Opinião

O caos que nos ensurdece

Adriano Mixinge

Escritor e Jornalista

Há gente que não é surda, mas se os julgássemos pelo tom e o volume de voz que normalmente usam ao falar, nós diríamos que o são: escutar-lhes, na verdade, quando não transtorna só irrita. A voz e a maneira de falar são para a personalidade o mesmo que a expressão do rosto e os olhos à cara.

16/03/2021  Última atualização 11H26
Nos últimos anos aumentaram os seres e as formas que eles têm para nos dizerem coisas e elas nos revelam dados sobre quem fala que até os próprios podem nem saber, não se importam em saber ou mesmo sabendo não tem como calibrar bem o seu impacto: isso acontece tanto com os que falam aos berros como aqueles que nos falam através dos gestos mais simples, incluindo aqueles que nos falam com os seus silêncios, que também precisamos de escutá-los.

A quitandeira que passa e olha ou o polícia que controla o trânsito e nos ameaça, o chefe que manda à-toa ou a empregada de limpeza que ajoelha e sofre, a médica que cumprimenta ou o jardineiro que assobia com gosto, o porteiro que canta ou a professora que nos reprova, o político que nos explica as decisões que toma ou o padre que ora, o motorista que pensa e fala ou o colega que se cala e chora: todos eles falam-nos sobre coisas que nem sempre são as mais óbvias, ainda que o pareçam.

A recepcionista que pinta as unhas ou o moderador do debate que divaga sem parar, o árbitro que faz gestos desesperados ou o treinador que cai fulminado por um AVC, o cantor que afugenta ou o bailarino que escorrega: todos eles, gente do mundo e gente porventura mundana falam do jeito que podem e lhes apetece. As condições das suas existências falam coisas sobre as sociedades, no conjunto ou em parte, em que eles se encontram.

Já escutei muita gente a falar e o contrário, também. O Pepetela ou o Manuel Rui Monteiro, o José Saramago ou a Toni Morrison, a Milena Busquets ou o Felipe González, o Achille Mbembe ou o Sami Tchak, o François Hollande ou o Papa Bento XVI: numa sala de aulas da Faculdade de Arquitectura da Universidade Agostinho Neto, em Luanda ou numa missa na Esplanade des Invalides, a falar sobre Kapuscinski ou a apresentar o seu livro "También esto pasara”, numa recepção na Embaixada da Polónia ou à saída de uma casa de banho, na sede da UNESCO, no Centro George Pompidouou na Universidade Alfonso X El Sabio, na Villanueva de La Cañada,entre outras circunstâncias, escutei-os todos eles a falarem,cara-a-cara e à viva voz para que, de uma vez por todas, entendesse o valor da vida que vivemos.

Até 1990, durante a nossa rotina quotidiana escutávamos um número muito limitado de pessoas, basicamente aquelas com quem nos cruzássemos, descontando já os que ouvíamos de relance, que ouvíamos a gritar, que ouvíamos num programa de rádio ou de televisão local, se os víssemos.
Com o surgimento da Internet e o giro de trezentos e sessenta graus dado pelo mundo, depois de 1995, escutamos demasiada gente, ouvimos a falar muitas mais e, em ambos os casos, nem precisamos cruzar com elas. Mas, também, abundam, proliferam e prosperam os charlatães e os impostores, sob o olhar silencioso dos que não se querem meter em problemas, - como se isso fosse possível -.

Quem fala e quem escuta podem estar em qualquer parte e podem nos falar sobre mais diversos assuntos: há quem adora tanto os podcasts que termina por montar um, enquanto outros, provavelmente os mais avisados, optaram por falar utilizando imagens. Nunca a humanidade teve tanta gente a falar e gente a escutar ao mesmo tempo.

 Existem infinitas maneiras de falar e o mesmo número de formas de escutar: se existir muito ruído é possível que todos falem e ninguém escute nem entenda nada, ou, pior ainda, que todos oiçam, mas ninguém perceba nada tão bem como precisaria, ninguém aja nem mexa sequer um dedo mendinho, que abundem os seres petrificados pelo barulho e pelo belo caos que há em nós.

Precisamos de menos ruídos no espaço público – organizar, animar e estimular muitos mais debates e conversas entre jornalistas e especialistas bem documentados e com opinião autorizada, reforçando a importância do contraditório, da réplica e do direito de resposta -para que possamos deixar todo o mundo falar, saber quem diz o quê, porquê, para quê e o que for necessário. Talvez assim nos entendamos melhor!

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