Reportagem

O descaso dos lugares de memória da velha cidade

Gaspar Micolo

Não faltam cidadãos e associações que se esforçam para que as artérias históricas da capital se transformem em corredores de eventos culturais e expressão artística. Mas também não faltam os que deixam os monumentos da velha Luanda no esquecimento. E a administração da Ingombota desdobra-se em intervenções, para incentivar a mudança do actual cenário, a começar pela Rua dos Mercadores.

24/01/2021  Última atualização 21H47
Zonas históricas de Luanda © Fotografia por: DR
"O comércio de escravos foi o alicerce da cidade de S. Paulo de Luanda", dizia o escritor Castro Soromenho, em 1939. E estava certo. Fundada em 1576, para além do seu papel de ligação com o interior, que fornecia os escravizados, e destinada a ser a capital, a primeira cidade costeira de origem espontânea tem grande parte dos seus edifícios e toponímia ligados à história da escravatura. É precisamente uma das ruas mais antigas, a dos Mercadores, que conserva algumas partes mais negras desta memória: edifícios ainda em pé, na sua generalidade, do tipo sobrado, lembram uma das fases traumáticas por que passavam os infelizes capturados para o tráfico transatlântico.

As casas da rua, com piso térreo para o comércio e piso superior como residência senhorial, possuíam vastos quintalões, que eram utilizados para o armazenamento dos escravos, arrancados do interior da colónia para serem vendidos nas Américas, através do porto de Luanda. São edifícios que conservam uma das partes mais negras da nossa memória colectiva.

Por isso mesmo, há muito que cidadãos e associações se desdobram em esforço para que a referida artéria da capital se torne num corredor de cultura, espaço de vivência aberto às mais variadas formas de expressão artística. No dia 23 de Agosto de 2018, Dia Internacional da Abolição da Escravatura, a Campanha Reviver, que integra o Governo da Província de Luanda, a Associação Kalu, o CEICA/Universidade Lusíada, o CCBA e diversos outros parceiros, promoveu um projecto de revitalização que lhe deu vida, com dezenas de pinturas de graffiti, de modo a sensibilizar a sociedade para a necessidade da preservação da memória da cidade.

Anos depois, a histórica rua continua votada ao desleixo, sem qualquer dignidade e acessibilidade para constar dos roteiros turísticos. Mas a actual Administração do Distrito Urbano da Ingombota está empenhada em inverter o quadro. No passado dia 15 de Dezembro, concluiu a sinalização que devolve a Rua dos Mercadores aos peões, restringindo a circulação viária. Há agora sinais de proibição de circulação automóvel nos três acessos, permitindo apenas acesso para emergências, cargas e descargas. Seguir-se-ão os pilares para interdição definitiva do trânsito automóvel.

Com o empenho e a aprovação da maioria dos moradores e engajamento dos técnicos da Administração do Distrito Urbano da Ingombota e da Direcção Municipal de Transportes, Tráfego e Mobilidade, a Rua dos Mercadores dá assim o seu primeiro passo para o resgate do valor histórico e simbólico. De modo a tornar aquela artéria da capital acessível ao turismo, a sua valorização deve incluir ainda a melhoria do ambiente urbano ao nível da acessibilidade, habitabilidade, segurança, iluminação e licenciamento de usos adequados.

"Estas intervenções serão importantes para a captação de investimentos de proprietários, empresários e de turistas que dinamizem a economia urbana e contribuam para a melhoria da qualidade de vida dos moradores do distrito. Neste sentido, agradecemos a máxima compreensão de todos os moradores e visitantes para o sucesso das várias etapas, através do cumprimento das normas e da manutenção deste espaço comum", refere o administrador do distrito urbano da Ingombota, Rui Duarte.

As pinturas de graffiti que a rua ganhou em alguns edifícios, em 2018, não são suficientes para lhe salvar da imagem abandonada: gradeamentos enferrujados, paredes sujas e com fissuras, comércio informal desregrado, cabos eléctricos e de telecomunicação a maltratar as paredes. Para mudar isso, os técnicos da Administração realizam trabalhos de remoção de cabos de telecomunicação, afixados nas paredes dos edifícios e respectiva transferência dos mesmos para sistema subterrâneo.

Entretanto, apesar deste quadro de degradação dos edifícios históricos, o guia turístico Carlos Bumba pôde realizar, desde o início do ano, três passeios pela Luanda Velha, tendo como mote a Rua dos Mercadores.
"Em 2020, apesar da pandemia, conseguimos desembaraçar e arriscar com dois tours pedestres pela Baixa. Em parceria com a Administração do Distrito da Ingombota, estamos a encontrar vias para dinamizar outras ruas, à semelhança da dos Mercadores", diz.

