Opinião

Paris não leva acento (para um concurso de pregões)

O governo da capital não tem mãos a medir para o esforço principal de gerir as questões candentes da urbe: a saúde, a educação, a água, a luz, o saneamento.

23/02/2021  Última atualização 07H47
Quanto à publicidade que se exibe nos espaços públicos, compreende-se que não sobrem recursos humanos e financeiros para controlar ou prevenir tantos atentados contra a língua oficial, e até mesmo contra o pudor, a decência ou a cidadania. Seria preciso montar um gabinete com gente suficiente e um bom assessor conhecedor da língua oficial, para se educar a população, principalmente as crianças que vão à escola e lêem tanto vexame linguístico em plena rua.

Por exemplo, o nome de um restaurante que leva a palavra Paris com acento no "i”. Um dia destes fui lá comer um pastel de bacalhau e, no meio da degustação, falei com a gerente a explicar quem eu era e que ficava mal exibir o nome do restaurante com a linda cidade de Paris acentuada em Angola. O que diria um cliente francês?

A maior parte das palavras na língua portuguesa são foneticamente graves. Angola, Luanda, mesa, garfo, etc. Têm o acento tónico na penúltima sílaba. Quer dizer que, se quisermos marcar o acento agudo na última sílaba (palavras agudas), teremos, em princípio, de o marcar com um acento agudo. Por exemplo, Badó, Madó, Jejé, Fafá, etc. Acontece, porém, que nem todas as palavras agudas podem ser acentuadas. A gramática ensina que as palavras agudas terminadas em "u” e em "i” não levam acento. Assim, surucucu, Zedu, peru, Dudu, bubu, menu, canguru, tribufu, kumbu, Fubu, Sapu, Gugu, caju. Isso mesmo, o agridoce fruto do cajueiro. Por isso é que a Sonangol devia ir ao seu condomínio no Talatona tirar o acento na palavra Caju, logo à entrada do mesmo. E palavras terminadas em "i”, como Fifi, xixi, etc.

Apenas levam acento agudo quando as vogais "u” e "i” são antecedidas de uma vogal com que não formam ditongo e desde que não constituam sílaba com a eventual consoante seguinte: baú, por exemplo. No entanto, quando estamos perante um ditongo terminado em "l”, já não colocamos o acento, como nos casos de Raul e Saul.

A projecção das línguas bantu dentro da língua portuguesa redunda numa questão controversa. É o caso do monte Súmi. Esta é uma palavra grave, com acento tónico na primeira sílaba "Su”. Porém, como a regra diz que as palavras terminadas em "i” são automaticamente acentuadas na última sílaba, devemos colocar o acento agudo no "u” da primeira sílaba: Súmi. Caso contrário, ler-se-ia "Sumí”, como se lê a primeira pessoa do pretérito perfeito do indicativo do verbo "sumir”. A discussão, então, é a seguinte: como as palavras nas línguas bantu não são acentuadas graficamente, quando elas passam, como neologismos, para a língua portuguesa, submetem-se ou não às regras do português?

Discussões à parte, gostaria de realçar que, em Luanda, tal como em outras partes do mundo, existem dois tipos de publicidade: gráfica e oral. A oral é até reforçada com o recurso a um megafone a pilhas. É bonito ouvir uma zungueira passar na rua de boca fechada, mas a sua voz soltando-se de um aparelho: "Está passá feijão, feijão frade, feijão manteiga, feijão espera cunhado, está passá feijão!”
Mas o que mais nos enche a alma é aquela voz bem amaciada pelo anseio de chegar aos corações dos clientes, uma voz indescritível, retirada das veias mais finas da laringe e tracejada por uma nasalação digna de um professor de canto coral: "é lambula, é lambula, é cachucho fresquinho, é!”

Este pregão marcou a alma do cronista. E não podia deixá-lo perdido no ar daquela rua onde o escutei e tremi. Por isso, venho sugerir ao Ministério da Cultura ou a outra instituição pública, entidade privada, ou mesmo um mecenas benfeitor e amigo da Cultura que promova o Prémio do Pregão da Quitandeira Luandense, só mesmo para dignificar essas mulheres que andam de sol a sol com a banheira de peixe na cabeça a vender-nos a boa lambula, a gostosa makôa, o peixe espada, etc.

Mas, voltando à vaca fria, o nome Paris não leva acento. Esta mania que tenho de registar toda a publicidade que grassa pela cidade fora fez-me lembrar uma frase de Adolfo Hitler, quando, no Verão de 1944, na iminência da derrota, mandou dinamitar os grandes monumentos da capital francesa, incluindo a catedral de Notre Dame, antes da conquista dos Aliados. E perguntou por telefone ao seu exército na França: "Paris já está a arder?” Só que o general Von Choltitz não acatou a ordem. E fez bem.
Portanto, se nem o maior exército do mundo na era hitleriana o conseguiu, não seremos nós, angolanos, que nos vamos dar ao luxo de incendiar graficamente o nome da cidade mais emblemática da Europa.

José Luís Mendonça

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