Opinião

O custo do azar!

Augusto Cuteta

Jornalista

O jogo está duro. Nenhuma das equipas quer ver a bola dentro da sua baliza. As defesas parecem melhor que o ataque. Há duas horas que se está nesse chuta daqui e aquele manda dali. Golo que é golo não entra.

02/05/2021  Última atualização 09H58
A partida não tem árbitro. Cada um sabe quando se dão as faltas. Fora de jogo não existe nas regras do jogo, que só pára uns minutinhos quando está a vir mãe com criança ao colo ou mulher gestante.
Os senhores e jovens da banda já sabem que, quando tem pelota na rua, não adianta ter banga. A travessia no perímetro futebolístico, a metade da rua que é usada como campo, se faz na brasa. Assim se evita levar remate, ou melhor, ser esquentado.

Quando isso de esquentar acontece, dá bwê de makas. O primeiro jogador que for apanhado pela vítima do remate, se for menos caenche leva umas galhetas de controlo. Mas os outros jogadores apaziguam sempre o bilo. Problema maior é com as tias. Essas gostam de levar consigo as bolas. E isso, às vezes, acaba com o jogo!

Se a bola "mengar” ou for presa por uma senhora, pede-se mil favores para a sua devolução. Mas essas tias do bairro disparatam que disparatam! Nem poupam nas palavras quando se atiram contra as mães alheias.
Umas, mais fixes, andam só com a bola uma pequena distância e depois a jogam de volta para qualquer canto. Sai só uns "mixoxos” e mais nada. E os putos agradecem. A pelada reinicia.

A noite está a querer impor-se ao dia, mas a bola teima em não se fazer ao golo. No campo, estão os maiores craques da banda, mas nenhum deles consegue a proeza de enfiar a "Dente de leite” à baliza.
A equipa dos Sem Camisolas já teve umas boas oportunidades para marcar, mas o guarda-redes dos Vestidos é muito bom. Para dar outro ritmo ao jogo, uns jogadores entram e outros saem, mas a estratégia do golo não funciona. Aqui, um jogador sai e volta a entrar quantas vezes forem possíveis.

Há um lance lixado, que pode levar perigo à baliza dos Sem Camisolas. Esse pode ser o golo. O meio-campista Maninho tem a bola no seu magnífico pé canhoto. Olha para a defesa contrária e vê um companheiro isolado. Somente com o guarda-redes. Chuta a bola com força, mas com a mesma perícia de sempre.

É nesse momento que dona Catarina sai do quintal. Distraída, a bola atinge em cheio a criança que leva às costas. O miúdo, por pouco, cai. A senhora tem jeito maternal. Consegue proteger a criança e, ainda, dá-se ao luxo de apanhar a bola. E tudo pega fogo!
- Quem é o sacana que atirou essa bola? Quem é? - pergunta na insistência a mulher, já toda furiosa.
- Fui eu, tia... - tentou responder Maninho.

- Vem cá, sô bicho, macaco de merda. Você sabe dor de nascer? Me fala ainda, sô bandido... Por que não atiraste a bola nas calças do tô pai? Vai p'ra merda. Ouviu?
Enquanto solta a língua sem travão, dona Catarina vai espetando uma série de boas galhetas ao miúdo. É a primeira ronda de bofetadas. O rapaz, de mais ou menos 13 anos, não chora. Faz coragem.

A senhora está insatisfeita com a "boa lição” que dá ao rapaz. Depois de avançar com a segunda onda de agressões física e verbal, leva a bola para dentro de casa. Pega numa faca de cozinha e desfaz a bola toda.
Essa cena de rebentar a bola não é de hoje. Mesmo quando a bola "Menga” em cima dos tectos das casas próximas ao campo, o destino que se dá à bola é mesmo esse também.
Depois de estragar a bola, a mulher volta à rua e atira os pedaços da "Dente de leite” ao primeiro rapaz que lhe cruza o caminho. E resolve dar mais "dibabelos”, para acabar a raiva.

- Quando quiserem jogar bola nas pessoas, vão procurar vossas mães. Fidascaixa. Malandros. Seus analfabetos de merda. Começam a jogar nos "tomates” dos vossos pais ou nas pernas das vossas mães.
Nesse momento, Carlitos, um dos mais crescidos entre os garotos, pede calma à senhora. Pede desculpas em nome dos dois grupos e implora à mulher para terminar com as ofensas aos seus progenitores.

Dona Catarina, já sem a criança às costas, pausa um coxito nas ofensas. Parece mais relaxada, embora ainda suada. Cruza uma das pernas sobre a outra, enquanto lança o dorso para o portão feito de chapas de zinco e barrotes de madeira. Depois, chama o rapaz que acaba de agredir com inúmeras bofetadas.
Até aí, o garoto já tinha levado a terceira vaga de "mbaias”. Por isso, tem receio de se encostar à mulher, que era mesmo vizinha de rua.

 - Isso mesmo é azar...  Nada, azar não custa! - tentou acreditar Maninho.
- Não custa mesmo. Vieste buscar de favor. - replicou dona Catarina.
O rapaz ganha coragem e vai ter com a kota. Mas fica um coxito distante.
- Você ainda é filho de quem é? Tua mãe é quem? Vieste d’onde?
- Moro na rua de trás. A tia não me conhece? Sou irmão do Zeca, da Tia Nanda. A tia é madrinha do mô irmão!
- Xê! Você é burro d’onde? Já viram o azar? Você não fala? Estou mesmo a te bater e a ofender minha comadre, você fecha ‘mbora o bico? Azar afinal não custa! Me desculpa, mô afilhado. Esses olhos não andam bem. Não estou reconhecer as pessoas. Passa a avisar, mano. Começa a lembrar as pessoas!

Depois das desculpas aceites por Maninho, dona Catarina promete comprar uma bola para os putos. Passam meses e meses. A bola que é bola ninguém nunca vê, até hoje.
E a pelota acaba. O empate tem sabor à derrota para as duas equipas. O Maninho é o único jogador que ganhou. Ganhou uma boa sova. E Maninho carrega essa lembrança para sempre. Para ele, tal como dona Catarina, o azar mesmo não custa. Vem de graça, às vezes!

Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Opinião