Cultura

Manter o ritmo “com letras e canções bem arranjadas”

Matadi Makola

Com o movimento cultural a renascer paulatinamente, à medida que o país reabre, por entre as medidas de combate à pandemia da Covid-19, aos artistas cabe apenas seguir em frente. A paralisação da cultura pesou ainda mais para os artistas independentes, que viram sonhos e ambições abruptamente interrompidos. Nesta reportagem, o Jornal de Angola pretendeu dar voz a dois artistas que a pandemia apanhou no grande arranque da carreira: Ivan Alekxei e Mago de Sousa. Infelizmente, mesmo depois de sucessivas tentativas, Mago de Sousa não chegou a deixar aqui as suas impressões. Igualmente uma voz já conhecida no mercado nacional, que se preparava para fazer a sua digressão internacional, Livongh deixa igualmente o seu depoimento, assim como uma kudurista, Maya Zuda, que tudo fez para colocar no mercado o disco que diz ter em dívida para com o seu público.

28/04/2021  Última atualização 09H00
© Fotografia por: DR
Músico de "mão cheia”, Ivan Alekxei é uma das vozes que vem conquistando o mercado nacional nos últimos anos. Com mais de dez anos de carreira, Ivan Alekxei é o jovem que veio do Lubango para brilhar na capital do país. Desde os últimos três anos que é um nome que dispensa apresentação, bastando associá-lo aos sucessos como "Meu Kota” ou "Casamento não é negócio”, músicas que se fizeram obrigatórias no alinhamento das pistas de dança em Angola.Alekxei sempre olhou para o tempo como uma chave para que as coisas pudessem correr bem. Intuitivo, acredita nas coisas que demoram um bom tempo para se firmarem, razão que determinou a escolha em fazer Semba e Kizomba, porque sabia que não teria um público já na primeira aparição. De alguma forma, queria dar ao seu talento um lugar para lá da lembrança efémera de um sucesso. Com mais de dez anos de carreira assumidos, pensa, a olhar para trás, estar a caminhar bem, em-bora reconheça que algumas coisas podiam estar "um bocadinho mais avançadas”.Por um lado, admite fazer parte do percurso de um artista que não está associado a qualquer produtora e que decidiu fazer a carreira à sua maneira."Eu sinto que, com o andar dos anos, as pessoas cada vez mais vão respeitando os meus trabalhos e de novos talentos. A começar agora, passamos também a ser referência”, sustenta. Espera fazer bem as coisas, para que a sua obra um dia se torne em legado.A abraçar uma Kizomba que muitos taxam como "dos kotas”, Alekxei é seguramente o resultado da combinação entre a necessidade de mercado e a natureza mu-sical do artista. Se isso foi brusco, Alekxei é de opinião que quem trabalha com o "showbiz” sabe que é impossível não sofrer essa pressão do ambiente do mercado musical e das produtoras."É impossível não conviver com isso”, enfatiza. Porém, ressalva que a melhor "defesa” é manter o foco no caminho desenhado para trilhar."Não é fácil, porque muitas vezes nem precisas que as produtoras te ajudem, basta não atrapalhar. E, infelizmente, algumas produtoras dedicam-se arduamente a fazer com que os outros, que não sejam da sua alçada, não funcionem”, lamenta o músico.Contudo, o artista vê como algo que não se pode controlar ou fazer extinguir no outro, contra todas as adversidades do circuito e empresas do processo de produção musical."Na música, existe uma coisa que as pessoas não po-dem controlar, que é a alma e o coração, e a música chega e fala ao coração das pessoas. E isso nenhuma produtora tem força para controlar”, observa. 

 Relação com produtoras

Em relação a "dissabores” com as produtoras, não vê razão para se considerar "enganado” ou "empatado”."Porque também tive algum benefício, mesmo que não se tenha cumprido na totalidade, nem mesmo os 50 por cento. Mas eu tive benefícios. Sei que as duas produtoras com as quais assinei deram-me alegrias e tristezas, uma mais do que a outra”, reconhece.Superadas as dificuldades e decidido, até ao momento, a trabalhar por sua conta e ris-co, olha para todo esse ambi-ente como parte da vida, no qual se deve saber cair, levantar e continuar."Não tenho muito a dizer, apesar de algumas terem ‘pegado pesado’. O showbiz é assim mesmo”, explica.

Percebe-se nas suas letras que é um artista de visões e conceitos bem formados, fazendo sucessos sem recorrer aos ditos "adoços”, que ora insinuam, ora se concretizam em deselegantes obscenidades. Alekxei defende que essa postura resulta da sua educação musical, que começou na igreja, exigente no exercício de autocrítica. Nos seus trabalhos, é ele o primeiro a emitir opiniões de censura, obrigando a si o maior posicionamento imparcial.

