Opinião

O renascer do Hospital do Bongo

Manuel Rui

Escritor

Estávamos toda a família, ali nos meandros da Calomanda, subúrbio de Nova-Lisboa, esperando o carro que levaria o meu primo Luís para o hospital do Bongo.

25/02/2021  Última atualização 12H34
Um médico que ficou famoso por bons e maus motivos, havia maltratado a perna do meu primo, guarda-redes  de futebol do atlético clube de Nova-Lisboa, povoado de negros e mestiços. Meu primo sofreu um pontapé na canela, foi para o hospital, o médico maltratou a perna de Luís até apodrecer. Agora era a viagem para o Bongo para lhe amputarem a perna em plena juventude.

A viagem era paga pelo clube patrocinado pela família Machado. Assim que o carro arrancou com Girão,  minha tia Aurora e o filho Luís, chorávamos todos em silêncio. Só o Luís saia impávido e com um abanar da mão direita. Iam andar sessenta e tal quilómetros em estrada sem asfalto, chovendo era o lamaçal, sair, cortar capim éramos de vissapas para desenterrar o carro, às vezes esperar que gente do povoado mais perto, ouvindo o parar da viatura viesse, generosamente empurrar.
No Governo de transição fui visitar o Huambo. Encontrei meu primo Luís, adventista, sem perna, .. carro adaptado, com o curso de técnico de análises, casado com a Ivone professora no Bongo. Soube que Luís e a esposa tiveram que fugir como tantos outros mas voltou e teve de fugir de novo.

Passaram muitos anos. Um dia, quase no fim das guerras, cheguei ao Huambo de avião. Pedi a um primo meu que andara a combater desde os 15 anos que me levasse ao Gove por mor de escrever o meu romance "A casa do rio” em que um angolano que fora obrigado a fugir para o puto e regressou ao Gove encontrando a casa submersa pelas águas da barragem. Do Gove quis ir até ao Bunjei onde iria encontrar o hospital todo destruído e um missionário vindo de Benguela a realizar um culto evangélico ao ar livre. Cantei com eles um hino que sabia da missão da Etunda com pastor Pedras, perto do Huambo. Havia esperança porque no Chipindo já se ouviam os leões, falaram.

Depois, em paz, com Raul David a cantar os Meninos do Huambo em Umbundo estivemos no Longonjo e Lépi com os falecidos Ndunduma e Sebastião Coelho. Mas tinha tirado da memória o Bongo desmemorização instintiva para não recordar o que acontecera ao meu primo Luís. Apenas aqui e além uma ou outra pessoa recordava a família Parsons, pais e filhos já nascidos em Angola, verdadeiros ícones do amor ao próximo.

Agora, o meu conterrâneo Fernando de Oliveira, emérito professor que foi da Faculdade de Direito da UAN, envia-me  assinado por Isaac Paulo um projecto de uma Associação internacional dos Amigos do Bongo. Isaac contactou comigo, sobrinho do falecido Kapango, assassinado na Acmol do Huambo, onde minha família também esteve detida. Na resposta disse-lhe que tenho fotografias do comício que fiz com Kapango e Muteka em Caconda, ele responde e diz a data em que isso aconteceu, estou a perder este "bailundismo" de juntarmos tudo em memória colectiva. O hospital do Bongo renasceu como a força do capim, depois das queimadas, basta a primeira chuvada para o capim renascer. E apontou-me dois exemplo sensíveis. A enfermeira Vitória dos Santos foi raptada do hospital com o médico Sabaté e levada para a Jamba em 1982. Trinta anos depois voltou para o hospital e há mais exemplos desta fibra. Lembrou-me que foi aluno da Ivone no Bongo.

Falta aqui Castro Soromenho para escrever o que se segue, assim, que em 1923, William Harry Anderson, apelidado pelos angolanos por Kokonga, norte-americano nascido no México, passando pelo então Sudoeste Africano, hoje Namíbia, quando alcançou a margem meridional do Cunene, os jangadeiros não aceitaram atravessar por ser quase noite e então perigoso. O missionário tinha do outro lado um português a quem pediria apoio para prosseguir viagem. Quando chegou a casa do que seria seu anfitrião deparou-se com uma cena macabra: os leões tinham comido o homem deixando de sobra os pés dentro das botas…

William ficou deslumbrado com o Longonjo e o Lépi soberbo com suas montanhas pintadas de verde, o ar fresco e puro, as florestas e a pedra grande que parece uma cabeça de elefante, a 637 metros acima do nível do mar. Era bom assentar ali. Mas só o soba do Mbomgo, Tchipopiakulo acedeu com satisfação ao projecto humanista de William, fazer uma missão, com escolas, saúde e alegria de viver. Em 1923, o governador, de passagem pelo Lobito, deferiu o requerimento que legalizou a Igreja Adventista.

Sei agora pelo Isac que a enfermeira Vitória vem do Bongo a Luanda para receber uma pessoa que vai fechar uma lacuna: medicina dentária. É uma estomatologista argentina. A Missão pensa numa Universidade e já tem a cooperação da mexicana Universidade de Montemoretos. Um politécnico em  Chicala Cholohanga e ainda escolas para comunidades mais isoladas e carentes. Nem sabia que, depois das "horas difíceis” já se realizou uma Feira da Saúde com consultas e medicação gratuita.

Retomo os versos que escrevi para Meninos do Huambo. "Capango, Assis, Machado ou Bandeira para os meninos também são constelações.” E vou-me inscrever na Associação que deve acabar em ONG e aceito o convite para passar lá uns tempos a falar de literatura com hospital de graça e muita calma. Poer agora, Vitória traga-me uma batata doce daquela amarela e um lombi de folha de feijão. Lembro-me de uma frase ecuménica que se dizia nos cultos: Deus é amor.

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