FEIRA

Este ano, para o 445º aniversário da Cidade de Luanda, uma feira de Cultura, Artesanato e Gastronomia, denominada "Os mercadores", decorre de 30 a 31 de Janeiro. A Rua dos Mercadores é considerada a segunda mais antiga de Luanda, sendo a primeira a então rua Diogo Cão (actual "17 de Setembro”), que sai da Fortaleza, passa pelo Largo do Palácio e dá ao hospital.  
A segunda rua calcetada de Luanda nasce nos finais do século XVII e princípios de XVIII, num período em que a actividade mercantil conhece um incremento excepcional, tendo ela sido ocupada por negociantes. Daí que o traçado dos seus edifícios tenha ganho a influência da actividade principal dos seus proprietários.


  PARTE ACTIVA
Moradores chamados a valorizar

O académico Bumba Manuel de Castro não tem dúvidas da necessidade de valorização dos espaços históricos da cidade pelos próprios moradores, pela administração e por parceiros sociais. Mas esclarece que, sendo um lugar patrimonializado, os moradores não podem definir de "per si" o que lhes apetecer fazer. Os lugares "património", refere, obedecem ao preceituado na Lei do Património Cultural do país e no Decreto Presidencial 53/13, que regulam a intervenção nos Monumentos e Sítios. Ou seja, qualquer reparação, reabilitação ou outra acção no lugar carece da permissão das autoridades, fundamentalmente se perigar a identidade         do lugar.

"No meu ponto de vista, o projecto de promoção tem de ser conciliador das duas vontades, para que tenha sucesso. E aqui ‘sucesso’ implica fomento do turismo e conservação do lugar, por um lado, e impacto positivo na vida dos moradores, por outro", refere o docente universitário, autor da obra "Património Cultural e Reabilitação Urbana: Um Caminho para o Desenvolvimento do Turismo em Cidades Históricas", resultante do seu doutoramento em Turismo e Cultura, pela Universidade de Coimbra.

Bumba Manuel de Castro garante mesmo que a promoção de qualquer lugar turístico, quer seja natural, cultural ou histórico, não é saudável (e até contraproducente) sem a participação activa dos residentes no local. São os mais interessados naquilo que poderá ser a dinâmica do lugar, para além do facto de que o próprio esforço de marketing e promoção do lugar ter de, necessariamente, envolver a sociabilidade da comunidade (suas rotinas, actividades, lembranças, narrativas, etc.).

"Quando se diz que é preciso participação activa, está-se a dizer que os moradores devem ser os principais actores do processo de produção turística e de fruição cultural. Por isso, sempre que possível, devem ser eles mesmos os guias, promotores culturais, os vendedores de souvenirs, etc. Porque só assim se consegue impacto positivo, do ponto de vista socioeconómico na vida dos moradores", diz.


  ONDE ESCRAVOS ERAM CASTIGADOS
O largo sem o Pelourinho

Num encontro recente com os moradores, o administrador Rui Duarte explicou que a intervenção na segunda rua mais antiga de Luanda visa preservar e disciplinar o uso dos imóveis, já que muitos destes, em conjunto, fazem parte da zona histórica da capital.

Contudo, os próprios moradores já haviam solicitado, através de uma petição, a intervenção da administração no Largo do Pelourinho, na Travessa da Providência e na rua dos Mercadores. Mas não são só os moradores que estão cansados do descaso em relação àquela zona histórica de Luanda. Carlos Bumba, guia turístico há 12 anos, diz mesmo que a Rua dos Mercadores constitui um dos pontos altos do turismo urbano, pelo que lamenta que este espaço, que conserva a memória da cidade, não esteja a ser  valorizado e rentabilizado.

O presidente da Associação dos Guias Turísticos de Angola descreve que as Rotas dos Escravos, Luanda Velha, Luanda Moderna, Rota do Café, do Açúcar, das Igrejas, dos Museus e dos Cinemas  são todas feitas com um discurso que encontra um fraco casamento com os vestígios materiais, pelo que não tem sido fácil o dia-a-dia dos profissionais da área.
"Os guias de turismo enfrentam os contrastes, a vandalização e o abandono a que estão condenados os edifícios da Baixa de Luanda", diz.

