Entrevista

“O futuro é tecnológico e é hoje”

Flávio Stephane Nombo Barros é co-fundador da empresa MoceDesenhos, cuja sede está localizada na África do Sul. Na conversa que o jovem manteve com o suplemento Fim-de-Semana do Jornal de Angola, a terra que o viu nascer, Cabinda, não ficou esquecida. O seu trabalho em computação pode ser o que mais sobressai perante o público, mas é na criação de programas que Flávio Stephane Nombo Barros navega como peixe na água. ”

07/03/2021  Última atualização 10H10
Flávio Barros, criador do dicionário digital Ibinda © Fotografia por: DR
É um caminho longo até onde chegou?
Sim. Sendo alguém proveniente de uma cidade pequena, como Cabinda, nunca me passou pela mente que um dia chegaria onde cheguei. Foi um caminho composto de montanhas e obstáculos, mas a perseverança garantiu a vitória. O meu percurso académico começou em Cabinda, na Escola Sagrada Esperança, onde fiz a primária. Depois mudei-me para a escola Dom Paulino Fernandes Madeca, onde dei continuidade, da 2ª à  7ª  classe. No final de 2007 foi-me apresentada a oportunidade de dar continuidade aos meus estudos fora do país, isto é, na África do Sul, onde fiz e terminei o ensino médio (High School) no Dansa International College. Terminado o ensino médio desenvolveu em mim uma paixão pela informática. Tomei a decisão de fazer especializações e formações.  

Como decidiu abraçar o ramo da informática?
Desde pequeno sempre fui fascinado por tecnologia. Sempre quis saber como funciona a lógica por trás de cada funcionalidade e o uso da mesma para criar soluções para problemas diários. A curiosidade em aprender estimula o meu coração, expande a minha mente, aumenta a minha visão em relação às possibilidades ilimitadas do mundo e tudo se tornou uma jornada de que "quanto mais profundo chego, mais quero aprender”.

Qual é a área em que o Flávio trabalha actualmente, em termos de plataformas digitais?

Sendo desenvolvedor sénior e com várias formações,  tenho o privilégio de ser flexivél, ou seja, tudo depende do trabalho que a demanda exige. Mas, digo que nestes últimos anos me foquei bastante em desenvolvimento de aplicativos mobile por causa da demanda no mercado e dos meus trabalhos pessoais.

Para a maioria das pessoas que trabalham no ramo da informática é um sonho criar softwares de aplicações. É mesmo um sonho ou não é bem assim?
Depende da área da informática, mas digo que para os desenvolvedores sim. É, principalmente, criar softwares ou plataformas digitais que realmente ajudem as pessoas e eliminem problemas diários.  

Desenvolveu o primeiro dicionário de línguas nacionais. Facto histórico em Angola. Como funciona, como nasceu a motivação, que tipo de formação e acompanhamento profissional teve para a sua criação?
É verdade. A história de Angola se encarregará de registar isso. O aplicativo está a ser terminado para ser disponibilizado ao público dentro em breve. Foi criado como um aplicativo mobile para facilitar o acesso e uso das populações de Cabinda e não só. É uma plataforma digital, que qualquer cidadão angolano ou estrangeiro, em qualquer parte do mundo, pode acessar e ter as traduções de palavras em português para as línguas nativas do território angolano. Estando na África do Sul, tenho me deparado constantemente com a valorização das línguas locais, se comparado com a dificuldade que o nosso país enfrenta até aos nossos dias. Com o lançamento do "aplicativo digital Ibinda” eu e a minha equipa apenas tivemos a intenção de contribuir, tentando eliminar um problema, nunca nos passou pela mente que teríamos grande aceitação da comunidade. Na verdade, isso demonstra a necessidade que o povo tem, por esta mesma razão. "Por que não expandir para albergar mais línguas, se o povo precisa?” Vamos dar valor à nossa cultura. Ser desenvolvedor sénior facilita-me na criação de plataformas digitais, mas o meu maior desafio está na obtenção da informação. Estou a residir fora do país e foi, realmente, bastante difícil, mas, graças a Deus, há cidadãos como eu formados e especialistas, que também trabalham diariamente para ajudar. E nessa busca, tive o privilégio de trabalhar com o grande escritor da nossa cultura, o padre José Silvino Sambo Mazunga e  o desenvolvedor júnior Júlio Tati.
 
As línguas estão em constante mutação. Fale-nos como tem sido a actualização do Dicionário Digital Ibinda?

Já estamos com bastantes actualizações agendadas. O aplicativo está a caminho de três mil usuários, o que nos deixa bastante felizes, porque a nossa visão principal é a reactivação, distribuição e educação da língua Ibinda, que é o que já está acontecendo.
 
Ibinda é o dialecto falado na província de Cabinda. Já pensou em fazer outros projectos do género nas línguas Umbundu, Kimbundu ou Kikongo?
Sim. Com certeza que estou sempre aberto a convites para projectos e ideias que vão ajudar o nosso país. Se Deus permitir, ainda faremos muito para contribuir nesta área.

