Entrevista

Jornalista Luís Domingos: “A Victória é uma imagem do conflito armado”

Santos Vilola

Jornalista

Victória Suala Domingos é aquela menina que, depois da retomada do Andulo, andava de caserna em caserna quando todos os habitantes esqueceram-se dela e fugiram de um conflito armado que tinha naquela vila o bastião central da UNITA. Em reportagem, Luís Domingos decidiu trazer para Luanda a única “vivalma” que tinha ficado para trás na retirada dos povos. Hoje, ela tem 21 anos, cerca de 17 dos quais a viver como filha adoptiva do jornalista

20/02/2021  Última atualização 21H40
© Fotografia por: DR
Como descobriu a Victória?
Fui ao Andulo quando as FAA tomaram aquela vila que era o bastião das forças militares da UNITA. O primeiro avião que lá aterrizou foi o que me levou. Vi uma criança machucada e ferida. Estava nas mãos de um soldado numa caserna. Olhei para ela e disse o general Guto que a criança era a única alma-viva que as FAA encontraram no Andulo. Ela não conseguiu fugir e andava de caserna em caserna a pedir comida a militares.


Daí veio-lhe a ideia de salvar a menina?
Ficamos uns dias no Andulo e fomos atacados pela UNITA, mas na hora de partir quase me esquecia do compromisso de levar a criança para Luanda. Já na porta do avião é que pedi que esperassem um pouco até que me trouxessem ela ao avião.


Como é que foi o desembarque em Luanda?
Desci do avião e fui imediatamente a uma clínica privada. Não tinha dinheiro nesse dia, mas as pessoas trataram bem dela. Desde que ela entrou em minha casa nunca mais saiu. Ela está provisoriamente registada e baptizada sem o meu nome por uma razão simples: conheço o valor da paternidade. Não quero registar essa menina enquanto não encontrar os pais.


Já fez alguma diligência para os encontrar?

Registei a Victória, mas na parte da filiação paterna não consta nome do pai, e não tenho coragem ainda de contar para ela por que não tem o nome do pai. Mas fiz isso porque, nos últimos tempos, andei atrás dos pais dela. Fui ao Andulo e falei com sobas e não os encontrei, logo, deixei em branco na esperança de um dia encontrar os pais e eles escolherem entre o meu nome e o deles.


Muita gente apreciava o teu trabalho. Alguma vez alguém  ofereceu ajuda?

O ex-Presidente da República todos os anos deu festa para crianças no Palácio Presidencial, mas nunca chamou a Victória, que era muito conhecida. Se calhar ele nem sabia que eu trouxe uma menina de um teatro de guerra, mas cruzamos em audiências.


A adaptação à família como é que foi?

Tenho uma família muito boa, por isso tivemos de aceitá-la como novo membro da família. A Victória é minha filha. Tem 21 anos e vive com a minha irmã.


"Não consegui perceber por que não fui reconduzido”


Como é que um jornalista vai parar ao Parlamento?
Porque o MPLA assim queria. Estava no auge da minha carreira. Sou militante do MPLA, mas não sou fanático. Tenho o amor de muita gente. Existem pessoas que participaram em banquetes que não têm o amor das pessoas como eu. Muitas vezes, o calor humano faz mais falta do que os milhões de dólares.


Saiu em circunstâncias que lhe causaram estranheza?

Fiquei no mandato durante três anos, depois de ter entrado como suplente. Na legislatura seguinte, o MPLA não me reconduziu. Não consegui perceber, mas me disseram que era uma orientação de José Eduardo dos Santos, segundo a qual cada militante voltasse ao lugar onde esteve na lista das eleições anteriores (suplente). Mas ainda recebi garantias de que estaria num lugar melhor, mas quando fui ver estava num lugar inelegível.


Depois de afastado não voltou sequer à TPA…
Em 2012, quando deixei de ser deputado, senti que perdi o poder. No Natal do mesmo ano, nem um cabaz recebi fosse de quem fosse. Quem me ofereceu uma carne (de javaporco, um cruzamento de porco e javali) foi Lukamba Paulo Gato, da UNITA. Nunca suportei ver a bandeira da UNITA, mas foi de um membro deste partido de onde veio a carne para comer com os meus filhos no Natal.