O Largo do Pelourinho é um destes casos de abandono e degradação dos espaços da velha cidade. Local onde se castigavam os escravos fugidos e, sobretudo, as autoridades nativas que se opunham ao processo de implantação do novo poder, o largo revela o descaso com a triste memória dos infelizes que aí padeceram. Era aqui onde, nos tempos mais antigos, ficava o bairro Katadi (ou Katari), que, de acordo com o dicionário de Quimbundo de António de Assis Júnior, significa "Lugar de Suplício". Uma das artérias calcetadas de Luanda, a partir de 1779, o Largo do Pelourinho, ao lado da calçada Baltazar de Aragão, surge no âmbito das vias abertas para ligar a cidade alta à baixa.

Para voltar a dar ao Largo do Pelourinho a sua dignidade histórica, depois de intervenção, que deve contar com parceiros sociais, a Administração espera contar com uma associação dos próprios moradores, para gerir o espaço.  Aliás, com o trânsito e o estacionamento interditos na Rua dos Mercadores, o Pelourinho apresenta-se como alternativa ao estacionamento, cuja gestão poderá estar a cargo dos munícipes.

Ocupado actualmente pela EPAL, que o transformou, sem as devidas condições de habitabilidade e saneamento, no seu parque de estacionamento, o largo está já sem o Pelourinho que lhe dá o nome: urge localizar e devolver a dignidade histórica ao espaço. De estacionamento serve, igualmente, o edifício do antigo Teatro da Providência, ocupado pelo BPC, que já foi chamado a reabilitá-lo.

Outros edifícios, como o Minerva, encontram-se devolutos, sem o aproveitamento que se espera da zona: no local, vê-se o acumular de lixo, o seu uso por delinquentes, a venda informal desregrada. Segundo a administração, medidas estão a ser tomadas para contactar os proprietários e gestores destes edifícios, de modo a requalificá-los de acordo com projectos devidamente licenciados, respeitando a memória colectiva, traço arquitectónico e o uso compatível com a vida dos munícipes. "É importante que estes edifícios voltem a albergar unidades hoteleiras de referência, centros culturais, galerias, que trarão emprego e dinamismo ao centro da cidade", diz o também arquitecto Rui Duarte.

Para o também administrador, o que se pretende é que estas áreas recuperem a sua função cívica, económica e cultural, tornando-se locais aprazíveis para passear, reunir amigos, fazer compras, visitar exposições ou assistir a espectáculos.
"Não é algo inédito, pois na Rua dos Mercadores encontramos o Centro Cultural Brasil Angola, que já sofreu uma reabilitação arquitectónica de excelência e que vale a pena visitar, onde decorrem eventos e espectáculos que podem ser estendidos à rua através de feiras e exposições", diz.


  SEDE DO MUNICÍPIO DE LUANDA
Ingombota, o centro da Velha Urbe

O espaço urbano de Luanda, primeira cidade fundada na África a sul do Sahara por europeus, foi estruturado desde a primeira hora, na base de dois pólos: a Cidade Alta, por cima das barrocas, da Cidade Baixa, no sopé desta, junto à baía. Enquanto a parte Baixa nasceu e expandiu-se como centro portuário e comercial, a parte alta manter-se-ia sempre, até aos nossos dias, a sede dos poderes político-administrativo, eclesiástico e militar. Ingombota, sede do município de Luanda, é o distrito urbano que conta grande parte da história da urbe pelos seus monumentos e começa a ser urbanizado a partir de 1661, na mesma altura em que, na parte Alta da nova Cidade, se dá a construção da Igreja do Carmo.

Nome conhecido desde o século XVII, Ingombota é tida, para alguns, como "local dos escravizados foragidos" e, para outros, como "local dos mercadores de dinheiro". O certo mesmo é que acolhe mais de 80 monumentos (de acordo com inventário de 2009), erguidos ou concebidos do século XVI ao  XX. São obras de arquitectura notáveis pelo seu interesse histórico, artístico, científico e social. Destacando-se os de arquitectura militar (fortalezas), ou as de cariz religioso, as igrejas com séculos de História, ou ainda edifícios administrativos, as casas de sobrados, etc, que fazem das partes Alta e Baixa da cidade as zonas obrigatórias para o turismo urbano.

E à semelhança das Ruas dos Mercadores, outras áreas de Luanda carecem de intervenções que garantam dignidade ao turismo urbano. O especialista em Turismo e Cultura Bumba Manuel de Castro entende que a interligação com outros espaços é de facto um problema, porque promover isoladamente um bem cultural e activá-lo não é suficiente para o turismo.  Por isso, diz, é que a comercialização e o consumo do turismo faz mais sentido quando concebidos na base de um produto (onde existe a combinação e interligação de vários serviços: alojamento, restauração, entretenimento, transporte, etc.).

