Cultura

Normatizar o português angolano

Somos apologistas de que as marcas verificadas no português falado no contexto nacional são mais do que suficientes para o país pensar na criação de comissões para discussões profundas sobre a norma do português angolano. O país não está virgem quanto a investigações sobre a existência do português angolano .

09/05/2021  Última atualização 14H47
© Fotografia por: DR
Cada língua perpassa ideologias, culturas e identidades, o que a torna única. Essa percepção leva-nos ao reconhecimento dos "portugueses do português angolano” (diversidade linguística) e do enriquecimento linguístico que daí advém. A língua tem uma simbologia e serve de recurso no processo de comunicação da sociedade a que pertence. A língua pode servir de mecanismo de opressão ou de manutenção das relações sociais, se partirmos do pressuposto de que o cenário sociolinguístico pode impor algumas mudanças dentro da mesma.

A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), uma instituição com finalidades políticas para a expansão da língua portuguesa no mundo, através de encontros de povos que directa ou indirectamente têm a língua portuguesa como fundamento de identidade, estabeleceu, em 2009, o 5 de Maio como a data de celebração da língua portuguesa e das culturas lusófonas. Porém, somente em 2019, através da 40.ª Conferência Geral da UNESCO, se passou a considerar o 5 de Maio como o Dia Mundial da Língua Portuguesa, data celebrada em Portugal, Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné-Equatorial, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. 

O projecto político de difusão da língua portuguesa no país é reforçado pela Lei Magna (Constituição da República de Angola de 2010) e pela Lei 32/20 de Bases do Sistema de Educação e Ensino, que tornam o multilinguismo angolano em monolinguismo, embora a CPLP considere o Dia Mundial da Língua Portuguesa um acto de celebração do multilinguismo e da diversidade cultural, tendo em conta o seu contexto de coabitação com outras línguas. Mas esse lugar que se devia reservar e valorizar tornou-se uma quimera na realidade angolana, pois, o (des)lugar que ocupa a diversidade linguística nas instituições de ensino e sociedade em geral reforça estereótipos que silenciam sujeitos e discursos, o que faz cogitar alguns questionamentos: com quem celebrar o Dia Mundial da Língua Portuguesa em Angola? Que língua portuguesa é essa que se celebra? Como a escola lida com as questões de diversidade linguística? Como a escola reflecte essa data?

Embora o Censo Geral da População e da Habitação em Angola (2016) relate que a língua portuguesa no país é falada por cerca de 74% da população, tal resultado não nos inspira confiança, na medida em que a questão formulada para o efeito anula a possibilidade de compreendermos se esta é falada como primeira ou como segunda língua. Essa tendência de levantamento acaba por homogeneizar linguisticamente Angola, provocando crispações no sistema de ensino-aprendizagem. Em pesquisas desenvolvidas nas províncias de Malange em 2017 e Cabinda em 2021, depreendemos das áreas "rurais” um cenário sociolinguístico próprio: as línguas nacionais circulam no ambiente familiar até ao escolar, resistindo à imposição do português como a língua de ensino, de oportunidades e de ascensão social. Entretanto, a defesa da língua portuguesa deve estar equiparada à defesa das línguas nacionais, de modo que tenhamos um país democrático, imparcial e justo, pois "as línguas não existem sem as pessoas que as falam, e a história de uma língua é a história de seus falantes” In.: Da linguística formal à linguística social (Camacho, 2013, p. 34).

5 de Maio em Angola
O 5 de Maio em Angola deve ser vivido de maneira reflexiva, impondo-se a promoção de encontros e discussões sem tabus e menosprezos sobre o português que assumimos ser angolano. O facto de estarmos num país em que ocorrem mudanças sociais, vivências históricas e geográficas, remete-nos de forma implícita aos "portugueses do português”, designação que visa alicerçar a existência de variação linguística, pois, a língua sofre alterações de âmbito fonético-fonológico, morfossintáctico, semântico e até discursivo.

 Nessa ordem de ideia, somos apologistas de que as marcas verificadas no português falado no contexto nacional são mais do que suficientes para o país pensar na criação de comissões para discussões mais profundas dessa variante do português e que comece já a trabalhar para a norma do português angolano. É mais do que um facto a diversidade linguística e cultural no ambiente escolar, o que exige do professor a formação do sujeito plurilingue e pluricultural. Cogitamos a possibilidade de que as inúmeras dificuldades que os alunos enfrentam é resultado da recusa da variação linguística em sala de aula, comprometendo a compreensão, pois o ensino não tem em atenção a língua materna do sujeito e o seu repertório linguístico.

