra do ser comum. Para Nancy, banaliza-se a ideia segundo a qual a "comunidade é um povo entendido como conjunto de entidades espirituais ou naturais”, tal como o "comunismo entendido como força de autoprodução colectiva”. Em síntese, enuncia-se aí a ideia seminal que gera o seu mais importante livro sobre esta matéria, "La Communauté Désœuvrée” (A Comunidade Inoperante). Tomado de empréstimo a Maurice Blanchot, "désœuvrée” (inoperante, inútil, ocioso) é o termo à volta do qual se organiza a desconstrução do conceito de comunidade, numa estratégia que visa erguer um outro comunitarismo.

Ao dialogar com os seus mestres, Jean-Luc Nancy vai enunciando as suas conclusões. A comunidade é referida como facto através do qual se exprime uma partilha incessante. Esgota-se na condição de fechamento de uma subjectividade de "ser para si mesmo”. É como se fosse um sujeito colectivo isolado. Por isso, considera necessário inverter a ordem comum das razões para se compreender o facto de a comunidade provir dos indivíduos. Admite, assim, que a comunidade seja apenas uma consequência. Em todo o caso, a primazia liberal do indivíduo ou a primazia comunitarista da comunidade carregam consigo o "imanentismo ou metafísica da autoprodução”. Com isso Jean-Luc Nancy quer dizer que os comunitarismos e os liberalismos partem de uma concepção dúbia de identidade como uma totalidade imanente que, por lhes ser inerente, só posteriormente é marcada pela diferença. Presume-se que o "indivíduo como o Eu” e a "comunidade como um grande Outro” são         autosuficientes.

Enquanto glosava George Bataille cujos  textos datam dos anos 30 do  passado, Jean-Luc Nancy identifica linhas de ruptura em Blanchot, outro mestre seu, quando este considera que uma "comunidade constituída” está próxima do sentido em que se analisa o "comunismo”, no século XX. Por isso, com o seu livro "La Communauté Inavouable” (A Comunidade Indizível), Maurice Blanchot anunciava o seu profundo desencanto com a democracia francesa, rejeitando não só a ordem instituída, mas qualquer "projecção instituinte, revolucionária ou reformista”, duas décadas após a crise estudantil de Maio de 68.


Teoria da suspeita

Por outro lado, Jean-Luc Nancy reconhece que o individualismo liberal é perigoso devido ao seu "atomismo inconsistente” e em virtude de ignorar que a questão do átomo diz respeito a um mundo. Deste modo, entende que a questão da comunidade, em França, apresenta-se como uma grande ausência da "metafísica do sujeito”. Isto quer dizer que falta um pensamento ético sobre o indivíduo ou a comunidade nos seus modos de existência, enquanto "absoluto para si”. Este absoluto pode tomar diversas formas, tais como "Ideia, História, Indivíduo, Estado, Ciência, Obra de arte, etc.”
Para reverter esse estado de coisas, Jean-Luc Nancy vem advogar a construção de uma teoria da suspeita acerca destas formas do "absoluto” que se afastam do sujeito individual e da comunidade, formulando assim uma forte crítica aos paladinos da "morte do       sujeito”.

No dizer de Nancy, a comunidade enquanto relação, sendo também afectada por essa lógica, não é apenas comunicação íntima dos seus membros nas relações que os indivíduos  estabelecem uns com os outros. É igualmente a comunhão orgânica com a própria essência. E acrescenta que a comunidade é feita sobretudo pela impregnação de uma identidade na pluralidade onde cada membro se identifica com o corpo vivo da comunidade, através de dispositivos de mediação, entre os quais se encontra a literatura.

Vem daí a teoria da suspeita sobre aquilo a que muitos consideram como sendo "consciência retrospectiva da perda da comunidade e de sua identidade”. Jean-Luc Nancy considera que aí reside o sentido de uma assombração que persegue o Ocidente, desde os seus primórdios. Há como que um eterno sentimento de nostalgia relativamente a uma comunidade arcaica e extinta, que vai em busca de um espírito de família, fraternidade e convívio perdidos. 

Portanto, perante essa crise existencial que o Ocidente exporta para outras partes do mundo e outras civilizações, Jean-Luc Nancy refere que a ética, a política, as filosofias da comunidade, têm sido apenas "puras estagnações humanísticas” a respeito das quais ninguém suspeita, mas que devem ser objecto de uma suspeita permanente.

Como se pode concluir, a construção da vida em comunidade é coisa tão séria para não ser deixada apenas na mão das igrejas, da polícia e dos políticos. É necessário abandonar a inspiração de jacobinismos no século XXI, evitar a violência ilegítima, defender a liberdade da conversa e da discussão para construirmos um comunitarismo moderado, à altura das necessidades colectivas, numa homenagem verdadeira à condição humana.

* Ensaísta e professor universitário

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