Política

O sonho de ser padre interrompido no Tumpo

Adão de Sousa tinha 16 anos, quando, numa manhã de 1980, viu o sonho de ser padre interrompido. Em pleno período de instabilidade militar, o aluno da 6ª classe da Missão do Cuanza-Norte era a aposta do pai, camionista que o dever de família o impelia a percorrer o país, apesar do risco. Era também uma forma de manter o único filho seguro de tentações e dar um caminho próspero ao menino.

23/03/2021  Última atualização 10H22
Adão de Sousa, tropa que andou na mata © Fotografia por: DR
"Saí da Missão com um colega para visitar a minha mãe, que vivia em Ndalatando, quando nos apanharam na rusga”, relembra aquele 12 de Dezembro, dia em que foi incorporado nas FAPLA. Daí para frente, foram passagens por várias frentes de combate, até chegar ao Cuito Cuanavale, e participa na célebre batalha que precipitou a libertação da África Austral.

Aos 57 anos, Adão de Sousa ainda se emociona ao lembrar os companheiros que viu cair no Tumpo. Lembra-se de "um mulato do Huambo”, Beto Valdez, a quem ajuda a estruturar o sonho de ter uma oficina própria, quando a guerra acabasse. Morreu atravessado por uma bala no umbigo. Por isso, Adão de Sousa diz-se um homem de sorte. Hoje, trabalha num órgão de Comunicação Social, mas já fez muita coisa, desde que ajudou a derrotar o poderoso Exército sul-africano. Discreto, este herói do Cuito Cuanavale ainda aguarda pelo devido reconhecimento. 

O percurso é de arrepiar. Depois do recrutamento, foi colocado na 13ª Brigada Motorizada e Infantaria. Vai para uma formação militar, com instrutores soviéticos e cubanos. O aproveitamento impressiona os instrutores, o que leva a ser promovido a sargento, na especialidade de reconhecedor da artilharia.

Em 1983, a Brigada é reestruturada. De Motorizada e Infantaria, passa para Desembarque e Assalto. É, então, equipada com meios de elite, para cumprimento cabal das missões. Já bem preparada e equipada, é movimentada, no ano seguinte, para o Cuito Cuanavale, em substituição da 16ª Brigada, comandada pelo então Major Sakayoya.

Adão de Sousa é o chefe de secção do Reconhecimento da Bateria de Artilharia de Canhões Reactivos, do 1º Batalhão. Ao recordar, a voz trava-lhe. Olha ao redor, como se buscasse auxílio para o que vai dizer a seguir. De repente, um sorriso. Ao retomar a conversa, garante que o desfecho se deveu muito a bravura de comandantes como os dos batalhões Muanha e Nkeleca, bem como do chefe de engenharia,” pelo belo serviço da travessia da técnica toda naquele pântano”. Mais um silêncio e a voz embargada pela emoção.

Lembra que, em Novembro de 1984, por ordem do então ministro da Defesa, Pedro Maria Tonha (Pedalé), a Brigada é movimentada do Cuito Cuanavale para o Bengo, em socorro ao município do Úcua, já que as tropas da UNITA tinham atacado a população de Calomboloca (Catete). "Cumprimos a missão e desalojamos as FALA”, recorda. Reposta a legalidade, a Brigada é mandada de volta ao Cuito Cuanavale. Está-se em Dezembro.

Entre Junho e Agosto de 1985, deflagra-se a "Operação Zebra”. As ofensivas das FAPLA contra as bases da UNITA não encontram qualquer resistência, apesar do apoio das forças sul-africanas, com mercenários à mistura.

Na operação, estão envolvidas as Brigadas 13ª, comandada pelo comandante Kuxixima, 29ª por Zé Pedro, e 39ª pelo comandante Pena. Na operação, conhece o comandante Zé Pedro, que viria, depois, a marcar a sua vida. "Ele conversou comigo e perguntou-me se gostaria de trabalhar com ele, quando a guerra terminasse”, lembra. Mas, no momento, o trabalho era combater.

Com a Força Aérea sul-africana a dominar o espaço aéreo no Sul de Angola, a tropa recebe orientação de parar a ofensiva e regressar às linhas. A 11 de Agosto, pela manhã, uma importante força militar sul-africana, composta por vários batalhões, integrada pelo famoso Batalhão Búfalo e mercenários portugueses, chega às bases da UNITA, a Sul da nascente do rio Lomba e na região do Baixo-Longa.

Duas brigadas das FAPLA (47ª e a 59ª) sofrem uma emboscada, ao atravessar o rio Lomba. Decorrem combates violentos. As tropas estão a apenas 40 quilómetros a Sudoeste da vila do Cuito Cuanavale.  A preocupação é alargar o cordão de segurança do município.

A intenção dos sul-africanos era ocupar a vila do Cuito Cuanavale, em especial o Aeroporto, e impedir apoio logístico às FAPLA. Assim, seria mais fácil realizar incursões combativas, para chegar a Menongue e impedir o apoio da Força Aérea angolana.

Os dias que se seguem são mais difíceis. Forças sul-africanas atacam a estrutura militar e a linha logística de apoio à frente de batalha das FAPLA, na estrada Menongue/Cuito Cuanavale. O alvo, agora, é a ponte sobre o rio Cuito e as instalações da artilharia e radar, baseados no Cuito Cuanavale. Temendo o pior para a população, o comando decide retirá-la. O pânico instala-se. As forças do Exército sul-africano e da UNITA aproximam-se do Cuito Cuanavale. Cercada, a população é submetida a intenso fogo de artilharia e obuses de morteiro inimigo, posicionado nas posições do rio Chambinga.

Em Outubro de 1986, as FAPLA conseguem surpreender o inimigo com a "Operação Saudemos Outubro”. "Laçámos uma ofensiva como se estivéssemos numa guerra sem precedentes”, lembra. "Estávamos bem equipados, com MIG-23 e SU-22, Tanque-62 e helicópteros de ataque MI-24 e 25 envolvendo a 16ª, 21ª, 47ª, e 59ª”, acrescenta. Desta vez, o desfecho é feliz. As FAPLA consolidam posições, até que a 3 de Outubro de 87, o Exército sul-africano ataca as posições e intensificava as acções com aviação Mirage F1, Impala, lançando múltiplos foguetes e obuses G-59, mas encontraram uma resposta da 21ª e da 25ª Brigada, comandada pelo comandante Valeriano.

Em Janeiro e Fevereiro ocorrem mais algumas ofensivas das tropas inimigas, mas com a devida resposta das FAPLA. Até que a 23 Março de 1988, convencidos de que podiam ocupar a Vila do Cuito, o Exército sul-africano volta a atacar, com todo o arsenal bélico. Os combates são intensos. Mais uma vez, a resposta das FAPLA desmoraliza o inimigo que vê perder todos os meios. "Eles temiam, também, a nossa Força Aérea, porque os caças soviéticos eram mais rápidos e temidos”, lembra, e revela que o antídoto para a vitória foi, também, as palavras do Presidente Agostinho Neto, que dizia que "Angola é e será por vontade própria trincheira firme da revolução em África". "Os políticos, por palavras simples, dizem que se a casa do vizinho pegar fogo tu deves ajudar, para proteger a sua”.

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