Opinião

Legislar à altura do que queremos ser...

Apusindo Nhari

Jornalista

“Um dos problemas mais sérios na vida política angolana actual é o desconhecimento, que faz com que as medidas de política, os planos, os programas, os projectos, as simples actividades definidas por quem tem o poder, se mostrem, não apenas desajustadas relativamente aos verdadeiros problemas do povo, ou da população, como diz o novo léxico, mas também pouco preocupadas com a diversidade dessa população e os ambientes em que ela vive e opera.

18/04/2021  Última atualização 17H35
Mais grave ainda é constatar que todas essas medidas, ou seja o que for, são tomadas a pensar que as "populações” – uma cedência terminológica supostamente no sentido do reconhecimento de uma diversidade mas sem efeitos práticos nenhuns – devem ser olhadas como um conjunto de seres cujas especificidades pouco ou nada contam”.
Palavras de Fernando Pacheco, colhidas no seu prefácio ao livro "Okulima Kuvala” ("A lavoura é penosa”, em Umbundu), de Adriano Gomes e Custódio Satiaca, publicado em 2019.E é com elas que decidimos empreender a apreciação da alínea p) do Artigo 21.º da nossa Constituição:

Promover a excelência, a qualidade, a inovação, o empreendedorismo, a eficiência e a modernidade no desempenho dos cidadãos, das instituições e das empresas e serviços, nos diversos aspectos da vida e sectores de actividade.
O Estado a preocupar-se com a eficiência - evitar o desperdício – é seguramente um ponto incontroverso. Assim como a promover o empreendedorismo (a iniciativa, a perseverança, a criatividade e a autonomia).

Mas dada a mistura confusa de temas, parece-nos ter-se querido colocar na essência da alínea a promoção do que é "de topo”: - "excelência”, "qualidade”, "inovação”, "modernidade”... E por mais atractivos e positivos que sejam estes qualificadores, impõe-se-nos reflectir sobre o que eles querem realmente dizer na Constituição e como se enquadram ao contexto do nosso país...

Quem conhece a nossa realidade, defenderá certamente que o mais apropriado para os angolanos é priorizar a garantia do pouco (ainda que seja o "mínimo adequado”) para todos, do que incitar a busca de soluções típicas dos países mais desenvolvidos... Que poderão ser "excelentes” para outras realidades mas, para nós, apenas um passo maior do que a perna... e acabar em tropeço.

O que não significa virar as costas aos progressos da ciência e da tecnologia, nem à modernidade. Desde que essas soluções não sejam - como habituados estamos - apenas vistosas, sofisticadas e efémeras, faltando-nos tudo o resto: contexto, responsabilidade de quem as decide e gere, recursos humanos adequados e qualificados para a implementação, planos de acompanhamento e de manutenção, consistência...

Complementandoo que o Art.º 21 proclamanas suas alíneas (m) "desenvolvimento harmonioso e sustentável do país” e (o): "desenvolvimento humano”,a ciosa aplicação da alínea p) deveria já ter tornado as nossas populações e o país bem mais desenvolvidos do que somos e estamos.

Só que… "depois de anos a fio a proclamar-se que o ‘mais importante é resolver os problemas do povo’ sem que tais problemas tivessem soluções satisfatórias, ao mesmo tempo que as elites, e sobretudo um restrito clube de privilegiados, beneficiassem de regalias absurdas e injustificáveis, que fizeram disparar as desigualdades e níveis que colocam Angola entre os piores países do mundo, adoptou-se um discurso mais simpático e moderno” (FP) - e ficámos francamente desencontrados. Há sem dúvida um preocupante "...desalinhamento entre o discurso e a prática, que tanto tem afectado os processos de mudança política desejados e proclamados”.

Quando confrontados com a ambição expressa na Lei Suprema, não conseguimos evitar de sentir o cepticismo que tal enunciado nos suscita, bem como o desnorte que pode causar à juventude o levá-la a "acreditar” que aquilo com que se confronta diariamente é sinónimo de "qualidade”, e de "excelência”, por ser tantas vezes (impropriamente) anunciado como tal.

A "...falta de intenção (de verdadeiramente aliar a teoria à prática) e o preconceito(das elites, que consideram saber e poder ditaro que as populações realmente precisam)  estão por trás da desatenção e do desinteresse de quem, a diferentes níveis, tem posição de destaque ou, no fim de contas, tem poder sobre os recursos, sobre os procedimentos, sobre o cumprimento das leis”, nos assinala Pacheco.

Como conciliar objectivos "de excelência” quando vivemos diariamente confrontados com tão numerosos exemplos de mediocridade - mesmo em meios que deveriam estar na vanguarda, como as universidades e centros de investigação? Atrasando o progresso que se deveria obter nos domínios do conhecimento e do desenvolvimento das condições de vida de todos nós e, em especial, dos mais desfavorecidos...

A qualidade e a excelência de que precisamos é bem mais nas decisões (assentes no saber e no bom senso), e sua concretização, num ambiente de justiça e responsabilidade, onde se produzam os bens públicos, essenciais e duráveis, adaptados às populações que delas vão usufruir, com soluções que permitam beneficiar o maior número possível de pessoas carenciadas.

Não pode haver qualidade, nem inovação, nem excelência, se as iniciativas que assim se qualificam não se ancorarem no conhecimento que garanta a melhoria - realista, progressiva, modesta e segura - do funcionamento das instituições e, mais do que tudo, a dignificação da condição cidadã.
Promover todos os objectivos da alínea p) não deveria obrigar-nos a exercer a nossa responsabilidade de, em primeiro lugar, legislarmos à altura do que queremos e do que somos capazes de ser?

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