Sociedade

Língua gestual ganhou maior notoriedade com a pandemia

Xavier António

Jornalista

Uma figura até então desvalorizada e sem importância na sociedade angolana, o intérprete de língua gestual ganhou notoriedade desde que, há um ano, foram registados os primeiros casos de Covid-19 no país.

21/03/2021  Última atualização 16H10
Sónia Cardoso e Bismarque António © Fotografia por: Edições Novembro
Bismarque António, o primeiro intérprete a aparecer quer ao lado da ministra da Saúde, Sílvia Lutucuta quer do secretário de Estado para a Saúde Pública, Franco Mufinda, durante as conferências de imprensa e actualização de dados da Covid-19, no Centro de Imprensa Aníbal de Melo (CIAM), considera que "a pandemia trouxe o merecido reconhecimento da língua gestual em Angola”.  

A língua gestual na televisão, admite, tornou a informação mais "inclusiva e abrangente” para a comunidade surda, que venceu o estigma, a discriminação e a barreira da comunicação.  
"Muita coisa mudou. Hoje, com a pandemia os ganhos são visíveis para a comunidade surda, em termos de comunicação na televisão”, sublinha.

Bismarque António mostra-se satisfeito com o trabalho que desempenha e com o reconhecimento que recebeu da sociedade, desde que apareceu na televisão a traduzir a informação da Covid-19.
O jovem intérprete tornou-se conhecido, alvo de comentários, memes e análises. Na rua, conta, as pessoas param-no para certificar se é mesmo ele. Uns tratam-no por "jovem da Covid” e outros chamam-no de "o mudo da televisão”.

"Quando começo a falar, as pessoas questionam `oh! Afinal falas?´”, conta sorridente, acrescentando que, de seguida, pedem-lhe para tirar fotografias, trocam impressões sobre a pandemia e contacto telefónico.
"Certo dia, uma senhora disponibilizou-se em pagar a minha conta num estabelecimento de Fast Food. No meu bairro, as pessoas passaram a valorizar e a respeitar o trabalho de intérprete de língua gestual”, lembra. 

Alguns familiares, conta, sentiram-se felizes por ser intérprete de língua gestual na televisão e outros deduziram que estava a ganhar milhões de kwanzas pelo trabalho. "Mas não é verdade. É apenas a prestação de um serviço, num momento, particularmente, difícil para todos nós”, destaca.  
Como resultado do trabalho que faz, Bismarque António revela que já recebeu convites para ingressar no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), bem como no Ministério da Cultura, Turismo e Ambiente.
 
Além do CIAM, Bismarque António já tem feito também interpretação de língua gestual em alguns programas da Televisão Pública de Angola (TPA). Apesar disso, considera que a figura do intérprete será ainda mais valorizada quando começar  haver concursos públicos para esta classe.
"Precisávamos sair do anonimato, onde estávamos confinados profissionalmente, e mostrar as nossas valências”, afirma, defendendo uma aposta contínua na formação dos intérpretes angolanos de língua gestual, tal como acontece em Portugal, Brasil, Cabo Verde e Moçambique.

Em relação ao combate à pandemia, considera Angola "um bom exemplo em África”. Na sua visão, a Comissão Multissectorial de Prevenção e Combate à Covid-19 tem adoptadas medidas que permitiram evitar cenários como os registados em países da Europa e da América. "A população, na sua maioria, ainda age com ignorância, céptismo e desleixo no que toca ao cumprimento das medidas de prevenção”, lamentou, acrescentando que "educar uma sociedade não é da noite para o dia, por isso, as autoridades sanitárias devem continuar a apelar ao cumprimento das medidas para salvar vidas e evitar o colapso do sistema de saúde”.


"É uma honra levar a informação à comunidade surda”

Sónia Cardoso foi a segunda intérprete de língua gestual a surgir com regularidade nas conferências de imprensa e actualização dos dados da Covid-19. Um ano depois, assegura que tem cumprido com zelo e dedicação a missão que lhe foi confiada. "O feedback, por   parte da comunidade surda e não só, tem sido positivo”, refere.

Para Sónia Cardoso, hoje há um maior reconhecimento da figura do intérprete da língua gestual, que há muito fazia falta. "Precisamos estender, também, os serviços de tradução gestual aos hospitais, repartições públicas e consulados”, defende. No CIAM, diz, criou amizades que levará por longos anos. "Temos vivido momentos de muita cumplicidade e solidariedade”, afirma, acrescentando que um dos momentos mais difíceis foi quando se detectou um caso positivo de Covid-19 no CIAM.

"Tivemos de  fazer a colheita de amostras com a Zaragotoa para o teste e RT-PCR, porque no país ainda não havia testes serológicos rápidos”, lembra. A intérprete revelou que tem recebido algumas críticas que a têm ajudado a melhorar o trabalho que faz. "Faço por amor ao próximo e por saber que se trata de uma actividade de inclusão social para pessoas com necessidades especiais”, acrescenta.