Tinha muita estima por Luther Rescova?

O malogrado Luther Rescova é dos filhos que os angolanos deviam continuar a chorar. Além da inteligência dele, era a simplicidade. Quando fui convidado para ir ao Parlamento foi ele quem me deu os documentos na estrada da Samba. Estávamos em sentido contrário e ele (deputado, secretário nacional da JMPLA, membro do Bureau Político e conselheiro da República) desceu do carro, atravessou a estrada e foi ter comigo.


O percurso do Huambo a Luanda

Como é que conseguiu chegar a Luanda em plena fase de conflito?
Foi a guerra. Saí do Huambo duas semanas antes de rebentar o conflito. A primeira vez que a UNITA atacou o Huambo, em 1992, eu era repórter da TPA. Reportei o ataque, e num domingo, estava eu a recolher as imagens e o brigadeiro Tchassanha, da UNITA, disse que eu fui encontrado a recolher imagens de um culto da Igreja Católica para mostrar que, apesar do ataque, a vida continuava. Apareceu um carro das Nações Unidas de onde desceram o brigadeiro Tchassanha e alguns homens das Nações Unidas. Tchassanha disse que se vissem as imagens do ataque ao Huambo na televisão iriam destruir a TPA, mas antes a minha casa. Garanti que não passaria. Só que naquele mesmo dia o Ernesto Bartolomeu leu a notícia no Telejornal.


Temeu logo pela vida?
Antes da divulgação dos resultados das eleições em 1992, havia uma tensão forte em Angola. A BRINDE (serviço de inteligência da UNITA) introduz uma estratégia de eliminar algumas figuras no Huambo. Desta lista constavam eu e o Gonçalves Ihanjica. O general Sukissa pegou em duas pistolas com as respectivas caixas de munições e deu uma para cada um. Aconselhou-nos a não frequentar a discoteca Nocturno.
O Rui de Castro, que era já na altura o director da TPA, deu-me transferência para vir a Luanda. Costumo dizer-lhe que devo a ele a minha vida. Analtina Dias e Lito Bueth já tinham fugido para Luanda via Lubango, Gonçalves Ihanjica já estava em Luanda. Eu vim com o Chivinda no meu carro.
Fui apresentar-me na TPA. Neste dia já nem saí da TPA porque a guerra aqui em Luanda tinha começado. Fiquei confinado três ou quatro dias dentro das instalações. Reportei os piores horrores da guerra em Luanda, mesmo sem conhecer a cidade. Vi muita gente a ser morta, mas como vinha do Huambo onde vi o pior facilmente consegui encarar aquilo.


Era o rosto do "Nação Coragem”. Como foi esse desafio?

O "Nação Coragem” era uma estratégia do então Presidente José Eduardo dos Santos. Quando hoje ouvimos o Presidente João Lourenço a falar sobre o Estado da Nação muita gente quer ouvir o discurso, porque traçam linhas orientadoras do Governo. José Eduardo dos Santos, provavelmente pela longevidade no poder, tinha chegado a um ponto em que já ninguém o queria ouvir. Nessa altura criaram o "Nação Coragem”. Chamaram-me para a missão que tinha de cumprir. Criou-se uma equipa de brasileiros. Alguns entendiam mesmo de televisão. Eram indivíduos da Globo, Record, Band, etc.. Eles faziam antes o programa "Angola Diz Basta”. Quando lá cheguei disse que o programa não era viável. Então, aparece o Sérgio Guerra. É verdade que ele ficou milionário com aquilo e eu miserável. Mas sou rico de tanto amor que recebo dos angolanos hoje pelo que fiz, mas também não choro, porque nunca recebi nada das tais pessoas.


Foi um dos sete jornalistas que estiveram no recuo e, depois, na tomada do principal bastião da UNITA no Andulo. Como é que foi essa experiência?

A primeira tentativa das FAA foi em 1997. O objectivo era ocupar o Andulo (Bié), onde estava o quartel-general de Jonas Savimbi. Eram os primeiros passos da "Operação Restauro”. A caminho, a perto de sete quilómetros, percebemos que as FAA e sequer os serviços militares do país sabiam da evolução tecnológica militar que Savimbi tinha. Afinal a UNITA tinha saído de forças de guerrilha para forças convencionais. Só que o erro de Savimbi foi ter investido em equipamento de ponta e não, primeiro, no homem, porque não se sai de forças de guerrilha com os mesmos generais para forças convencionais. Savimbi já tinha BMP 1 e 3, Uragan… As FAA nunca tiveram possibilidade de comprar um Uragan, que não é vendido a qualquer exército. Não sei como Savimbi conseguiu.