"Eu acredito em Deus e creio piamente no poder das palavras. As palavras têm mesmo o poder de mudar muita coisa. Se pudesse contribuir em alguma coisa para o meu país, que fosse por coisas positivas”.Trabalha atentamente a pensar nisso. E tem receios, por saber que, hoje, o acesso das crianças à música dos adultos é muito fácil."Sou pai e tenho responsabilidade; sei que isso amanhã poderá custar-me a nível de consciência. Respeito quem faz o que está a fazer, só lamento que essa conduta tenha mais espaço no nosso país, muitas vezes mais do que a música com mensagem e com bom enquadramento”, critica.

Pessoalmente, optou por essas letras e canções bem arranjadas, porque gosta de ter boas mensagens nas músicas. Cresceu a ouvir boa música, com os pais e avós, elevando os seus níveis de exigência do que queria fazer um dia.Por outro lado, flagrante na sua música "Meu Chão”, Ivan Alekxei desenha não apenas a sua visão de país, mas também delimita uma canção que toma como sua bússola nas ocasiões em que a vaidade lhe der a percepção de ser demasiado grande para isso ou aquilo.  Para o país, escreveu motivado por um olhar que nutria sobre como Angola ser um país bom, mas que não era muito bom para viver. Uma visão que ganhou outros contornos, no desenrolar do seu crescimento…

"Sempre olhei assim, porque sempre me pareceu assim. Foi ao crescer que me apercebi que nós temos um grande país. O país não tem nada de errado, nós é que precisamos fazer a nossa parte. Então, quis fazer uma música que representasse aquilo que eu penso e sinto por Angola. Meu Chão tem muito a ver com o facto de a colocar sempre no lugar que deve estar”, sublinha.Num outra faceta da mesma música, que serve para alertá-lo como às vezes o sucesso faz a cabeça de quem está no auge, refere-se a casos de artistas que se envaidecem ao ponto de serem ingratos com o pú-blico que o colocou naquele pedestal."Eu queria fazer uma música para a qual, se qualquer dia eu perder a noção das coisas, possa voltar e me fazer lembrar como foi difícil chegar até onde cheguei, para assim não quebrar esses laços, com arrogância, prepotência e egocentrismos”, explica.

"Meu chão” é essa chamada de atenção para que não fique muito deslumbrado com o sucesso, porque tem as suas consequências e nem todas elas são boas, algumas são bem amargas”, pontua.Já em "Até amanhecer” faz um pulo para fora da nossa geografia cultural e abraça ritmos com os quais convivemos há décadas. Alekxei assume essa influência por, durante muito tempo, o país ter consumido muita música brasileira e cabo-verdiana, que inclusive tinham destaque nos meios de comunicação social. Porém, revela que a música não foi feita intencionalmente a pensar no público brasileiro ou outro da latitude lusófona."Foi simplesmente a pensar no ‘feeling’ que a música me deu e, como artista, simplesmente gosto de manter essa liberdade de fazer o que quero. Deu-me aquela vontade e segui a intuição. Quis fazer uma música num estilo mais tropical, mais samba e lambada. Foi somente a pensar em fazer a música”, justifica.

Naturalmente, quanto à aceitação, admite que seria bom que fosse, por ser um mercado que lhe interessa."Para nós, músicos PALOP, quem é que não queria entrar no mercado brasileiro? Se entrasse, seria uma bênção. A música é romântica e tem aquele feeling que faz pensar Brasil”, enfatiza.A sugerir interpretações sobre a condição social do artista e a sua importância dentro da sociedade, Alekxei acredita que as pessoas interpretaram esta música de forma muito pessoal. No que quis realmente dizer na música, expunha que a luta não devesse ser mais entre artistas, produtoras e media, mas, sim, harmonizar esse ambiente e fazer tudo acontecer de forma normal, segundo o mérito de cada um.
"Espero que quem a oiça se conheça o suficiente para se identificar ou não com a sua vida. ‘O Imigrante’ era necessário, porque, infelizmente, nós convivemos com um mercado onde existem pessoas que trabalham muito, para que outras pessoas não singrem. É difícil para determinadas pessoas que só querem fazer bem as coisas”, desabafa.  Em "Só Povão” desperta mais a sua veia de artista preocupado com os problemas da sociedade, numa letra a fazer lembrar Paulo Flores, de quem assume ser um dos "herdeiros” musicais."Prezo muito esta música, por mostrar aquilo que gosto e imprimir a minha visão sobre os aspectos sociais. A esse senhor que se chama Paulo Flores eu também faço a minha vénia. Bebi muito dessa música, que surge nos anos noventa. É a nossa escola”, classifica.    
Livongh valoriza teor das letras

Miguel Gervásio "Livongh” é um artista de carreira consolidada. A Kizomba é o seu rosto. Músico preocupado com o teor das letras, lamenta o facto de, hoje, muitas músicas terem mensagens obscenas, o que o leva a avaliar que não há controlo."Existem letras obscenas que, livremente, circulam pela nossa media e são bem recebidas até por um público que não tem medo da influência disso nos nossos sucessores”, critica.Não obstante isso, é dos que advoga que a Kizomba está no bom caminho, embora ainda se faça com muita dificuldade. Sinal positivo dos tempos de pandemia, referiu, que neste momento, o seu álbum está a vender muito mais no formato digital. Sobre o que ficou adiado, a pandemia impediu-lhe a oportunidade de seguir em tournée por oito países da Europa. Sem culpados, sobra-lhe apenas seguir."Para nós, artistas, está a ser muito difícil”, desabafa. Sobre possíveis apoios do órgão de tutela, alega não ter muito a dizer, porque, na sua visão, na cultura vive-se "um salva-se quem puder”.  Quanto ao gradual regresso do movimento cultural, garante estar bem preparado, tanto que tem realizado espectáculos por casas de música, onde é solicitado.