A família sempre soube da sua pretensão em continuar a abraçar projectos ligados ao ensino e inclusão de pessoas com deficiência auditiva. "Mesmo com alguns constrangimentos e, às vezes sem remuneração, têm apoiado em todos os momentos. O importante é que as pessoas têm acompanhado o meu percurso com carinho, respeito e admiração”, realçou.

Primeiros passos
Sónia Cardoso revela que o interesse pela língua gestual surgiu aos 17 anos. Mas a principal razão era a necessidade de pregar a palavra de Deus às pessoas surdas. "Tinha 18 anos e vivia no distrito da Maianga. Depois soube que, na zona do Alvalade, havia um casal que ensinava a palavra de Deus às pessoas surdas e comecei também a  aprender com esse casal”, recorda.  
A formação como intérprete começou em 2004, com a comunidade surda. "A Língua Gestual Angolana (LGA) pertence à esta franja da sociedade”, refere. Mais tarde, acrescenta, passou por um processo de formação na Associação Nacional dos Surdos de Angola (ANSA) e depois com profissionais cubanos, portugueses e brasileiros, com experiência em educação especial.
Apesar dos 17 anos de experiência como intérprete gestual, continua a aperfeiçoar as técnicas e a trocar experiências com membros da ANSA,  bem como com intérpretes estrangeiros. "O que aprendi é também resultado de alguns cursos intensivos no exterior do país na área de interpretação”, concluiu.


O convite de Malavoloneke
Bismarque António revela que o convite para ser intérprete de língua gestual nas conferências de imprensa e actualização de dados da Covid-19 surgiu do então secretário de Estado da Comunicação Social, Celso Malavoloneke.

Admite que os primeiros dias como intérprete "não foram fáceis”, na medida em que tinha medo de ser infectado e levar a doença para casa. Hoje, reconhece que, com o passar do tempo, se sente "mais tranquilo e determinado naquilo que faz”.  
A interpretação de língua gestual, explica, é feita sem o uso da máscara para permitir que os surdos vejam os movimentos dos lábios e as expressões faciais. "Não posso usar máscara, apenas cumpro o distanciamento físico, bem como outras medidas de prevenção”, assegura.

No seu entender, a Língua Gestual  Angolana (LGA) carece de morfemas lexicais e gramaticais. "Quando interpretamos um discurso sem saber o contexto do conteúdo, temos que ser bons naquilo que fazemos e, sobretudo, ter o domínio do estudo semântico da Língua Portuguesa, para tornar mais simples a informação que chega à comunidade surda”, defende.
Bismarque António considera que a interpretação da mensagem em directo torna a actividade mais complexa, pois "não somos formados em Medicina e existem algumas terminologias técnicas que desconhecemos”.

"Não temos um esboço para preparar a informação. É preciso buscar o sentido semântico da zaragatoa, pandemia, comorbilidades e outras. É tudo feito na hora, o que aumenta a responsabilidade”, esclarece.  Bismaque lembra que a primeira experiência que teve como intérprete de língua gestual em directo foi na TPA, durante o programa 10/12. "Foi um momento de euforia, mas também de ansiedade e medo. No final o desafio correu positivamente”, disse.

 
O percurso
Bismarque António, de 32 anos de idade, é casado e pai de um menino. Morador do bairro Marçal, é intérprete e formador de língua gestual. O interesse em aprender a língua dos surdos surgiu em 2004, quando frequentava o ensino secundário.
"Sempre que regressava da escola, olhava para aqueles jovens surdos sentados na Praça da Independência e tinha a curiosidade de perceber o que eles conversavam. Foi nesta altura que começou a nascer o interesse em entender a língua gestual e os seus códigos", revela.

Numa das congregações das Testemunhas de Jeová, conta, começou a dar os primeiros passos para  aprender a língua gestual. "Havia um jovem surdo, que também participava das reuniões, que precisava de entender a pregação. A interpretação da língua gestual era feita por um jovem de nome Roberto Pascoal, que depois tornou-se meu amigo. E foi com ele que aprendi os primeiros sinais de língua gestual”, recorda.

Mais tarde, na companhia de outros amigos, Bismarque António passou a levar a coisa mais a sério. "Além do professor Roberto, o Joesafá, outro irmão, foi um dos meus instrutores”, acrescenta.
Após um ano de aprendizagem, começou, também, a formar outros jovens que mostravam interesse em aprender a língua gestual. Foi, nesta altura, em que conheceu a Associação Nacional dos Surdos de Angola (ANSA), onde aperfeiçoou as técnicas de comunicação. 

"Mais tarde, recebi um convite para trabalhar com a Fundação Open Society, que desenvolvia um projecto com a ANSA, que permitiu a minha ida à África do Sul e, depois, para Suazilândia, em formação. Quando regressei, passei a trabalhar como colaborador no Instituto Nacional para Educação Especial  (INEE) ”, conta. 

Foi durante a participação nos ciclos de formação para professores de linguagem gestual do ensino especial a nível nacional, onde conheceu Carlos Valdez, um professor de língua gestual. "É um colega, mestre e amigo. Ele tem dado um grande contribuído no desenvolvimento da Língua Gestual Angolana (LGA)”.

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