Opinião

Lisboa sem memória africana

Manuel Rui

Escritor

No dia internacional da língua portuguesa foi um ver se te avias de ditos, escrito, falados e vistos na televisão, por vezes abordagens esdrúxulas sobre o acordo portugráfico, com “velhos do restelo” com a fonética mal digerida e omitindo o trabalho da equipa de Buarque de Holanda que no novo e novíssimo dicionário, os melhores da língua portuguesa, onde se encontram os contributos de línguas africanas, como bué, bazar, etc.

13/05/2021  Última atualização 08H55
Nesse dicionário ele coloca extractos de obras literárias onde encontrou a palavra, sejam de línguas africanas, neologismos ou corruptelas. Muita gente deu o seu contributo e eu auxiliei Michel Laban estudioso de nossa literatura e assim aduzimos os vocábulos devidamente contextualizados.

O problema da língua só existe para quem passa a vida a lusofonar e faz concursos de cantigas uma boa parte em inglês. Já Manuel Ferreira fazia a abordagem da língua em Angola como uma conquista de posse e usufruto pois língua não é propriedade. Foi isso que fizeram os intitulados filhos do país que na imprensa de fim do séc. XIX e princípios do séc. XX escreviam melhor que o ocupante. Certo que língua não é propriedade. Língua também não pode ser obsessão. Seria melhor tratar de vasos comunicantes que a história gerou. Assim, poetas angolanos são cantados em Portugal, "Os meninos do Huambo”, basta Paulo de Carvalho apontar o microfone para o público todo o público sabe de cor, aqui vai para uns tempos veio um grupo de cantores de Portugal actuar no cinema atlântico. O público vibrou com o fadista Paulo Bragança, natural de Moçâmedes, Angola e Carmito, todos no fado, também com kizomba e tenho uma amiga académica argentina em Portugal que na consoada ela e a família comem caril moçambiçano e em Portugal entrou a cachupa das ilhas de morabeza, em Lisboa come-se muamba ou feijão de óleo de palma, a música cantada em crioulo de Cabo Verde é apreciada, porque o crioulo dá impressão que nasceu com a música, o meu saudoso amigo Carlos do Carmo pediu ao André Mingas e a mim para fazermos o fado mulato que corresponde à realidade histórica esquecida da cidade, a quantidade de negros que ao longo de séculos se diluíram mestiçando a urbe. Já falei que não concordo com o derrube de estátuas mas quando isso acontece é porque aldrabaram a estátua, se ensinassem às crianças a história verdadeira e não a mandada escrever… falar em invasões, no maior crime demográfico e epistemológico que foi a deslocação forçada de milhões de africanos para o outro lao do mar com a carga simbólica de monumentos que hoje, começam a ressuscitar como fantasmas.

Mas há sempre um dia. Mandaram-me de Portugal o estudo "A PRESENÇA AFRICANA NA MEMÓRIA DE LISBOA”, da arquitecta Helena Roseta (Debate Temático "Demografia e Migrações”-Assembleia Municipal). Roseta é conhecida como pessoa de combate em defesa da verdade. É a imagem do que deve ser vereadora. Isso é que é integrar um município a parte do poder mais próxima dos cidadãos. Ela explica a cidade.

Cita no início o historiador Fernão Lopes Lisboa de "muitas e desvairadas gentes, desde a sua fundação a cidade regista "lutas entre povos do Norte e do Sul (muçulmanos, judeus e cristãos) entre residentes e nómadas, como os ciganos, de que há notícias desde o século XV.”
Quando  o Infante D. Henrique inaugura em 1444 o comércio de escravos e no séc. XVIII aparece já o esclavagismo no Brasil como um sistema e suas estruturas para alimentar o trabalho das plantações da cana do açúcar, café, tabaco e minas. Os navios negreiros às Américas e Índias.
Portugal terá tirado de África mais quatro milhões e meio, sendo o campeão mundial, seguido da Inglaterra e Espanha.

Saltando para o que mais nos importa e seguindo Roseta, foi em 1836, por influência do iluminismo francês que Sá da Bandeira pôs fim ao tráfico de escravos e em 1869 proclamou a abolição da escravatura. Isto para Angola foram tretas pois na minha infância ainda vi escravos amarrados uns aos outros por corda e abrindo estradas.Eram os contratados ou monangambas.
Transcrevo Roseta: "Da presença silenciosa de escravos negros em Portugal ao longo de mais de 400 anos pouco se fala. Mas ela deixou marcas profundas na cultura popular lisboeta.

No séc. XVI os estrangeiros descrevem Lisboa como tendo mais cativos que naturais e no séc. seguinte 10% da população é de negros escravos ou libertos. Os livres podiam ser músicos, marinheiros e até cavaleiros. Refere a autora que em 1535 "o serviço era todo feito por negros e mouros, dificilmente se encontrava uma casa sem criada escrava, que ia às compras, lavava a roupa, acarretava a água e fazia os despejos.” Em 1744, o senado de Lisboa dispôs, que cada bairro ou rua tivesse um certo número de pretos (…) a fim de conduzirem essas imundícies.”

Havia uma figura icónica, "o preto caiador”, juntavam-se no Rossio esperando clientela, juntamente com vendedoras de tremoços, mexilhão e fava-rica. As gravuras da época são de bela explicitude. O grande pintor Bordalo Pinheiro não esqueceu toda esta realidade.
Havia um bairro de negros, Mocambo (etimologicamente umbundo?) que hoje corresponderia à Madragoa. Restou a "Travessa do Mocambo” mais tarde Rua  das Trinas.

"Ao passo que os portugueses, por gravidade, andam sempre tristes e melancólicos, não usando rir nem comer nem beber com medo de que os vejam, os escravos mostram-se sempre alegres, não fazem senão rir, cantar, dançar e embriagar-se,” (anónimo italiano, 1578 a 1589). Na igreja da Graça ainda hoje se podem ver os quatro santos negros e "nas festas de Nossa Senhora de Atalaia os negros deslocavam-se de casa em casa tocando música e exibindo um menino Jesus negro.” Ainda se refere a presença negra na procissão do Corpo de Deus. Ainda revela Roseta que na origem do fado, segundo o musicólogo brasileiro  Ramos Tinhorão, há uma componente negra.
Não resisto a transcrever a postura de Roseta: "Temos de resgatar na toponímia da cidade a memória dos nomes e das tradições africanas em Lisboa. O que persistiu foram lembranças de dor e sofrimento…”

Não tenho espaço mas não posso esquecer que houve uma altura em que os negros se reproduziram tanto que eram mais africanos em Lisboa do que os indígenas.
Obrigado Roseta. Venha para cá botar conferência e editar. Daqui de Luanda um beijo maracujá.

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