Opinião

O crítico de arte, os riscos e as ameaças

Adriano Mixinge

Escritor e Jornalista

Só muitos anos mais tarde é que, de um modo nada simpático, dei-me conta de que ser crítico de arte, afinal, também é uma profissão de risco e, - apesar de que não deveria ser assim -, ser ameaçado faz parte dos ossos do ofício.

13/04/2021  Última atualização 06H15
Sempre que escrevo uma crítica de arte faço questão de dar a entender que não é uma questão pessoal, mas sim algo que serve para enriquecer o debate de ideias; trato de fazer ver que, no fundo, o objectivo é pedagógico e que, em última instância, ela serve para esclarecer a opinião pública, os cidadãos e, muito particularmente, o pessoal amante das artes, das literaturas e da cultura.

Todas as vezes que faço um juízo de valores, uma análise crítica ou julgo a maneira como determinados critérios artísticos, estéticos e culturais aparecem (ou não, de que modo, para quê, o que significam e etc) numa obra literária, numa obra de arte ou, de um modo geral, em qualquer criação intelectual e estética, antes que outra coisa, eu ponho em risco a minha própria reputação.

Sem querer fazer-me de vítima nem nada que se lhe pareça (uma vez que a pretensão de terceiros nunca realmente me afectou assim tanto, antes pelo contrário, estimulam-me tanto que, creio mesmo, que é por isso que contínuo a fazer o que faço), depois de vinte e oito anos de ofício tenho um monte de anedotas, episódios e situações em que me senti, por instantes, se não directamente ameaçado ou em risco, ao menos vulnerável.

Não havendo no nosso país uma sólida tradição de crítica de arte, de crítica literária ou, em geral, da crítica da cultura; nem tendo na minha família, em particular, quem alguma vez tenha exercido como crítico de arte (ou feito trabalho similar em áreas de criação e de estudo afim) é na minha história pessoal e íntima que encontro as razões de, hoje, poder fazê-lo com tanto prazer, gosto, serenidade e espírito de serviço público.

Educado na tradição das organizações político-partidárias infanto-juvenis dos anos 70 e 80 do século passado, em que o exercício da crítica e da autocrítica era uma moeda corrente e tendo vivido submerso em ambientes de estiga, de chacota e de bullying constante, - numa família numerosa, nos grupos de meninos do bairro ou entre colegas, nas escolas e nos internatos -, depois de terminar a licenciatura em História de Arte, a crítica de arte irrompeu na minha vida como uma consequência (vocação) quase natural, o resultado da assumpção criativa de uma história pessoal.

No entanto, a primeira vez em que fui ameaçado foi, em meados dos anos 90, quando um escritor e político – na altura deputado - insatisfeito por não ter sido escolhido para fazer parte da lista de artistas plásticos para o pavilhão de Angola na Iª Bienal de Joanesburgo, do qual fui o curador de arte, mandou dizer (e, depois, assumiu o recado na minha cara) que iria "cilindrar-me”, uma imagem que se interpretarmos à letra faz estarrecer.

A segunda vez, - desta vez eu senti-me em risco -, foi nos anos 2000, - eu já trabalhava como diplomata na Embaixada de Angola em França - quando um artista plástico dos mais relevantes do panorama da arte contemporânea depois de questionado pela maneira como organizou a Trienal de Luanda e o Pavilhão de África na Bienal de Veneza chegou a afirmar, - de um modo muito criativo - , num programa "Em Estúdio Com…” da Televisão Pública de Angola que eu só poderia estar a trabalhar para os serviços de inteligência de países ocidentais, acusação que até hoje ainda me faz rir para não chorar.

Evidentemente, aqui e agora, temos todo interesse em chamar a atenção sobre a forma velada (ou explícita) que persiste, em determinados sectores e personalidades da nossa sociedade, a ideia de que haja quem pelo "lugar que ocupa na sociedade” nunca deve ser posto em causa nem o seu trabalho pode ser objecto de qualquer crítica, reparo ou questionamento, que não seja elogioso.

Com esta crónica, o que pretendemos é dissuadir a tendência que uns têm de ameaçar ou colocar em risco os outros - que aspiram a ser úteis -, abafando o debate de ideias e de critérios, a conversa que, talvez, ajudasse a melhorar o trabalho dos artistas, criadores e intelectuais e, de um modo geral, a qualidade da produção artística e cultural que chega aos cidadãos.
Podemos, então, continuar a ter, - como diria o Raimundo Salvador e os seus amigos -, uma boa, pacífica e profícua "conversa à sombra da mulemba”?

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