Opinião

O grande amor

Carlos Calongo

Jornalista

Depois de desmanchar o namoro com Celestino, Cristina, mulher de requintada estrutura corporal capaz de atiçar o apetite libidinoso de qualquer malandro dos musseques e não só, casou-se com um jovem conhecido apenas como filho vizinho do Ranger Rover, na altura, carro de difícil circulação nos subúrbios de Luanda.

03/04/2021  Última atualização 06H15
Mesmo não sendo católica professa, Cristina casou-se numa das mais lindas, emblemáticas e seculares capelas da parte asfaltada da velha Luanda, ao que se diz, por influência do sogro, o tal senhor do Ranger, que mexia-se bem entre os prelados da urbe, com quem mantinha relações que ninguém sabia nomear.

Cumprido o ritual e todo o protocolo, ante o olhar silencioso mas permanentemente atento do Supremo,os presentes (nem todos eram convidados) felicitavam a noiva, cujas vestes tinham detalhes que humilhavam qualquer outra que fosse levada a contrair matrimónio no mesmo dia, hora e local.Chegada a vez de Man Zelé, amigo de longa data e comparsa do Celestino, primeiro namorado da recém casada, felicitar a Cristina, esta fez uma (in)confissão que, talvez aos ouvidos de Deus caiu como o primeiro pecado da noiva, aliás, recém casada.

"Estou mesmo só a casar pela minha família, porque você até sabe que o teu amigo continua a ser o meu grande amor, para quem um dia voltarei”, disse a jovem, ignorando o risco de alguém ouvir a confissão que, afinal, o rapaz que acabava de empenhar a honra e garantir amor e fidelidade até morte não é, verdadeiramente, o grande amor de Cristina.

Estou nem aí para este casamento, terá dito Cristina, entre o abafado sentimento de tristeza que a corroía o coração e a obrigatoriedade de forçar alegria num rosto, sem poder contrariar a intenção da família limpar a honra pela gravidez indesejada que interrompeu o percurso académico de uma das mais lindas moças do bairro em que o senhor do Ranger Rover fora morar, não havia 4 meses.Nem a garbosidade de que foi revestida a festa, que na altura parecia de filha de um "mangas”, daqueles que já gastavam na loja dos dirigentes/responsáveis - Angola já foi a banda -, tirou da cabeça da noiva a definição de seu grande amor, que ela fez questão de convidar para o copo de água.

Como quem recebeu uma sentença de morte e dela quer escapar, Man Celé foi obrigado a abandonar o recinto com alguma antecipação, para ir dizer ao grande amor de Cristina, que esta a queria ver a todo o custo no salão, nem que fosse por míseros cinco segundos, prometendo piscá-lo o olho, em sinalética que no tempo em que havia mais respeito entre as pessoas, representava pura e profunda expressão de amor, nunca sentida por muitos.

Sem as facilidades que as tecnologias hoje permitem, adicionada às dificuldades dos transportes públicos colectivos da época, bem como o adiantar da hora, o emissário teve que contar alguns bons passos da conservatória localizada algures no largo da Maria da Fonte, "diombelando” os bairros Valódia e São Paulo para chegar quanto antes ao Sambizanga e cumprir o desejo da noiva, aliás, senhora já casada.

Entre duas a três voltas pelas ruas do antigo Muceque Mota, lá foi encontrado o grande amor de Cristina, imaginem, num turengue da banda, entenda-se, bar, consumindo a segunda série de bandejas de fino, sem sequer olhar para o avolumado de arroz com peixe frito, aperitivos da época, que nos remetem à muitas malambas.Curiosamente, do megafone ouvia-se o refrão da música "Saiba que o meu grande amor hoje vai se casar/mandou uma carta pra me avisar/deixou em pedaços meu coração/ e para matar a tristeza/só mesa de bar.

As narrativas acima não reflectem acontecimentos exclusivos das vidas de Celestino e da pessoa retratada na música, aliás, cenários assim destapam realidades de que, afinal, nem sempre o grande amor é a pessoa com que se casa, vive e constitui-se família, mas pode ser alguém que um dia passou e deixou marcas indeléveis na vida de outrem, muitas delas transportadas até a morte.Sete meses depois de casada, Cristina morreu em trabalho de parto quando se prestava a dar à luz ao bebé de Celestino, que a engravidou numa espécie de regresso à pátria, esta que no seu conceito lato deve ser considerada como o grande amor de qualquer cidadão.

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