Canções decentes fazem parte da educação de Maya Zuda
Maya Zuda nunca foi associada ao que de negativo é diagnosticado no Kuduro. Por assim dizer, passa como "a menina bonita do Kuduro”, cuja música é aceite em vários círculos. Maya representa essa postura não só na letra, como também na indumentária. Segundo ela, as letras sem obscenidade fazem parte da sua educação, passada numa família cujos valores tinham a religião como prioridade. O seu público gostou e se habituou com esta imagem."Dizem que as pessoas cantam para o público gostar, até mesmo quando a música trata de coisas obscenas ou incentivem valores não plausíveis. Dizem que ‘vazam’ ou ‘batem’ rápido, mas eu não sou capaz de tudo pela fama. Se tiver que parar, paro, mas sem fugir da minha essência”, defende a kudurista.
Produtoras, claro!

Quanto ao facto de até agora não ter lançado o seu álbum de estreia, há muito prometido, justifica ser o que chega mesmo a chamar de infelicidade. "Porque aconteceram muitas coisas”, lembra.Explica que a sua má sorte com as produtoras já se arrasta desde o período em que começou a cantar, à época sob o cuidado do DJ Romano, que teve de convencer a sua família. Posta no mercado, surgiram propostas de produtoras e Maya seguiu, obedientemente. Porém, a relação com as produtoras não foi justa nem leal."Praticamente, só me exploraram, porque eu era ainda muito ingénua. Não havia muita evolução”, explica.

Decidiu, então, mudar para uma outra produtora, mas  aconteceu a mesma coisa. Depois, surgiu o patrocínio de forma surpreendente. A mãe estava num salão de cabeleiros e lá cruzou com outra cliente, que se confessou fã da filha, tendo ficado estupefacta ao saber que ela não tinha disco. Conta Maya que esta senhora se disponibilizou prontamente em patrocinar o seu disco. Maya estava associada a uma produtora e esta, naturalmente, tomou o dinheiro a fim de conduzir a produção do disco. Chegou mesmo a gravar as músicas, mas sem nunca concretizar o disco."Simplesmente nada. Foi tudo em vão. Fui vítima da ganância das produtoras. As pessoas pediam o CD e eu não sabia o que dizer”, lamenta.Devido a esses episódios, Maya cai numa desmotivação muito grande. Já não levava o mundo da música a sério, até chegou a ponderar em deixa de cantar. Entre o fim e o descanso temporário, Maya ficou quase quatro anos fora dos palcos. 

"Porque optei. Quis descansar. Estava mesmo desmotivada. Decidi priorizar a minha vida conjugal e acabei por ser mãe”, conta. Entretanto, o nome Maya Zuda tinha a sua força e os fãs não paravam de pedir o regresso.  Com a pandemia na contramão do regresso, Maya Zuda realiza o apelo dos fãs. Regressou, decidida a trabalhar de forma independente, apenas sob a companhia da sua agente, Fernanda Sobral."Neste momento, já estamos a acertar tudo para o disco. Desta vez sem ajuda de terceiros. Acreditamos que o disco saia ainda este ano”, promete.

Anunciado anteriormente que o disco teria como título "A Minha Vez”, Maya diz que o manterá, por perceber que até ao momento nada a levou a alterar essa escolha.  Entretanto, partilha que o disco não terá apenas o afrohouse que a fez conhecida do grande público, mas várias surpresa de outras facetas que a cantora quer mostrar ao seu público."Atendendo ao tempo de espera, deu para explorar muito mais os ritmos musicais”, avança. Negou entrar em mais detalhes sobre a concessão do disco, embora tenha realçado que sempre foi apaixonada por músicas antilhanas. Se veremos uma Maya Zuda a fazer guero-zouk, essa é uma surpresa que os fãs saberão com o disco."Eu sou de todos os estilos. Poderia ser qualquer coisa. Quero que ainda fique em segredo”, faz mistério.

Num tempo difícil para a cultura em todo o mundo, dessa vez Maya garante estar imbuída de uma grande vontade de superação."Independentemente de estarmos a atravessar esta pandemia, o álbum deve sair. Eu não vou lançar o álbum para fins lucrativos ou alguma necessidade semelhante. Vou lançar por precisar, porque eu acho que já é altura, porque devo isso aos meus fãs”, garante.O disco sairá nos formatos físico e digital.

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