Entrevista

“O meu pai disse-me que eu podia ser tudo menos polícia”

Aos 19 anos, a convite de uma tia, ingressou nos quadros da Polícia Nacional (PN). Primogénita do casal João Agostinho Neto, oficial militar, e Carmelinda Paulo Gaspar, professora, Gorett Fernando, hoje comandante da 52ª esquadra da Cidade do Kilamba, enfrentou várias dificuldades que a tornaram na mulher de punho firme que é hoje.

27/03/2021  Última atualização 11H55
Gorett Fernando, comandante da 52ª esquadra da Cidade do Kilamba © Fotografia por: Alberto Pedro | Edições Novembro
Como recebeu a missão para comandar a 52ª Esquadra da Cidade do Kilamba?
Devo reconhecer que tudo começou na altura em que eu trabalhava na Direcção Nacional de Recursos Humanos da Polícia Nacional. Fui convocada para uma reunião, na qual fui informada que fazia parte da Comissão de um projecto denominado "A Nossa Esquadra”. Fui seleccionada, tal como outros no grupo, para, no futuro, exercer a função de comandante de esquadra. Recebi essa informação com bastante entusiasmo. Sou formada em Ciências Policiais, na especialidade de Segurança Pública, e tudo o que se vive numa esquadra tem como base aquilo em que me formei. Foi uma oportunidade de colocar em prática os conhecimentos que adquiri durante os cinco anos de formação.


Tem conseguido aplicar os seus conhecimentos?
Sim! Costumo dizer que essa é a verdadeira escola. É aqui que és confrontada  com a realidade. É neste momento que você vai perceber que valeu a pena. É o culminar de um processo formativo, que agora consigo exercer, na prática, contextualizar aquilo que aprendo, porque há questões que demos na academia, mas que muitas vezes não se encaixam na nossa realidade. É aqui, no jogo de situações, que te é solicitado o conhecimento, a habilidade, a decisão, a destreza. É um processo dinâmico. Recebi essa missão com muito agrado e continuo a sentir o mesmo, porque está a ser uma grande escola prática, para mim e para os meus colegas.  
 

É mais fácil dirigir mulheres ou homens? Sofreu alguma discriminação pelo facto de ser uma senhora?
Não. Penso que isso depende muito da forma como tratas o outro. Eu, com toda a sinceridade, não tenho problemas de gestão de recursos humanos. Lido muito bem com as minhas senhoras. São as minhas colaboradoras, amigas, irmãs e companheiras de trabalho. O pessoal da Esquadra já sabe: "com o trabalho não se brinca”. Fora das actividades normais, interagimos, conversamos, trocamos impressões, rimos e brincamos. O segredo é agir com naturalidade. Quando estamos no cenário de trabalho, a prestar serviço, o nosso foco deve estar virado para isso. Fora do nosso trabalho, podemos interagir com muita naturalidade.


Que idade tinha, quando ingressou na Polícia Nacional (PN) e qual foi a reacção dos seus pais?

Eu, na altura, tinha 19 anos. Posso dizer que tive a influência do meu pai, que era militar. Mas eu não queria pertencer às Forças Armadas Angolanas (FAA). Eu queria ser polícia. Recebi o convite da minha falecida tia Antónia Agostinho, irmã do meu pai, que, na altura, trabalhava no Kapolo e tinha direito a uma vaga. Naquela altura, os funcionários tinham esse direito e ela perguntou se eu queria frequentar o curso básico de Polícia. A visão que eu tinha da Polícia era microscópica. E eu estava a concorrer para ingressar no concurso público do Ministério da Educação, porque tinha terminado o ensino médio de Educação no IMNE.  Na verdade, são duas facetas que hoje percebo melhor. A minha mãe é professora e o meu pai era militar. Então, tentei fazer as duas coisas. Fiz o primeiro teste na Polícia e fui aprovada. Os meus amigos e colegas desencorajaram-me. Disseram: "você, que foi a melhor estudante do curso de Educação, quer ser polícia? Para ficar na rua com uma arma? Você deve estar louca, só pode!” Confesso que fiquei uns dias indecisa. Mas eu queria, eu gostava, porque já via nos filmes e admirava o meu pai. Então, decidi fazer a formação. Terminei os testes, o meu nome saiu na lista final.


