Opinião

Luanda resistente

Luciano Rocha

Jornalista

Luanda, que hoje comemora o 445º aniversário, sempre foi cidade sofredora, resistente, que, com lágrimas de transbordar oceanos, viu milhares de seres humanos serem levados à força para terras “de muito longe e jamais voltar”.

25/01/2021  Última atualização 09H01
Luanda, a terra sofredora, mas, igualmente, solidária, já antes daquele êxodo forçado, assistiu à chegada dos ocupantes fugidos das kalembas da península fronteiriça, como eles nunca tinham imaginado existir, quando mais vê-las passar por cima de casas e coqueiros, a gritarem aos intrusos "vão embora, quem vos convidou?”. Mas, ela deu-lhes, na altura, o benefício da dúvida e, generosa, acolheu-os.

O calvário das humilhações começara com os primitivos ocupantes e os que, ocasionalmente, lhes tomaram o lugar. Pelo meio, assistiu a enforcamentos de alguns dos que ousaram fugir à canga da escravatura, no Largo do Pelourinho, no velho Bairro dos Coqueiros, sem nenhuma placa a assinar esse martírio. Também viu, de coração apertado, filhos fazerem o papel de animais de carga a transportarem, em tipóias, ocupantes que chegaram a ela de mãos vazias e depressa imitaram os senhores dos países de onde vinham. Pior, foi quando descobriu que alguns dos que ela nascera imitavam na perfeição os estrangeiros, vestindo como eles, associando-se-lhes na venda de irmãos, oferendo-lhes irmãs como escravas sexuais. Foram estes seres amorais, no fundo, que iniciaram as cortes de assimilados, que nunca mais pararam de crescer.

Luanda, que completa hoje 445 anos de sofrimento e resistência, acompanhou, também, a fúria implacável do paludismo, todas as outras doenças que a fustigaram, como a do sono e tuberculose, cobrindo de dor e luto muitas casas, principalmente, como sempre, as mais pobres e não parou de chorar. Manteve os olhos rasos de chuvas e cacimbos, quando, em nome do progresso - coitado, como tem as cargas largas para carregar tantas desculpas - começaram a esventrá-la. Quase sucumbiu, ao sentir tractores a engolirem-lhe as casas de adobe, muros de aduelas, ferirem-lhe de morte os paus de frutos, mas resistiu, uma vez mais. As lágrimas quase a traíram quando soube que alguns dos seus mais devotos filhos tinham sido encarcerados por quererem ser livres e vê-la livre.

Em Fevereiro, marca indelével  do redobrar de esperanças escondidas, misturou dores e orgulhos de mãe.  Nesse estado cafusado ficou, novamente, quando chegou Novembro, de todos os sonhos, mas voltou a não celebrar o momento em paz, como merecia. Interesses alheios, sempre eles, sobrepuseram-se aos da razão. Como se tudo não chegasse veio Maio orquestrado por forças estranhas. Cerrou os dentes para segurar soluços pelos filhos tombados nos dois lados da barricada e por saber que, algures, em plateias alcatifadas, havia negociantes de armas, fomentadores de guerras, construtores de divisões, hienas vestidas de anjos, a esfregar as mãos.

A reconciliação entre irmãos aconteceu. E cidade sofredora acreditou. Depressa percebeu que, enquanto sarava feridas, enxames de marimbondos, travestidos de seres humanos, se apoderavam dos poucos meios que lhe sobravam para ajudar os filhos mais desamparados. A acção de tais criaturas é mais devastadora do que o paludismo e da pandemia da Covid-19, que a assola. E eles, as aves de rapina, estão aí, à espera da mínima distracção para a voltar a ferir. A cidade sofredora permanece triste, sem motivos para sorrir. Apesar disso. parabéns, pela sua resistência.

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