E do lado das FAA qual era a capacidade técnico-militar nesta operação?

Percebemos que as FAA com AKM ou AK47 não tinham capacidade para enfrentar o inimigo. Ainda assim, percebemos que as forças militares da UNITA, mesmo com tanto aparato sofisticado, disparavam à toa. Mas, a poucos quilómetros, as FAA levaram surra. Você acabava de falar com um soldado ou comandante, poucos minutos depois ele já estava morto. Porquê? Percebeu-se que Jonas Savimbi tinha desafiado os seus soldados. Terá dito que se os soldados o quisessem morto então ele mesmo iria rendido ao encontro das FAA. Abandonamos soldados feridos em camiões, de tanta surra.


Quem era o comandante das FAA nesta frente de combate?

Era o coronel Mundo. Nunca ninguém se lembrou dele. A família deste coronel nunca foi tida nem achada. Foi morto nesta batalha. Não era nada Simeone Mucune o comandante desta frente.


Que outros comandantes o Luís Domingos julga que estão esquecidos?

O coronel Ngongoyenu, ainda vivo a vegetar e a passar fome, o brigadeiro Amuti, entre outros. São heróis que ainda estão vivos, mas ninguém os olha. Esse país tem muitos generais de verdade, por quem tenho muito respeito, mas também aqueles de gabinete, e estão nos dois lados (MPLA e UNITA). Mas sequer constam da lista dos heróis anónimos. Choramos alguns, como o general João de Matos que foi determinante para o fim da guerra.


Que memória tem da guerra?
Tem coisas que em tempo de paz pouco mais adianta, mas isso nos forjou para sentirmos menos medo. Até hoje tornei-me num indivíduo que quase não sente nada para nada. Certa vez, no meu bairro Bom Pastor, a UNITA atacou poucas horas depois de o carro da TPA deixar a minha casa. Fizeram em direcção à minha casa várias rajadas de PKM e pensei que me tinham visto a descer do carro da TPA. Sabe o que um dia vocês têm de perguntar aos generais da UNITA? É se, na arte da guerra, como é que o seu braço armado fazia a guerra: um único indivíduo carregava duas armas e, em cinco, fazia pensar que eram dez pessoas.


Saiu da TPA ou ainda planeia voltar?

A TPA enviou-me uma carta de reforma no final do ano passado mesmo sem atingir os 35 anos de serviço exigidos por lei. Não sei se é gentileza da TPA, mas disseram-me que devia ir para a reforma. Sinto-me ainda muito novo e com energia para dar o meu contributo ao país, com os meus 53 anos. Não quero reforma alguma. Eu continuo a descontar para a Segurança Social. Tenho tido muita vontade para voltar à TPA e pessoas anónimas têm-me pedido para regressar, mas tenho ponderado isso.

Tem tido alguma receptividade da direcção actual?

Gostaria, mas não para ter cargo de chefia. Sei que muitos podem sentir que lhes posso fazer sombra, mas o meu mundo é a televisão. A política é uma experiência. Hoje, estou casado com a política e a televisão. Se a política me oferece oportunidades hoje, que me negou muitas vezes, nada me impede de voltar para a televisão, que me deu mais felicidades do que a política.


De Construtor Civil a Jornalista

Foi um concurso público que o colocou na TPA Huambo, depois da formação em Construção Civil no Instituto Industrial Pedagógico. Jornalista durante décadas, Luís Domingos Tchiuissi foi o rosto do "Nação Coragem”.
Filho de Benedito Domingos Tchitumba, catequista muito respeitado no Huambo, Luís Domingos é o sexto dos oito filhos de Valentina Tchiculssola. Devoto católico, tem um irmão, José Tchitumba, que é padre (ficou 12 anos em Roma, Itália, e agora está no Brasil).