A sua fisionomia jogou, também, um papel preponderante? Quanto tem de altura?
Sim. Tenho 1,77 metros. Um dos critérios era a altura e a robustez. No último dia de testes, o comandante Sankara, que era o chefe do corpo de alunos, decidiu fazer uma selecção física, porque havia nomes trocados nas listas. Desde aquele dia, entrei para as fileiras da PN.


Vou repetir a pergunta que lhe fiz há pouco. Como reagiram os seus pais?

Quando regressei a casa, expliquei ao meu pai que tinha entrado para a Polícia. Não gostou! Disse que eu podia ser tudo, menos polícia. Eu disse-lhe: "Papá, eu quero”. "Ele respondeu: "mas eu, teu pai, não quero. Não tens o meu apoio. A partir de agora, tudo o que acontecer contigo, tu assumes”. Peguei na minha mochila, coloquei açúcar, farinha, bolachas … Coloquei roupas, pus a mochila nas costas, despedi-me da minha mãe. Ela disse-me que não podia decidir nada por mim e que me apoiava. E fui. O meu pai não aceitou despedir-se de mim. Não olhou para o meu rosto. Ficamos três semanas aquartelados no Kapolo. Na primeira semana, chorei muito, porque senti que perdi o apoio da minha família, essencialmente do meu pai. Não podíamos receber visitas, mas a minha mãe foi ver-me no quartel e, através de uma rede que havia na parte de fora, conseguiu entregar-me comida.


Ainda se lembra do que a sua mãe levou para si?

Levou bolachas de água e sal, sumos empacotados, latas de sardinha e atum, açúcar, farinha e água. Mas não deixaram entrar a água, porque não podíamos beber água mineral. A minha mãe ia sempre para lá, rápido, dava-me um beijinho e ia-se embora. Ninguém podia saber que eu tinha contacto com a minha família. Mas o meu pai não ligava nem ia para lá. Na segunda semana, de tanto chorar, pedi para sair, para ir pedir perdão ao meu pai. Estava disposta a largar o curso, caso ele não percebesse a minha situação. Mas a minha mãe me disse para não abandonar a formação, porque, se Deus permitiu que eu chegasse até lá, é porque Ele tinha algo para mim. Ela disse-me para continuar e prometeu falar com o meu pai.


Depois de quanto tempo voltou para casa?
Fiquei no Kapolo por três semanas. Quando voltei para casa, estava magra, escura, desidratada, sofrida e maltratada. O meu pai olhou para mim e perguntou: "é mesmo isso que você quer? Eu te dou mesada, até à escola te levo, você quer sofrer como um cão, para ser polícia?” Respondi que já lá estava, não podia abandonar. Eu ia para casa, o meu pai fazia cara feia. Depois de três meses, fomos para o Kikuxi, onde fizemos as aulas práticas.


Foi no Kikuxi que teve contacto, pela primeira vez, com uma arma. Qual foi a sensação?

Não foi tão estranho. Eu já via armas em casa. O meu pai era militar, nós víamos a AK dele e, às vezes, pegávamos nela, só por curiosidade. Agora, manusear uma arma, foi a primeira vez. Foi algo estranho, mas prazeroso. Eu gosto muito de armas. Muito mesmo! Lá tivemos aulas  de tiro real e, no final do curso, que teve a duração de nove meses, senti que o meu pai já estava conformado com a situação. Jurámos à bandeira e, querendo ou não, eu era mesmo polícia. O meu pai acabou por entender.


E passou a apoiá-la?
Ele ria-se de mim, dizia que "polícia é samba-pito”. Alguns militares acham que os polícias são menos polícias. Sentem-se superiores. Para o meu pai, a filha tinha que ser militar. Ele dizia que os polícias apenas dão bicos em bacias. Mas acabou por entender. Terminámos o curso, calhou-me o Comando Provincial de Luanda. Trabalhei na 5ª Esquadra, no Comando da Maianga. O nosso comandante, então comandante Mateus, é o actual II comandante provincial de Luanda. Na altura, tinha a patente que eu tenho agora, a de Intendente. Houve um concurso, precisavam de senhoras altas e robustas para a Unidade de Protecção de Individualidades Protocolares, a UPIP. No caso, para escoltas. Foram seleccionadas 25 mulheres a nível do Comando Provincial. Eu fazia parte desse grupo.