Sabemos que participou recentemente da criação de um aplicativo de prevenção de acidentes rodoviários em Luanda, denominado "ViaAngolana”. O projecto morreu ou não teve apoios?
O "ViaAngolana” é um aplicativo mobile (telemóvel) do nosso país, de aprendizado do código de estrada e de mecânica. O projecto está vivo, está a crescer a cada dia que passa. Estamos a caminho de 2000 usuários e temos a versão IOS pronta para ser lançada dentro em breve.

O que representa para si o padre José Silvino Sambo Mazunga?
O padre Mazunga para mim é um grande amigo, conselheiro e uma grande inspiração. Conheço-o desde os meus 7 anos de idade. Ele é uma grande relíquia para o nosso país. Estou muito grato a Deus pela sua vida.

Com todas as mudanças na África do Sul, como vive um angolano e informático nesse país?
Sendo alguém que já vive no território sul-africano há mais de 10 anos, tive a oportunidade de ver muitos angolanos entrar e sair com missão de estudo. A formação é boa, o nível de vida é bem justo, se fores um estrangeiro que termina o ensino superior com boas notas. Há empresas que te convocam para poderes trabalhar para eles e assim dão-te uma carta para adquirires um visto de trabalho. Até há universidades que têm parcerias com empresas, mas é importante mencionar que o trabalho para um estrangeiro na África do Sul não é facilmente dado se as tuas qualificações não justificarem ou se não tiveres residência, porque eles dão prioridade aos nacionais. O salário mínimo ou de iniciante para um informático aqui é de 15 mil rands para cima.

O trabalho de um jovem angolano é valorizado e igualmente reconhecido em Angola?

Falando da área em que me especializo (IT), infelizmente ainda não. O nosso país não tem feito investimentos no IT e estamos muito abaixo, se comparados com os demais países da região. É o futuro em termos tecnológicos, pois estamos em frequente ameaça digital. Se não tivermos o que é nosso, vamos buscar o que se está a vender e teremos custos. Entenda que quando você pede para criar, também dá a porta de entrada, o que é bastante perigoso para as nossas instituições públicas e privadas.

Conte-nos um pouco como surgiu a MoceDesenhos?

A MoceDesenhos é uma empresa de desenvolvimento web/mobile e serviços digitais, fundada por uma parceria entre angolanos especializados em várias áreas tecnológicas dentro e fora da África do Sul. Temos fornecido serviços já para várias empresas e clientes internacionais, sedo uma boa parte angolanas.

Quais os "skills” que um engenheiro deve ter para trabalhar numa empresa como a MoceDesenhos?

Formação em alguma área tecnológica, porque queremos sempre dar a melhor qualidade para os nossos clientes. É o mínimo que podemos dar depois de depositada a confiança no serviço.

Compensa estar longe da família e do país?

Eu acho que nunca compensa estar longe da família, mas é um sacrifício necessário, com valor, se a visão tem propósito, para que a pessoa possa crescer e dar o seu melhor para a família também. Não é fácil estar distante da terra natal e da família. A saudade é constante e acabamos sempre por estar distantes de qualquer coisa familiar. Por mais que um país estrangeiro te acolha, é como dizem, "casa é casa, tua terra é tua terra”. Porém, se recusasse a oportunidade que me foi dada não poderia ajudar e contribuir no país com a formação que adquiri.
 
A Engenharia está cada vez mais cosmopolita e cada vez mais atractiva para as novas gerações. Como comenta?

Sim, concordo. É algo inevitável, com o desenvolvimento e o avanço do mundo em si.

Sabemos que a realidade ultrapassa muito a ficção. Já teve alguma situação no exercício da sua profissão em que achasse que "isto parece um filme”?

Já, muitas vezes. Por acaso lembro-me de quando me deparei com a dificuldade do aprendizado do código de estrada em Angola. Tomei a decisão de, de alguma forma, apoiar, usando tecnologia. Mas na altura a criação de aplicativos como é hoje hoje era ficção. Hoje, em apenas um click, consigo acessar mais de 400 sinais de trânsito em qualquer área do mundo no meu telemóvel portátil.
 
Como é um seu dia normal de trabalho?
O meu dia tem normalmente tudo agendado e repartido por horas, das 4h00 da manhã até as 20h00 da noite, recebendo e despachando clientes, trabalhando em projectos pessoais e de clientes, trabalhando com a minha equipa nas minhas plataformas pessoais. Por vezes, estudando e pesquisando conceitos novos, honrando convites.

Há mais angolanos a trabalhar consigo?
Sim. Tenho a minha equipa composta por 16 elementos. Sem eles não poderia ser quem sou.

