Opinião

O cinema faz parte da solução

Adriano Mixinge

Escritor e Jornalista

Fez um calor de deserto. Entre a sexta-feira e o sábado passado vivi quarenta e oito inusitadas horas: pela primeira vez, fui convidado para fazer uma aparição fugaz, - que os cineastas designam de cameo -, no filme “A Nossa Senhora da Loja do Chinês” de Ery Claver, assistência de Kamy Lara, uma produção de Jorge Cohen e do Colectivo Geração 80.

26/01/2021  Última atualização 07H15
Participamos na rodagem respeitando as regras de biossegurança até onde a paciência permitiu, sempre a esfregar álcool gel às mãos: ajeitamo-nos, apesar de a Tourada precisar de uma restauração profunda e de um projecto de gestão inovador. Sobre qual é o argumento do filme, o que faz a personagem que represento só poderão saber depois da estreia.
Os actores e os convidados para os cameos chegaram de manhã e permaneceram no sítio até ao pôr-do-Sol: foram "mimados” pela Cleusa, a Hilma, a Marta, a Rossana, Vera, e Marilu e as  suas colegas, pela Prudenciana que ia dando ordens firmes e céleres, pela jovem que vinha insistentemente nos recordar que deveríamos colocar bem as máscaras. A Ana Paula Lisboa aproveitou entrevistar todos, descontraidamente.

Quem nunca esteve num set de cinema nem que for só levantando as sombrinhas para que os actores não se desidratem pela insolação, quem nunca pintou um quadro ou foi a um museu vê-los,quem nunca leu um bom romance, quem nunca esteve num grupo de dança, nem sequer esteve na "troupe de téâtre” da escola, quem nunca fez nem nada que se lhe pareça tem dificuldades para entender qual é a importância das artes e da cultura.
No hipotético caso de que, mesmo tendo feito tudo isso, a pessoa ou, de um modo mais geral, o país ignorar as evidências, então, estaremos em face de um problema muito grave: é o caso do ignorante que pensa que pode ser feliz ao sê-lo, persiste em negar o que lhe enriquece, optando pelas piores hipóteses, aquelas que menos lhe edificam. As opções de Angola não se circunscrevem ao petróleo: desenvolver as energias verdes e renováveis permitiria suprir as necessidades energéticas, com uma postura respeitosa do meio ambiente.

Para além da fatalidade dos touros condenados a morrerem na arena, do realizador do filme não poder utilizar drones por causa do tráfico aéreo que passa encima da praça ou da memória do dia em que o Nagrelha esteve lá, a Tourada tem também uma memória feliz que, como o Fradique e o Jorge Cohen tiveram o cuidado de informar-nos, está relacionada com o Projecto Kalungaque trouxe, nos anos 70, o Chico Buarque, o Djavan entre outros músicos brasileiros à Luanda: saber, fez subir a adrenalina em nós, tanto como a poeira que envermelhou-nos os sapatos.Os guardas, os aviões que passavam de modo regular, a lasanha que comemos e a poluição sonora da zona ajudaram-nos a sobrelevar a algazarra dentro da Tourada.

Como se fóssemos membros de um grupo de canto coral estiveram na Tourada: o Adelino Caracol, a Claúdia Pucuta toda gira, o Clemente Chimuco, o Miguel Hurst sempre assertivo, o Orlando Sérgio com memória de elefante e a fumar, o Carlos Alvesbem-disposto, o Roberto Figueira, o António de Oliveira (Delon), o Lito Ferreira, o Mussunda Zombo atento e perfumado, a Maura Ribeiro com aspecto de musa medieval e de deusa Maasai, a Dona Paula sorridente, a Margarida fotogénica e uma equipe de produção que, se incluirmos os extras, os empregados das tascas e a gente anónima terão sido duzentas pessoas a se beneficiarem de empregos directos remunerados, na medida do possível, ou a serem beneficiários indirectos por via da prestação de serviços como as empresas de cathering ou até mesmo o engraxador que aproveitou a fezada.

Quando o altifalante da Kamy esteve mudo, fora do set, em sã cavaqueira falamos sobre o estado da Cultura e da oportunidade que seria desenvolver o Cinema como uma aposta para a criação de empregos como acontece ali onde as políticas públicas já o permitem: Ngoi Salucombo falou-nos sobre a dinámica na África do Sul, algo para invejar. A fotografia do Cinema Karl Marx que ele postou ontem nas redes sociais é prova do quão crítico o panorama é.

Houve sessão de portas abertas: o Pablo Mazarrasa, a Alisbel Hechevarría, o Ondjaki, a Tchilóia, o Hugo Salvaterra, o Adalberto Cawaia, o Mawete Paciência e o Raimundo Salvador estiveram lá. Depois de deleitar-nos com a "pétite histoire” sobre intelectuais, artistas, músicos angolanos com quemse cruzou ao longo da sua carreira, o Orlando Sérgio afirmou que, apesar de ainda serem muito menos do que se necessitam, "nunca antes o nosso país teve tanta gente formada no domínio do Cinema e do Aúdiovisual”.
Cada minuto que o Estado angolano deixa de investir nas manifestações de Arte e na preservação do património cultural está a perder dinheiro e tempo, está a perder a possibilidade de empoderar os criadores e a sociedade, está a perder capital cultural para uma cidadania decente e patriótica: uma decisão insólita, inconsequente e irresponsável. Precisamos de nos reinventar já: o cinema faz parte das soluções.

Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Opinião