Que experiência tirou desse trabalho?
Na UPIP fiz formação de Defesa Pessoal e contra-inteligência. Terminada a formação, trabalhei na técnica operativa, depois como especialista de expediente. Mais tarde, na Unidade de Protecção Parlamentar, fiz outro curso com militares israelitas. Depois, ingressei no Instituto Superior de Ciências Policiais e Criminais Osvaldo Serra Van-Dúnem. Mas, antes, fiz a minha primeira licenciatura, em Psicologia do Trabalho e da Organizações, na Universidade Óscar Ribas. Ingressei em 2010. No ano em que estava a terminar a licenciatura em Psicologia, abriu o Instituto Serra Van-Dúnem, onde eu estudava de manhã. De noite, ia às aulas na Óscar Ribas, onde frequentava o último ano de Psicologia.


  EM ANGOLA
Primeira licenciada em Ciências Policiais e Criminais
Aque horas trabalhava?

Não trabalhávamos. Estávamos na condição de cadetes. Em 2012, dei início à licenciatura em Ciências Policiais e Criminais. Há um marco histórico na minha vida: sou a primeira licenciada em Ciências Policiais em Angola. Fui a primeira a ser outorgada e a primeira a licenciar-se no Serra Van-Dúnem. Tive, também, a melhor nota: 18 valores. Sou da primeira geração, do I curso. Quando chegou o momento da defesa, fui a comandante do Batalhão e também a primeira mulher a comandar um batalhão de cadetes. Estamos a falar de mais de novecentos cadetes. Eu era a comandante e a chefe do curso. Quando chegou o momento da defesa, eles fizeram uma cerimónia de defesa pública, com órgãos de comunicação a cobrir o evento, que contou com a presença do comandante geral. Seleccionaram as três melhores monografias. Eu fui a primeira a defender e a primeira a receber o grau de licenciatura.


O facto de ter sido a primeira deixou-a nervosa?
Sim. Havia um enorme frio na barriga. Eu estava muito nervosa, mas, ao mesmo tempo, muito confiante. Também devo dizer que consegui controlar o nervosismo, porque já tinha, na altura, a formação em Educação, que me pôs em contacto com alunos. Antes de ser polícia, eu já dava aulas. Trabalhei numa ONG que pertence à Igreja Católica. Dei aulas no ensino privado e também sou alfabetizadora e assistente social na igreja Nossa senhora do Rosário.


Qual foi o tema da sua defesa?
Falei sobre a problemática do atendimento ao público nas esquadras. É um tema que eu muito gosto, que eu pesquiso, é actual, pertinente e, até hoje, ainda representa alguma preocupação a nível da PN. Cingi-me, particularmente, ao atendimento às vítimas de crimes violentos, como o abuso sexual, a violência doméstica, maus-tratos a idosos, etc.


Como estava, na altura, o atendimento ao público nas esquadras, e como está agora?
Devo reconhecer que, com o lançamento do projecto "A Nossa Esquadra”, já há muito se verificam mudanças no que diz respeito ao atendimento ao público.


Que objectivos tem o projecto "A Nossa Esquadra”?

O objectivo é optimizar, melhorar a prestação do serviço policial em todas as esferas, desde o atendimento, acompanhamento, à resposta às solicitações que afligem o cidadão, em termos de segurança, formação do efectivo, qualificação; em termos de meios, desde os automóveis aos tecnológicos.


Já tem reflexo disso, por exemplo, no Kilamba?

A nível do Kilamba, trabalhamos com o sistema de camarização, um sistema informático que nos permitiu reduzir os papéis e tornar os trabalhos mais expeditos. É o conjunto de câmaras que temos, que nos permite prestar um serviço muito mais célere, com acompanhamento, em tempo real, das coisas que ocorrem na via pública, através da captação de imagens. Temos um conjunto de câmaras que estão posicionadas em locais próprios, para facilitar o trabalho da Polícia. Isso ajuda-nos bastante na prevenção de algumas situações que têm a ver com a Polícia.