O dia de nascimento de Luís Domingos coincide com duas datas importantes. Em Angola é o Dia da Paz e da Reconciliação Nacional e nos Estados Unidos é lembrado pela morte do reverendo Martin Luther King, uma das referências da luta contra a discriminação racial.
A passagem pelas extintas FAPLA custou-lhe a alcunha de "Capitão Fúnebre”. Era o nome que sempre desejou para impor medo na hora de disciplinar um colega. Luís Domingos lembra que na parada dizia: "A parada militar será com tiros quando um dia me tornar comandante.”

Sobrinho de Dom Zacarias Kamuenho, Luís é de uma família tradicionalmente católica "que nos obrigava a estar todos os domingos na missa”.
Começou a estudar na Bela Vista, no Bairro de Fátima, Katchiungo, até à quarta classe. Depois, foi à Casa dos Rapazes, um internato. "Eu perdi o meu pai quando era muito novo e o meu irmão ainda não era padre. Era seminarista apenas. Pegou em nós e mandou-nos para o internato, que era uma verdadeira indústria da cidadania”, refere, acrescentando que duvida que alguém tenha passado num internato como o Gaiatos em Benguela, no Huambo e em Malanje que não tenha aprendido a ser gente além dos valores que já trazia das nossas famílias.

Aos 12 anos assentava arraiais no Huambo, com mais ou menos 12 anos, onde fez a 5ª e a 6ª classes na Casa dos Rapazes, para depois rumar com o irmão ao Cuanza-Sul, porque o irmão era pároco da Diocese da província. No Cuanza-Sul fez a 7ª e a 8ª classes na Escola 28 de Agosto.


Em jeito de monólogo

"Éramos 15 candidatos, um deles era uma médica, que está viva até hoje. Tinha também o Paulo Ramirez, que entrou comigo para a televisão e foi incorporado na tropa comigo. Já não faz parte do mundo dos vivos, mas era muito bom realizador. Quem entende de televisão sabe, não é essa de agora. É a dos Mesquita Lemos, Gabriela Antunes”.
"Fomos admitidos no mesmo dia só que ele foi à tropa e eu beneficiei de adiamento porque falava inglês e tinha perdido o meu pai. Quando fui incorporado ninguém entendeu, porque já estava na TPA fazia quatro anos e a Lei do Serviço Militar estabelecia que quem já estivesse a trabalhar há três anos beneficiava de adiamento. Fui buscar o adiamento ao CRM, já não saí de lá”.

"Estava automaticamente incorporado. Foi um Il 76 que nos foi buscar ao aeroporto. Vi o meu irmão padre a correr para tentar reverter a situação, mas quando chegou já tínhamos ordem para subir no avião”.
"Na rua da Samba, em Luanda, tinha um centro de recrutamento. O processo de selecção era lá. Eu, pelo nível de instrução que trazia, enviaram-me para a Guarda Presidencial. Só que houve um comandante a quem dava aulas na escola da Força Aérea que me aconselhou a ir para a Força Aérea. Disse: ‘Fúnebre’ vai para Força Aérea”.

"E fui parar ao Negage. Só que neste dia chovia muito no Uíge e o avião não aterrou. Regressamos. O indivíduo a quem dava aulas disse-me para não ir mais. Saí, mas, um tempo depois, voltei a ser incorporado, num contexto difícil. Perceberam que não devia ser incorporado com o nível e a incorporação que tinha. A ordem foi então ser devolvido ao Huambo para abordar quem me tinha incorporado. No dia em que cheguei encontrei o Lito Buete, marido da Analtina Dias. Foi ele quem me levou ao Hotel Ruacaná, onde estava o Abreu, que me tinha incorporado. E o Lito Buete disse ‘vim trazer o Luís Domingos porque ele precisa ser adiado’. Mas lá no Huambo já todos sabiam da minha situação. Só que acusaram-me injustamente de denunciar um esquema de venda de adiamentos”.

"O delegado da TPA chamava-se Emílio Dala. Quando cheguei à TPA Huambo disse-lhe que tinha regressado e ele disse ‘basta apresentar um adiamento e começa a trabalhar imediatamente’. Tirei logo o adiamento do bolso. Ele não acreditou e ainda ligou ao CTR [Centro de Treinamento e Recrutamento] para confirmação. Levei mais cerca de seis meses para voltar à TPA”.

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