"O ideal seria conceber um roteiro turístico-cultural que envolva outras áreas circunvizinhas com a mesma afinidade, carregadas com actividades eruditas, culturais e lúdicas, que possam resgatar e transmitir valores endógenos", defende o docente universitário. E um dos pontos importantes a constar nos roteiros turísticos para Luanda são inegavelmente as suas igrejas centenárias. É que a Cidade Baixa, apesar de quase toda ser pensada em função das actividades comerciais então praticadas, e por essa razão lá se terem erguidos os grandes armazéns, possui igrejas que acompanharam a evolução histórica da capital. Classificada como "monumento de interesse público", a Igreja da Nossa Senhora dos Remédios, erguida em 1655, é um dos exemplos.

À saída da Rua dos Mercadores, damos com o majestoso templo, que, em 1716, quando a Arquidiocese de Angola se mudou de M’banza Congo para Luanda, se tornou no centro do poder religioso da colónia. Entre 1828 e 1850, foi, pela primeira vez, nomeada Sé Catedral de Luanda. Título maior que, entretanto, recuperou e que ostenta até hoje. Por isso mesmo, os poucos turistas que se aventuram a percorrer a Velha artéria da Cidade dão sempre por ela, num ainda incipiente turismo religioso que se vai podendo fazer.
"O turismo religioso é incipiente, o que há são peregrinações. Mas a cidade possui igrejas históricas, que justificam um programa para tal, que pode ser associado ao desenvolvimento económico", garante o vigário episcopal para Área Social da Arquidiocese de Luanda, Celestino Epalanga.

O padre sugere mesmo um mapeamento dos itinerários no casco urbano, que considere os templos concebidos na capital desde o século XVII e que, estando carregadas de História, devem ser tiradas da sombra do esquecimento.
"Percorrendo alguns países, nota-se que as catedrais acolhem muitos turistas", exemplifica o sacerdote, sugerindo igualmente a criação de comissões para articulação de um roteiro turístico-cultural, que integre uma diversidade de monumentos e sítios. E aqui indica também o envolvimento dos moradores e de pessoas que se identifiquem com a memória dos espaços, sobretudo para que possam ser guias.
"Quando visitei o Santuário de Fátima, encontrei uma das primas dos três pastorinhos que fazia de guia e contava a história toda", lembra, reforçando com o exemplo a necessidade de guias turísticos envolvidos com o passado dos monumentos.

  SÉCULOS DE HISTÓRIA
Luanda, antes da fundação da cidade

Paulo Dias de Novais já conhecia a geografia da região antes de escolher a localização da vila a edificar, que, embora só adquirisse o estatuto de cidade em 1606, a chamaria de São Paulo de Luanda. Esse aglomerado populacional toma assim a designação da ilha, topónimo antigo bastante referenciado nas fontes, que atribuem a pertença do território ao antigo Reino do Kongo: cartas do soberano Dom Afonso I ao Papa Paulo III revelam que Luanda era fonte do Nzimbo, uma das suas moedas. O historiador Patrício Batsikama, que chama a ilha de "banco do Kongo", defende que "nem a fundação de Angola, em 1585-1576, retirou Luwanda do Mbânba, província do Kongo, à qual pertencia. Mas, com o declínio político, em 1665, o monopólio deste banco tornou-se questionável".

Algumas fontes revelam que na ilha um governador estava encarregado pelo Ntotila da recolha da moeda, coabitando com pescadores akwakimbundu (seguindo a terminologia de Virgílio Coelho). No total, a ilha era habitada por mais de três mil pessoas, entre elas algumas dezenas de portugueses que se dedicavam ao comércio de escravos, sem controlo administrativo, quer do reino do Kongo, quer do reino de Portugal.

"Antes da chegada dos portugueses, a ilha estava sob autoridade de Mani-Luanda, representante do Mani-Kongo, rei do Kongo. A terra firme, a alguns cabos de distância, pertencia a Ngola Kiluanji, poderoso chefe do território situado a sul do Kongo até ao rio Kwanza, território do Ndongo, independente da corte de Mbanza Kongo, depois de longas lutas. Mas a ilha, fonte inesgotável de zimbo, tinha permanecido propriedade do Mani-Kongo", descreve o historiador António Egídio de Sousa Santos, na sua mais recente obra "Cidades: organização do espaço e sociedade em Angola", que deve ser lançado brevemente em Luanda. No capítulo sobre a capital do país, o antigo professor de História apresenta, em síntese, ao lado de outras cidades do país, as suas transformações desde as primeiras décadas da sua criação até ao século XX.

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