Estamos no mês dedicado à mulher. Que atendimento dão às vítimas de violência doméstica, sobretudo às senhoras, e como está a Cidade do Kilamba nesse quesito?
Lembro que, em 2015, demos início, com a coordenação do Comissário Kiari, actual director de Segurança Institucional do Ministério do Interior, a um conjunto de palestras a nível do território nacional e levamos a cada província a importância de um atendimento de qualidade ao público. Nesse aspecto, podemos dizer que muito já foi feito e muito ainda está por se fazer. É um processo. Mas podemos arriscar, dizer que hoje já nos preocupamos muito mais, como comandantes, com a questão do atendimento ao público. Precisamos de humanizar mais os nossos serviços públicos. É uma preocupação desde o domínio estratégico até à base. Nós somos os executores dessas missões.


Têm sido bem sucedidos?

Muito bem sucedidos. Temos realizado formações on Job, para ir refrescando os efectivos sobre a questão do atendimento ao público. Nós queremos chegar lá. Se não chegarmos à excelência, vamos passar muito próximo. Com o esforço de todos, com a colaboração do cidadão, eu tenho fé em que ainda vamos ter um serviço, uma Polícia cada vez melhor. Aliás, estamos a caminhar para esse efeito.


E quanto à violência doméstica?
Quanto à questão da violência doméstica, sim, temos recebido muitos casos, essencialmente de mulheres. As cifras recaem para uma maioria de ocorrências feitas por mulheres. Mas também já recebemos, em poucos números, homens que vêm fazer queixas de que foram vítimas de violência doméstica.


Já detiveram alguma senhora por agressão ao marido?
Já sim e ela foi entregue ao Ministério Público.


Como são atendidas essas pessoas?
Procuramos atender de forma personalizada, para evitar o processo de revitimização, que é ser vítima da situação que já viveu. Ou seja, ser agredida e quando chega aos serviços de atendimento, na esquadra, volta a ser vítima, pelo mau atendimento do graduado ou do atendente em serviço. Portanto, torna-se vítima duas vezes: da situação que ela vive e da prestação de serviços. O que é mau. Então, é isso que queremos evitar, prestando um serviço personalizado. Primeiro, por se tratar de um crime, uma ocorrência sensível, vexatória, o que procuramos fazer é, de forma reservada, personalizada, atender esse caso com maior celeridade. Quanto mais expedito for o processo, melhor, para que a vítima não se sinta aborrecida, desprezada, então é importante olharmos para a vítima com outros olhares. Não nos preocuparmos só com o criminoso, mas também ter em atenção a vítima.  Nesse diapasão, realizamos esse atendimento personalizado, ouvimos atentamente, colhemos a situação, formalizamos a abertura do processo, que tramita às outras áreas ou aos outros actores de justiça.
Também temos o acompanhamento psicológico. A polícia tem um Departamento de Psicologia para que, caso a vítima queira, nós a encaminhamos até ao Departamento, para que tenha essa assistência.


Que tratamento se dá a quem agride?
Por se tratar de um crime, quem agride deve ser responsabilizado. Como é um crime que preenche elementos para uma detenção, normalmente esses casos acabam dando uma detenção e a abertura de um processo-crime. Naturalmente, deve-se antes levantar esse conjunto de requisitos para formalizar o processo.


É necessário que quem queixa tenha sinais de agressão?

Não. Há casos de pessoas agredidas sem sinais físicos visíveis. Mas nem sempre a agressão é física. O psicológico, a maneira como a vítima se comporta, deve ser avaliada. Há situações em que o agressor toca numa zona sensível e causa lesões no interior do organismo da vítima. Pode não ser visível na hora, mas a vítima pode desenvolver depois uma complicação muito grande. Em muitos casos, pode evoluir para óbito ou para o comprometimento de algum órgão da vítima ou de algo que comprometa a integridade dessa pessoa.


E se alguém mentir? Como se prova que a pessoa foi, de facto, agredida?
Nós temos um laboratório de criminalística. É através dos exames laboratoriais que conseguimos determinar que a pessoa sofreu uma lesão, com determinadas características e o seu nível de perigosidade. Estas informações vão dar imputes à procuradoria ou ao serviço de investigação.


Enquanto isso a pessoa agressora fica detida?
Sim. Isso é muito rápido. Determina-se em 24 ou 48 horas. Também é verdade que, em casos em que não há sinais, factos, nexo, abrimos uma participação normal, em que o indivíduo responde em liberdade, ou seja, não é detido. Mas é aberta uma participação, para que se determine se, de algum modo, tem alguma relação com o crime. Ele está indiciado e responde a um crime. Nem tudo dá detenção. Às vezes, as vítimas só querem ver o indivíduo na cadeia, mas nem tudo é motivo para detenção. Ainda mais nessa fase, em que estamos em pandemia. Não podemos ter um número exacerbado de detenções, temos que filtrar. O importante é não ficar 24 a 48 horas na cela. O processo é que deve avançar para que chegue a um julgamento.


