Opinião

O novo Código Penal e as ordens superiores

O Código Penal aprovado pela Lei n.º 38/20, de 11 de Novembro, que revogou o Código Penal Português de 1886 que vigorava no solo pátrio desde a independência é, indiscutivelmente, um marco indelével na história do povo angolano, em especial para o grupo de técnicos (juristas e não só) que trabalharam directamente no processo de produção do mesmo, sendo o dia 11 de Fevereiro de 2021 igualmente um marco histórico pelo facto de ter sido nesta data em que o referido diploma legal passou a vigorar.

26/02/2021  Última atualização 09H53
Como qualquer código, o recentemente aprovado e em vigor foi concebido com os cuidados que um processo de codificação demanda tendo em vista regular comportamentos sociais durante um longo período como ocorreu, por exemplo, com o seu predecessor, o qual "durou” 135 anos. 

As equipas de trabalho, integrando maioritariamente técnicos nacionais com vivência da realidade quotidiana do país, que lidaram com a preparação e produção do Código Penal Angolano revelaram grande conhecimento da situação actual e, perspectivando uma sociedade muito parecida com aquelas em que o Direito aplicável em Angola se vem inspirando desde a sua independência, nomeadamente os países de matriz ético-social judaico-cristã, não se coibiram de lançar as bases para a aceleração da formalização da economia ao criminalizarem, por exemplo, o comércio de moeda fora dos circuitos oficiais e a detenção de montantes acima de Kz 2.700.000,00 (dois milhões e setecentos mil Kwanzas), como estatuem os artigos 466.º e 468.º, respectivamente.

Isto revela bem a ruptura com algumas práticas que a despeito de nunca terem sido socialmente reprovadas como tal nem por isso se coadunam com o tipo de sociedade que se pretende num futuro cada vez mais tecnológico e formal. Dito de outra forma, o legislador fez, de forma visonária, tábua rasa da realidade social actual para com isso forçar a alteração de um segmento importante e histórico do comércio, por um lado, claro, e ao mesmo tempo, por ter noção de que grande parte das famílias angolanas que se enriqueceram de forma indescritivelmente indecente à custa do sofrimento da maioria sempre acreditou no entesouramento mais seguro que é e sempre foi feito essencialmente em casa, fazendas, contentores, móveis, em cofres privados,  garrafões de vinho vazios e/ou noutros depósitos, uma vez que a banca comercial funciona, pelo menos em tese, com base em critérios que exigem dos depositantes a prestação de algumas informações como a proveniência e o destino de fundos movimentados.

Uma outra novidade é a criminalização da corrupção no sector privado, artigos 459.º e 460.º já que no regime legal anterior este crime tinha que ter sempre como autor activo ou passivo um empregado ou funcionário público. Tal criminalização se justifica porque a corrupção em Angola cristalizou-se ao ponto de ser um desvalor que povoa o imaginário colectivo de muitos agentes económicos nacionais e estrangeiros com actividade no território nacional, sendo por isso um dos perigos mais iminentes ao crescimento e desenvolvimento do país.

A ousadia do legislador e a visão de futuro evidenciada nas normas ora referidas parece contrastar com a previsão constante do artigo 30.º, n.º 2, alínea c) que, se mal interpretada, poderá abrir uma "via expresso” para o empowerment de agentes públicos que poderiam agora "cometer excessos” e que legitimará execuções extrajudiciais uma vez que este texto legal afasta a ilicitude de crimes cometidos por quem esteja a cumprir uma ordem legítima de autoridade.

A  natureza abstracta da expressão ordem legítima de autoridade parece afastar liminarmente a necessidade incontornável de qualquer ordem, seja ela superior ou não, se fundar na lei. Vale aqui lembrar que a legitimidade de quem quer que seja, maxime de uma qualquer autoridade, não se constitui  senão num requisito de titularidade do poder que essa autoridade possa titular em qualquer momento dado, ao passo que a  legalidade, que se constitui no requisito e fundamento do exercício do poder, deve estar sempre presente. De contrário não há como afastar a ilicitude em caso de cometimento de crime na execução de tal ordem legítima de autoridade. A norma em apreço, uma vez mal interpretada, pode criar nos servidores públicos titulares de poderes de autoridade ou que venham a estar investidos de poder de autoridade, a ideia de impunidade.