É preciso fazer sacrifícios para fazer carreira nestas lides?
Sim, muitos. Na realidade, são sacrifícios necessários para que você alcance a meta que pretende. Muitos vão desejar sucesso, mas poucos entendem o que esta simples palavra, sucesso, carrega. É importante saber para que direcção pretendemos andar, porque um sacrifício sem direcção é tempo gasto.
 
Quais os seus projectos de futuro?
Este ano, estaremos focados na área de desenvolvimento para o nosso país. Já temos alguns projectos agendados, a maioria para o melhoramento da vida no território angolano, fazendo parceria com entidades públicas para uma colaboração efectiva.

Para um engenheiro informático que esteja a ler esta entrevista e que pensa em trabalhar na sua área, quais os "skills” que acha fundamentais?
"Skills” pessoais: humildade, persistência, disciplina pessoal, trabalho em equipa, ser educado, respeitoso, aberto a críticas e curioso. "Skills” profissionais: desenvolvimento web/mobile/desktop, linguagens de desenvolvimento (como Java, Kotlin, Flutter, Angular, SwiftUI, C#), UX/UI design  e suas plataformas, redes, linguagens e plataformas backend.

Qual é o segredo para ser um bom engenheiro? Há segredo?
Não há. Nunca pare de aprender, estudar e praticar. O mundo está constantemente a evoluir. O que irá colocar-te a frente de todos é a qualidade do teu serviço. E lembra-te sempre que "quem pensa que tudo sabe, nada aprende”.
 
Estando fora, como vê o desenvolvimento da engenharia informática em Angola?
Estamos a avançar, mas num passo extremamente lento, que leva com que muitos informáticos desistam, por falta de apoios, além dos baixos salários. Também, temos muitos engenheiros informáticos a trabalhar fora da sua área de formação, assim como temos muitos sem as qualificações necessárias em tecnologia nas áreas críticas de IT. Precisamos de mudança de paradigma rapidamente. Há algum tempo, foram expostos vários documentos sensíveis do país por um hacker, porque a nossa protecção cibernética é fraca.

A Engenharia Informática está na moda. Por quê?
Porque o futuro é tecnológico e o futuro é hoje. O mundo ainda está em choque pelos acontecimentos de 2020 e ainda está a recuperar do impacto recebido. Foi necessário um ano como 2020 para muitas comunidades, empresas e países perceberem a importância das novas tecnologias de informação e comunicação. Os países com mais implementações tecnológicas sofreram menos impacto em termos de facilitação da vida, em meio a pandemia. Por esta razão, também a demanda de engenheiros informáticos aumentou mundialmente. Hoje, temos quase o mundo inteiro a trabalhar a partir de casa com tecnologia e através de tecnologia.

Qual acha ser, ou qual deveria ser, o papel da Ordem dos Engenheiros na vida profissional dos engenheiros?
Do meu ponto de vista, deve ser a atribuição do título de Engenheiro e a regulação do exercício da profissão; defesa dos interesses, direitos e prerrogativas dos engenheiros e proteger o respectivo título e a profissão; defesa da função social, dignidade e prestígio da profissão e valorizar a respectiva qualificação profissional; fomento do ensino da Engenharia; promoção da cooperação e solidariedade entre os engenheiros e o exercício da acção disciplinar sobre os engenheiros.

Qual é a sua mensagem para os jovens que pretendem seguir as suas pegadas?

Não desistam e nem desanimem. Hoje sou eu, amanhã será você. Em muitos desenvolvedores, que querem ajudar o país, eu sei que existe o medo da exposição das suas ideias ou da criação por razões de segurança e falta de pessoas ou entidades certas em quem confiar o seu projecto. Mas não desanimem. Sejam firmes e constantes. Juntem-se aos que já têm feito alguma coisa e a quem te apoia. Estude constantemente, pratique diariamente e pense como alguém que precisa, porque o objectivo não é a fama, mas sim ser efectivo. Não é fácil, dentro do nosso país, mas é por isso que precisamos de vocês.

PERFIL

Nome completo:
Flávio Stephane Nombo Barros.

Data de nascimento:  
13 -05-1993.

Naturalidade:  
Cabinda.

Filiação:
Filipe Casimiro Miqueias Barros e de Alexandrina Nombo.

Estado civil:
Solteiro.

Filhos:
Nenhum.

Marca de perfume:
Hugo Boss.

Marca de roupa:
Refinary/Lacoste.

Marca de sapatos:
Bartoli.

Cor predilecta:
Preto &Azul escuro.

Defeito:
Medo do sucesso.

Prato preferido:
Kizaca.

Passatempo:
Instrumentos músicais.

Local para férias:
Angola.

Cidade predilecta:

Cidades Espanholas.

Tem casa própria?:

Não.

Tem carro próprio?:
Não.

Sente-se realizado:
Não.

Sonhos:
"Contribuir significativamente para o desenvolvimento e melhoramento da vida na comunidade angolana, usando o poder e o conhecimento tecnológico para assim gerar empregos”.

Ferraz Neto 

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