Corrija-me se estiver errada: a detenção costuma funcionar, também, como um correctivo? As detenções corrigem, ou não, o agressor?
Sim. Mas o indivíduo que não fica detido inicialmente vai ter o correctivo quando for julgado. Pela minha experiência de comandante, em quase todos os casos tratados sob uma detenção, os agressores corrigiram-se. Alguns deles até vêm à esquadra dar garantia à comandante que nunca mais vão tocar na mulher. Preferem partir para outra relação. Há casais, no Kilamba, a viverem separados, na mesma casa, e a não agredir a esposa ou os filhos. A detenção, aquele clima de cela, faz o agressor reflectir e chegar à conclusão de que a violência não é a solução para os problemas. Nalguns casos, funciona, noutros, não. Indivíduos há que, depois da detenção, voltam a agredir. Essa pessoa, por ser reincidente, exige de nós um tratamento mais exigente.


Falou de casais moradores do Kilamba que, mesmo separados, vivem juntos, no mesmo espaço…
Sim, vivem! Temos aqui esses registos do Kilamba. Através do policiamento de proximidade e da acção social, acompanhamos essas famílias. Vivem em situação de desequilíbrio familiar, por litígio de titularidade de património. Ninguém quer deixar o apartamento e, como há essa luta, os casos são encaminhados para o tribunal, que define o que deve ser feito. Enquanto não determina, os casais vivem nessa condição. São famílias completamente dissolvidas, desestruturadas, que, para o mundo exterior são um casal, mas, dentro de casa, já não são uma família. Cada um ocupa o seu compartimento, dividem as mobílias, em alguns casos dividem, até, os filhos. Cada um se responsabiliza pelo filho que lhe cabe e vivem nessa confusão em que envolvem as crianças. É uma situação muito grave. Há casos em que o homem até a namorada leva para a casa do casal.


A comandante já presenciou consequências de situações destas?

Sim! E, entre elas, está o insucesso escolar dessas crianças. Temos encontros com directores de escolas e professores, que manifestam essa preocupação. Temos crianças com comportamentos violentos na escola. Quando aprofundamos o nosso conhecimento da situação, percebemos que é uma criança que está no meio de uma confusão muito grande, um ambiente familiar completamente destruído. Temos, ainda, crianças envolvidas no consumo de substâncias psico-activas, geralmente a cannabis activa, vulgo liamba, também oriundas de famílias desestruturadas. Para piorar, há a questão da delinquência juvenil. Como não há um controlo, um acompanhamento, um equilíbrio familiar, muitas dessas crianças entram no mundo da delinquência e os pais sequer se apercebem, porque não há essa saúde familiar.


  VIDA PARA ALÉM DA FARDA
"Não sou muito de amigos”

Quem é a comandante Gorett? Como se descreve pessoalmente?
É suspeito falarmos de nós mesmos, mas temos, também, o nosso espelho interior que nos permite conhecer um pouco de nós.


O que diz o seu espelho exterior e o que as outras pessoas dizem de si?

Depende da esfera. Somos o que somos, independentemente de com quem interagimos. No geral, considero-me uma pessoa bastante comunicativa. Gosto de interagir com pessoas, gosto de aprender, conhecer o outro lado do que as pessoas vivem. Sinto-me muito bem, quando pratico actos de solidariedade e amor, de manifestação de afecto, de auxílio ao próximo. Com os meus, com as pessoas que pertencem ao meu micro espaço, sou bastante extrovertida.


Tem tempo para amigos?

Não sou muito de amigos. A minha grande amiga chama-se Gizela Bartolomeu. Estudou comigo, foi minha companheira de quarto, tínhamos a vida juntas, fizemos a recruta juntas. Foi minha colega de carteira, na faculdade. Ela está a frequentar o curso de comando e operações de esquadra. Também vai ser comandante.


Geralmente, quem ouve falar numa mulher jovem e comandante, pensa logo numa dama de ferro. Isso é verdade?
Sim, tem a sua verdade, porque o exercício da nossa função põe-nos em contacto com situações que exigem de nós bastante destreza e rigor no cumprimento do dever e não só; tem a nossa formação. Nós, como polícias, somos treinados desde a primeira instância a manter a disciplina.