Com esse normativo, uma vez mal interpretado ou interpretado de forma conveniente para fins egoísticos, pode se abrir uma porta para os excessos, sendo que a mitigação deste mal iminente só poderá depender do nível de moralidade de quem tiver o poder ou do destinatário da ordem que tiver a incumbência de cometer o crime. Porém, sociologicamente não há registos de uma tendência generalizada de servidores públicos resistirem, respeitosamente e com fundamentos na lei, às ordens superiores, pelo contrário, a experiência angolana, mais propriamente do funcionalismo público nos últimos 40 anos demonstra que os "desobedientes” que se estribando na moral, no direito e na justiça ousaram resistir ao mandado de superiores hierárquicos, não raras vezes, caíram em desgraça. Aliás, por cada "desobediente” que possa resistir à execução de uma ordem ilegal, provavelmente se voluntariariam outros servidores públicos que ávidos de darem um salto na carreira não hesitariam em agradar o seu superior hierárquico. 

Olhando para esta hipotética ideia de legitimação do crime cometido no cumprimento de ordens superiores o ex-governador do Banco Nacional de Angola, Válter Filipe da Silva, condenado em primeira instância pelo Tribunal Supremo recentemente, jamais teria sido submetido a um investigador, procurador ou juiz se o seu superior hierárquico, no caso o ex-Presidente José Eduardo dos Santos, à luz desta norma do Código Penal em análise, fizesse questão de assumir que o seu subordinado estava apenas a cumprir uma ordem legítima de autoridade, ou seja, uma ordem superior.

O exemplo do caso Valter Filipe da Silva serve para revelar a gravidade do alcance desta previsão de exclusão da ilicitude consagrada no artigo 30.º, n.º 2, alínea c) do Código Penal vigente em Angola desde o dia 11 de Fevereiro de 2021, caso a interpretação da mesma esteja na disponibilidade de servidores imbuídos de má fé, e pode ser confundida com uma espécie de  norma capaz de protagonizar um retrocesso no processo de assimilação dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos iniciado com o nascimento da Segunda República em 1992.

Sob o manto do previsto no artigo ora mencionado, muitos direitos civis, económicos, sociais e culturais consagrados na Constituição da República de Angola poderão ser cerceados por agentes públicos que se sentido acima da lei  poderão se sentir legitimados para fazer justiça como julgarem mais conveniente socorrendo-se para o efeito de ordens superiores.   
Ora, as reformas constitucionais de 1992, acolhidas e alargadas pela Constituição da República de Angola de 2010 ficariam, no cenário da interpretação de conveniência, na disponibilidade de servidores públicos com poderes de autoridade dos quais a sociedade angolana deverá esperar um alto grau de moralidade sob pena de se experimentarem situações assombrosas e que poderão conduzir a um status quo incapaz de assegurar a segurança jurídica que se espera de uma democracia em processo de construção e consolidação como é a angolana.

Sem margem para dúvidas, a disposição legal do artigo 30.º, n.º 2, alínea c), uma vez mal interpretada, colide com as consagrações de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos constantes da Constituição da República de Angola em vigor na medida em que pode permitir  a apropriação por servidores públicos de bens públicos ou de particulares sem observância das normas legais, desde que julguem ter o conforto e a justificação de que seja ao abrigo de uma ORDEM SUPERIOR como terá ocorrido com Valter Filipe da Silva num contexto legal em que o cumprimento de ordens superiores que configurassem crime não ilibava, necessariamente, o agente do crime.  

Assim sendo, não parece ser de espantar que se questione a constitucionalidade desta norma, sendo que neste cenário estaria lançado o desafio a qualquer um dos órgãos elencados no artigo 230.º, n.º 2 da Constituição da República de Angola para promoverem junto do Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade desta norma constante do Código Penal em vigor desde 11 de Fevereiro de 2021. Alternativamente, a julgar-se impertinente esta demanda, poder-se-ia impor a necessidade de uma interpretação autêntica, por parte, obviamente, do  legislador, do sentido e alcance desta previsão legal.

Sebastião Vinte e Cinco

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