Não podemos dizer que o país ainda está virgem quanto a investigações sobre a existência do português angolano. Adianta realçar alguns estudos: "Interferência do kimbundu no português falado em Lwanda”, de Amélia Mingas, "A língua portuguesa em Angola: um contributo para o estudo da sua nacionalização”, de Domingos Gabriel Ndele Nzau, "Dinâmica da pronominalização no português de Luanda”, de Maria Helena Miguel, "A crise normativa do português em Angola: clitização e regência verbal: que atitude normativa para o professor e revisor?”, de Paulino Soma Adriano, "Caracterização da norma do português em Angola”, de Márcio Edu da Silva Undolo, "Nasalidade Vocálica do Português: pistas para a identificação forense de falantes”, de Manuel da Silva Domingos (na sua dissertação, o autor apresenta características fonéticas específicas às vogais nasais do português angolano em comparação às do português europeu).

A língua é, portanto, identidade e cultura. A inadmissibilidade da variação linguística em Angola e a inflexibilidade de usos na escola, como se a língua não falasse por si, acarreta implicações no processo de ensino-aprendizagem. A escola tem funcionado como a instituição que se volta ao reducionismo da diversidade linguística em favor da norma-padrão, a gramática normativa. O (des)lugar da variação linguística nos livros didácticos e planos curriculares restringe o domínio e utilização linguística do aluno, tornando-o assujeitado, reduzindo a probabilidade de desenvolvimento das suas capacidades psicológicas, cognitivas e metalinguísticas, dificultando, assim, a aquisição da língua de ensino, o português. Importa realçar que são as variações que mostram claramente o quanto a língua é dinâmica e evolutiva. Esse dinamismo envolve questões de âmbito social, histórico (contactos de línguas), geográfico. A língua vai-se modificando ao mesmo ritmo em que se modificam as sociedades.

Bernardo (2017), no seu artigo "Norma e variação linguística: implicações no ensino da língua portuguesa em Angola”, realça que a doutrina do "certo” e "errado” que circunda a escola enaltece a norma prescritiva que tem como foco a "norma-padrão” que é sustentada pela expectativa da coisa imaginada contrariamente ao domínio da experiência do sujeito. A realidade multilingue, em que a sociocultura e a sociolíngua são visíveis em assumir o carácter prescritivo da língua, é desaconselhável; implica dizer que a norma do português ensinada nas escolas nada tem a ver com a realidade, o uso concreto da língua. O autor considera ainda que "a sala de aula deve tornar-se uma oficina reflexiva, questionadora, de modo a desconstruir o centralismo dado à norma-prescritiva/padrão. O professor deve ser o veículo que permite esta reflexão, de forma que as variações linguísticas sejam parte das abordagens no ensino da língua portuguesa, visto que elas espelham a língua em uso” (BERNARDO, 2017, p.42).

Entretanto, a comemoração do Dia Mundial da Língua Portuguesa deve ater-se às questões linguísticas e culturais de forma contextual, servindo de elemento de integração dos povos que compõem o país. O não reconhecimento da variação linguística como elemento de valor torna o português angolano mais dependente de uma norma linguística que não o representa. Referimo-nos à gramática normativa, que exerce um papel doutrinário na língua, sendo que muitos professores não possibilitam a reflexão entre a gramática normativa e a gramática funcional. Torna-se, portanto, necessário reconhecermos a realidade sociolinguística angolana e pautarmos pela unidade na diversidade, inibindo a privação de sujeitos e culturas. Isto passaria por (i) repensar o papel da escola na sensibilização para a diversidade linguística e cultural, (ii) apostar na formação de sujeitos bi-multilingue e bi-multicultural, (iii) não marginalizar, diabolizar a diversidade linguística, dando a possibilidade de fazer parte das reflexões em sala de aula como recurso para o aprimoramento da aprendizagem, (iv) (re)conhecer a relevância das línguas nacionais que são as maternas de boa parte da sociedade, conservando, assim, a identidade dos seus falantes, (v) (re)definir políticas da variação ou mudança linguística, contribuindo para a valorização e a manutenção da variação linguística do país. Por outro lado, sugerimos que se encontre uma data para comemorar-se o Dia das Línguas Nacionais em Angola, abrindo a possibilidade de reflexões sobre a realidade linguística e estratégias para o ensino; isso passaria pela definição do estatuto das línguas não hegemónicas.

* Mestre em Linguística e Professor Universitário
Referências

CAMACHO, Roberto Gomes. "Da linguística formal à linguística social”. São Paulo: Parábola, 2013.
BERNARDO, Ezequiel Pedro José. "Norma e variação linguístca: implicações no ensino da língua portuguesa em Angola”. In: TIMBANE, Alexandre António; BALSALOBRE, Sabina Rodrigues Garcia (orgs.). "África em Língua Portuguesa: variação no português africano e expressões literárias”. Lisboa: AULP, 2017. p. 37-52.
Ezequiel Bernardo |*

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