Também são treinados para esconder emoções?
Depende da situação. Há aqueles casos em que temos de nos manter firmes e fortes. Naturalmente, somos polícias, mas temos o lado humano.


No exercício das suas funções, já chorou alguma vez?
Já sim. Nesse dia, eu estava de serviço de OSA (Oficial Superior de Assistência) e ocorreu um caso de violação sexual. Uma jovem vinha da igreja e entrou num táxi em que estavam quatro elementos. Foi levada para um ponto isolado, nas imediações dos Bitas, abusada sexualmente, agredida e torturada. Era uma jovem pura, estava a guardar-se para o casamento. Ela chorou a noite toda e tentou o suicídio, jogando-se na estrada, naquele dia mesmo. Foi uma situação muito dura. Coloquei-me no lugar daquela menina. Aqueles homens mataram-na psicologicamente, sobretudo porque estava na semana em que se ia casar. Chorei, porque senti muito por ela. Aqueles homens foram cruéis.


Para os seus pais e irmãos, também é comandante? Como olham para si?

O meu pai faleceu há dez anos. A minha mãe olha sempre para mim como a filhota dela. Ela diz: "comandante é lá na esquadra. Você aqui é a Nucha”. Ela olha para mim como a primogénita dela, como a companheira dela. Até me vê como a boneca dela e não como comandante.


A comandante é muito jovem. Consegue ter uma vida normal, como a de outros jovens da sua idade?
Infelizmente, não tenho. Por isso, perdi alguns amigos. Não há muito tempo. A profissão de polícia é muito ciumenta e, ainda mais, quando estamos na condição de comando, porque consome-nos o tempo todo, a vida. Temos que fazer um exercício muito grande para poder encaixar as outras esferas da nossa vida.   
                       

Fale-me das outras esferas da sua vida. O que faz quando não está a dirigir a 52ª esquadra?
Além de polícia, sou mãe, esposa, sou filha, irmã, docente, estudante. Então, temos que fazer esse grande exercício, para encaixar os outros micro-espaços da nossa vida. É mesmo complexo, mas é possível. Consome-nos o tempo todo. Muitas vezes, não conseguimos fazer as coisas para nós mesmos, temos que fazer uma ginástica muito grande, estar sempre a adiar as questões pessoais, por inerência da nossa missão. Mas eu costumo dizer que é um sofrimento gostoso, porque quando fazes as coisas por amor, e eu gosto muito do que faço, tudo corre bem.


Em casa é comandante ou esposa?

Sou esposa, mas, ser necessário, viro mesmo comandante.  
                                           

O seu marido deixa?  
Sim. Há aquelas situações em que não precisamos esperar que o outro faça. Se for necessário, a gente pode ser um bocadinho comandante, porque a mãe também comanda o lar.  


Quando se é comandante e esposa, é possível exercer o papel que a Bíblia recomenda a uma esposa, ou seja, ser submissa ao marido?
Na verdade, essa é uma questão que dá muito pano para a manga. Mas é importante, e digo sempre isso, saber viver intensamente cada esfera da nossa vida. Enquanto comandante, sou mesmo a Comandante. Se encontrar-me no exercício das minhas funções, ainda que esteja diante de um familiar, de um amigo, dos meus filhos, do meu marido, sou a Comandante. Não esperem o contrário. Fora desse âmbito, se estivermos num ambiente familiar, sou a esposa, a mãe, a querida. É um exército muito grande, confesso, porque é uma luta de forças. Mas, apesar do grande esforço que exige, consigo impedir que uma esfera se introduza na outra. É importante abrir um parêntese, para dizer que nós, mulheres polícias, muitas vezes somos estigmatizadas,à partida, pelos homens. Muitos deles entendem que uma mulher polícia é insensível, mandona, durona e arrogante. Isso não é verdade. Se assim acontecer, não tem a ver com a profissão, mas sim com a personalidade dessa mulher. Então, é importante que tenhamos presente esse lado feminino, para não afugentar os nossos parceiros.


Tem uma boa relação com o seu parceiro? Ele não fugiu de si?
Ainda não! Temos uma relação saudável e ele ainda não fugiu.


