Opinião

Os capitães de Abril e os movimentos de libertação

Dentro de pouco tempo serão passados cinquenta anos sobre o 25 de Abril de 1974 e por isso já é tempo dos estados africanos reclamarem o seu quinhão da história na revolução dos cravos.

26/04/2021  Última atualização 05H50
Por complacência de certos historiadores angolanos cuja investigação se circunscreve à torre do Tombo, logo aos arquivos da Pide ou por influência de investigadores portugueses que contam uma versão sem africanos, a história do 25 de Abril não reconhece suficientemente a importância da pressão da luta armada nos países africanos a tomada de posição dos capitães de Abril.

A narrativa oficial apresenta o 25 de Abril de 1974 como resultado de um desabrochar da Revolução dos Cravos, uma acção crescente de desgaste no interior das Forças Armadas (MFA). A questão central é levar a narrativa oficial portuguesa a assumir sim que tudo resultou de um estado de saturação, mas que tal saturação decorreu não apenas de dos oficiais, mas de um clima de enorme pressão militar, diplomática e politica em todo o mundo.

Quase cinquenta anos depois é mais do justo que se reconheça que na frente diplomática Portugal esteve sempre sob mira das Nações Unidas e outras organizações internacionais e o golpe de Estado de 1974 acaba por ser uma sequência de sanções, resoluções contra o Governo português. O erro da narrativa portuguesa é ver a revolução dos cravos como um acto isolado, quando, na verdade, ele só pode ser devidamente analisado se enquadrado nos acontecimentos que vem desde o início dos anos 60 atê 1974. As primeiras resoluções da ONU contra Portugal aconteceram ainda em 1961. A 20 de Fevereiro de 1961, perante as consequências da revolta de Luanda,a Libéria (apoiada posteriormente por três dezenas de Estados africanos e asiáticos) requereu uma reunião urgente do Conselho de Segurança para adoptar medidas imediatas destinadas a "impedir que os direitos humanos continuem a ser violados em Angola". E daí em diante face ao recrudescer da situação em Angola, o Conselho de Segurança viria a discutir várias vezes a questão de Angola e mais tarde da Guiné-Bissau e Moçambique. Salazar tentou contrapor essa tendência diplomática com a afirmação militar, desencadeando uma grande operação militar não só, mas sobretudo, em Angola. No final da década de 60, as três grandes frentes estão em profundo desgaste. Na frente diplomática aumentava o isoladamente, na frente militar sobretudo em Angola e Guiné-Bissau, o desgaste das tropas, o esforço de guerra era enorme para o regime. Um terceiro palco era a luta pelos direitos humanos. Os presos políticos conseguiam mobilizar a atenção das organizações internacionais como a amnistia, Cruz vermelha e outros e o regime estava sob asfixia. O discurso mundial genericamente defendia os seguintes pontos:

a) Reconhecimento imediato do direito dos povos dos seus territórios não autónomos à autodeterminação e independência;
b) Cessação imediata de todos actos de repressão e retirada das forças,militares e outras;
c) Amnistia política incondicional e liberdade de funcionamento dos partidos políticos;
d) Início de negociações, na base da autodeterminação, com os representantes autorizados, existentes dentro e fora do território, com o fim de transferir os poderes para instituições políticas livremente eleitas e representativas da população;
e) Rápida concessão de independência a todos os territórios, de acordo com as aspirações da população;

— Os Estados membros dirigiam um duplo convite, no sentido de pressionarem o Governo português e de não lhe concederem qualquer assistência que favorecesse a repressão;
— A Comissão de Descolonização pedia a máxima prioridade ao problema dos territórios portugueses;

É o somatório de todo este desgaste que criou o "fermento” para a revolução dos cravos. Ao contrário do que se afirma, não é o 25 de Abril que veio libertar os povos africanos. Sendo verdade que por altura de meados dos anos 70, os movimentos de libertação angolanos viviam profundas crises de identidade e militares, as sementes são anteriores e incluem com grande peso a derrota militar sofrida na Guiné-Bissau.

Ou seja, reconhecendo-se o mérito dos capitães de Abril, há também necessidade de enfatizar e dar o devido enquadramento histórico ao grande esforço politico diplomático e militar desenvolvido pelos movimentos de libertação e que foi a grande semente da insatisfação e apoio popular ao fim do regime.
Mesmo que os movimentos africanos vivessem crises e a luta armada conhecesse pontualmente um certo enfraquecimento, os militares, as famílias e a sociedade portuguesa estava sob grande pressão e com a navalha na garganta.

Não foi uma revolução vinda do nada ou de uma das reuniões em Abrantes. E não se aprofunda essa análise exactamente para que não se reconheça que foi o trabalho dos movimentos de libertação que "apodreceu” os alicerces do regime e permitiu o golpe.

E assim, como usualmente se reconhece, a insatisfação também atingia toda a sociedade portuguesa. "Na fase final, havia enorme saturação da guerra, transformando-se em problema social. Filhos dos portugueses tinham de ir lutar. Quase metade do orçamento do país era esforço para a guerra”, explica o embaixador Francisco Ribeiro Telles numa entrevista à Lusa. Entre 1961 e 1974, cerca 117 mil militares combateram anualmente em Angola, na Guiné-Bissau e em Moçambique, com um total de 8.831 mortos e 100 mil feridos.

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