Opinião

Olhar para a floresta e não ver a árvore

Filipe Zau |*

Músico e Compositor

A situação da formação de professores em Angola sempre se caracterizou por uma série de dificuldades, que, a quase nula investigação e ausência de publicação, discussão e divulgação dos resultados dos estudos, não permite melhorias, apesar de haver um Instituto Nacional de Investigação e Desenvolvimento da Educação (INIDE).

05/05/2021  Última atualização 06H00
Durante muito tempo, dizia-se que a Educação não era um sector produtivo. Por conseguinte, as grandes questões apresentadas foram ficando à margem da agenda política. A título de exemplo, consultem-se as seguintes conclusões e recomendações: do Diagnóstico Endógeno do Sub-Sistema do Ensino de Base Regular (1986); da Mesa Redonda de Educação para Todos (22 a 27 de Julho de 1991); do Exame Sectorial da Educação (22 de Julho a 32 de Agosto de 1992); do Plano Quadro de Reestruturação do Sistema Educativo (Maio de 1995); da Estratégia Integrada para a Melhoria do Sistema de Educação (Agosto de 2001) … 

A fracção do OGE destinada à Educação, a ausência de uma adequada regulamentação do subsistema de formação de professores, transversal a todos os outros subsistemas, as  poucas escolas de formação docente, a ausência de uma política de colocação de professores, de reconhecimento social da actividade profissional, a fraca resposta do papel social que as Escolas de Magistério Primário e dos ISCED deveriam ter…,  são algumas das muitas dificuldades existentes na Educação.  Hoje, face aos resultados do Relatório do Programa PAT – Programa de Aprendizagem para Todos – em que, para além do Governo, está envolvido o Banco Mundial, assustamo-nos com a informação de que cerca de quatro mil professores não sabem ler, resultado constatado em apenas cinco províncias do país. De cima dos meus 70 anos de idade, cinquenta deles como profissional da educação, achei por bem não meter a "cabeça na areia” como o avestruz e fiz este "aviso à navegação”, para além da necessidade de se fazer um diagnóstico profundo ao ensino primário, a partir do meio rural, para que não se confundam inferências com evidências. Já em 1986, o diagnóstico realizado alertava para o facto de "(…) em cada 1.000 crianças que ingressava no primeiro ano de escolaridade, somente 142 concluíam o ensino primário, das quais, 34 transitavam sem qualquer repetição, 43 com uma, e 65 com duas ou três repetições”. Como académico, retenho uma das constatações do filósofo ghanês Kwame Anthony Appiah, no seu livro "Na casa de meu pai”: "sou aplicado o bastante para me sentir atraído pela enunciação da verdade, mesmo que o mundo venha abaixo e sou animal político o bastante para reconhecer, que há lugares e situações em que a verdade prejudica mais do que ajuda”.

No pós-independência, a gritante falta de docentes para o ensino de base, levou o Governo a recorrer aos monitores escolares, que tinham apenas como habilitações a 4ª classe. Se antes actuavam apenas nos meios rurais e peri-urbanos, com a situação de conflito armado e de pobreza, migraram para as zonas urbanas. A meta estabelecida, em 1977, de se elevar o grau de escolaridade e de melhorar o desempenho pedagógico de 20 mil professores habilitados com a 4ª classe, até ao nível de 6ª classe e, posteriormente, numa segunda etapa, mais 20 mil professores do ensino básico, de 6ª classe até à 8ª classe, procurou ser feita com o apoio de Unidades de Auto-Formação (Ensino a Distância). Tal permitia que se superassem académica e profissionalmente, perto do local de residência, sem que se tornasse necessário abandonar as suas actividades profissionais junto das crianças. Mas, já à época, as dificuldades decorriam da pouca competência dos formandos no domínio da língua de aprendizagem (o português), o que levou a uma obrigatória interrogação: "Se os professores apresentaram dificuldades na compreensão das Unidades de Auto-Formação, redigidas na língua de escolaridade, sendo eles docentes, que resultados poderemos nós aguardar das crianças que estes mesmos "monitores” ensinam? [ZAU, Filipe (2002), «Angola: Trilhos para o Desenvolvimento», Universidade Aberta, cap. IV, pp.225-231, disponível em suporte informático]. 

Se o professor, de qualquer nível de ensino, continuar a ser visto apenas como mero funcionário público e não como um interventor social de excelência, no contexto de uma profissão liberal, capaz de proporcionar transformações na sociedade, perde-se de vista o agente estratégico de desenvolvimento comunitário. Hoje, há problemas ainda maiores, que vou tomando conhecimento e que a ADRA me vai confirmando. Exemplos: em uma mesma sala de aulas, há quem ensine as classes todas, da 1ª à 4ª classe, sem conhecimento de qualquer metodologia para leccionar as quatros classes em simultâneo; professor que está apenas habilitado para leccionar até à 6ª classe, mas que, por falta de outros docentes, dá aulas até à 11ª classe, numa espécie de "monodocência esticada”; professor que paga a outras pessoas para darem aulas por ele…Por volta de 2008 ou 2009, fui convidado para leccionar num mestrado para professores já licenciados, em exercício de funções, promovido pelo Ministério da Educação e tinha de me deslocar às províncias para dar os módulos de uma das cadeiras. As minhas aulas decorriam na sexta-feira à tarde, sábado e domingo, para segunda-feira regressar a outras actividades profissionais, em Luanda. Ao sábado, depois do almoço, os formandos começavam a adormecer e eu procurava falar cada vez mais alto, mas não dava resultado. Decidi então mudar de estratégia pedagógica e solicitar aos professores-estudantes que eu indicasse, que lessem e comentassem partes do power point que eu levava. 

No Lobito, solicitei a um professor-estudante que lesse uma parte do texto que estava no power point e vi que ele demorava bastante tempo para começar. Semi-cerrava as pálpebras, mexia ligeiramente os lábios, mas não iniciava a leitura. Na total inocência perguntei-lhe, se não tinha consigo os óculos. De imediato, houve gargalhada geral na sala e uma desafiante reacção daquele professor-estudante: "Estão a rir de quê? Onde está a graça?”. Fez-se um silêncio sepulcral. Para acalmar os ânimos, pedi a outro professor-estudante que fizesse a leitura e aquela aula, acabou no meio de sorrisos e cochichos. À noite, o delegado do curso levou-me ao hotel onde tinha ficado hospedado, em Benguela, e convidei-o para jantar comigo. Foi quando lhe questionei sobre a razão para aquela gargalhada geral na sala de aula. Primeiro sorriu. Eu insisti e ele respondeu-me: "Ele não sabe ler”. Fiquei perplexo e de seguida fiz-lhe uma segunda pergunta, indagando-me como tal seria possível, como teria ele sido seleccionado para estar num curso de mestrado. Disse-me apenas: "Você, sabe…”. Fiquei indignado e desisti imediatamente de dar aulas naquele curso. Mais tarde, numa reunião de direcção do MED, no ponto de informações contei o que havia ocorrido comigo. Houve de facto perplexidade de todos, mas retenho, até hoje, a observação de um dos colegas: "Estavas habituado a ver a floresta? Agora viste a árvore”. * Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Interculturais

Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Opinião