Que tipo de mãe é? Tem tempo para cuidar dos seus meninos?
Sou a mamã do David e do Josué. Graças a Deus, consigo tempo para cuidar dos meus filhos. Como vivo aqui próximo, consigo tirar um tempo para ir a casa vê-los. Quando não consigo sair, contacto a babá ou a minha sobrinha, que vive comigo e também acompanha essas situações.


Sobra-lhe tempo para a vaidade, ou seja, fora da esquadra, usa salto alto ou botas?

Estou há um bom tempo sem usar salto alto. Estou tão acostumada com as botas, que, quando sou convidada para algum evento que exija o uso de saltos, eu já digo que vai ser complicado. Mas não deve morrer a vaidade. Aliás, a mulher, por natureza, deve sentir-se bem consigo, deve gostar de si, deve cuidar-se, ainda que use uma bota. Nós podemos ser princesas, de botas.


Prefere usar botas?
Sim, prefiro. Eu gosto muito de botas. Se fosse permitido andar fardada até no dia-a-dia, eu andava com a farda até para ir passear. Estou tão acostumada com a farda e com as botas, que já não me vejo sem elas. Quando uso outras roupas, sinto que não estão ajustadas ao corpo.


  GOSTAR DO QUE SE FAZ
"Eu não saía da polícia, nem a brincar”

Já percebi que gosta muito da sua profissão. Será pela sensação de poder que lhe dá?
Não. O que me faz gostar é a história. O sacrifício que vivi para conseguir jurar a bandeira, marca um compromisso com a pessoa. Por outro lado, tem a questão do crescimento pessoal. É você olhar para trás, perceber que veio de longe e acreditar que ainda pode chegar mais longe. Eu não saía da polícia, nem a brincar. Gosto muito do que faço. Já me perguntaram se não largaria para trabalhar onde me paguem melhor, eu disse que não. Gosto muito de ser polícia. É um prazer ser útil e prestar serviço em prol do bem-estar dos outros.


Teria problemas, se um dos seus filhos optasse em ser polícia?

O meu Davidzinho já diz: ‘mamã, eu sou polícia”. Todos os dias quer colocar o meu kiko, a boina, quer experimentar a camisa. Aprendi com o meu pai e hoje acho que não devo impedir os meus filhos de realizarem o que desejam. Salvo se forem actividades inconfessas. Como mãe, devo ajudar, orientar e instruir os meus filhos. Eles escolhem a profissão. Desde que gostem, eu vou respeitar.


Como é tratada pela família e como trata os seus familiares?

Os meus irmãos tratam-me com muito carinho, muito respeito. Eles orgulham-se muito da mana mais velha e eu gosto muito deles também. Eu amo muito os meus irmãos. Muito mesmo! Sou mesmo fã deles. Fomos criados juntinhos e faria tudo e mais alguma coisa para vê-los bem.


A comandante tem que fazer um esforço duplicado pelo facto de ser mulher?

Sim. Infelizmente, nós ainda vivemos essa realidade. O homem até pode não ter capacidade, mas não precisa de provar nada, porque ele é homem. Já a mulher, ainda que competente, tem que passar por uma provação, para que se perceba que ela merece essa oportunidade.


Isso, no meio policial, que é muito masculinizado, não agrava a situação da mulher?
Devemos reconhecer que já temos grandes avanços a nível da Polícia, que é dos órgãos que mais dão oportunidade às senhoras. Temos muitas senhoras e, sobretudo, muitas em cargos de direcção. Naturalmente, isso deve ser meritório, não deve ser quotizado. Hoje, já há, cada vez mais, mulheres a comandar esquadras, a chefiar direcções, departamentos, secções. Aos poucos, vemos esse processo mais activo, relativamente à ascensão da mulher. Mas é verdade, também, que nós, mulheres, até hoje ainda lutamos pelo respeito, pela aceitação. Ainda que sejamos competentes, temos que provar sempre que merecemos essa oportunidade. A luta é grande e, naturalmente, só os fortes vencem. Deus fez da mulher uma fortaleza. Então, é uma caminhada muito longa, mas estamos aqui para enfrentar todos esses sacrifícios. Aliás, gostamos de desafios.


Noto que é conhecida e lida bem com a comunidade. Que relação mantém com as trabalhadoras de sexo que frequentam a sua zona de jurisdição?
Nós procuramos manter uma relação humana. Não somos apologistas do trabalho que elas fazem, mas procuramos, da melhor maneira, tratá-las com respeito e humanismo.


Há muita prostituição na sua área de jurisdição? Essas trabalhadoras do sexo vivem no Kilamba?

Penso que já houve mais. Agora, não. Já tivemos picos relativamente a essa questão de prostituição. Mas hoje baixou consideravelmente. Elas não vivem no Kilamba, vêm de outros pontos, para relacionar-se com os moradores. O Kilamba, para elas, é uma fonte de trabalho, porque muitos moradores promovem isso. Eles mesmo é que vão do outro lado, à procura de trabalhadoras do sexo. Mas o número reduziu muito.


Falava, à bocado, em relação humana. Pode explicar melhor?

Procuro conversar muito com elas, com cuidado, para não ferir sensibilidades, e alertá-las para os males, os perigos a que estão expostas. Não só na questão da transmissão de doenças sexuais, mas também sobre os riscos que correm. Muitas já foram agredidas, sequestradas, abusadas sexualmente. Correm risco de vida. Nunca registamos nenhum óbito, nem queremos, mas fazemos questão de alertá-las sobre os perigos que correm, por exemplo, ao entrar na viatura de alguém que não conhecem. Essa pessoa, depois de lhe ser prestado o serviço, pode tirar-lhes a vida. Há homens que, depois de satisfazerem os seus desejos, não querendo pagar pelos serviços prestados, acabam agredindo-as. Aconselhamo-las a levar a vida da melhor forma, sem perigos, a ter uma vida saudável, digna, vivendo com pouco. Lavem a louça, limpem o chão, sejam empregadas domésticas, vendam alguma coisa, cozinhem. Só não se exponham a tamanho risco. Muitas delas já foram colocadas em cárcere privado durante muito tempo, sendo abusadas por vários homens. É muito arriscado e muito perigoso.     


  PERSPECTIVA FUTURA
"Um bom soldado almeja sempre ser general”

Comandante, o que ainda lhe falta fazer, onde quer chegar e quais são os seus sonhos?
Olha, diz-se que um bom soldado almeja sempre ser um general. É o meu caso. Eu quero continuar a crescer, não só do ponto de vista promocional, mas também do profissional e pessoal. Quero, cada vez mais, fazer de mim uma boa cidadã, uma boa criatura de Deus e uma boa profissional da Polícia. Estou a concluir o meu mestrado em Segurança Pública e pretendo fazer o meu doutoramento na mesma área. Quero, também, abrir um lar para a protecção e cuidado de crianças desfavorecidas, que não tenham família. Isso é um projecto que estou a tratar e tenho fé em que posso conseguir realizá-lo. Para isso, conto com os meus irmãos da igreja, que sempre trabalharam comigo em lares. Trago essa experiência desde os meus 15 anos.


Como foi perder o pai? Se estivesse vivo, o que sentiria ele hoje, ao olhar para si?

Sentiria muito orgulho. A morte dele foi muito dura para mim. O meu pai deixou-me com 21 anos. Foi dos momentos mais desastrosos, mais difíceis da minha vida. Desorientou-me completamente. Na altura, eu estava a frequentar o curso de Psicologia e era muito próxima do meu pai. Era muito meu amigo. Ele estava em missão de serviço na província do Uíge, onde trabalhava na Procuradoria Militar. Naquela semana, veio para casa ver-nos e sou eu quem o levou para o quartel, para, de lá, partirem para o Uíge. Levei-o numa sexta-feira e, na terça-feira a seguir, o meu irmão ligou para mim a dar a triste notícia. Não sei porquê, naquele dia fui passear a casa de uma tia, que era vizinha e decidi dormir lá. A minha tia disse para eu ligar para a minha mãe, que é irmã dela, e foi o que fiz. Comuniquei à minha mãe que era tarde e que ia passar a noite na tia. Eu estava a dormir e o meu telefone tocou às duas da manhã. O meu irmão disse: "Nucha, o pai morreu”. Até hoje não consigo ultrapassar esse trauma. Sempre que algum familiar liga para mim fora de horas, eu revivo aquela angústia. Tive que procurar assistência psicológica. Eu não conseguia receber telefonemas fora de hora. Tremia toda, a minha pressão subia; é como se revivesse a morte do meu pai.

Edna Cauxeiro

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