Entrevista

Patologia pouco conhecida em Angola causa “estragos” graves à saúde

António Pimenta

Jornalista

Com um mestrado em Biologia Molecular e outras qualificações, Gilberta Patrocínio é, seguramente, uma das poucas angolanas com registo de trabalhos científicos no Google. A história sobre hidrocefalia que marcou a sua infância, com mística à mistura, terá jogado um papel determinante na escolha desta especialidade que, apesar dos perigos que representam para a saúde, é pouco conhecida em Angola. Estamos a falar da Toxoplasmose Humana, uma patologia que pode causar doenças devastadoras como as infecções pré-natais e outras doenças

01/04/2021  Última atualização 09H15
© Fotografia por: Agostinho Narciso |Edições Novembro
Porquê que se especializou em Biologia Molecular?
O misticismo que circulou, em tempos idos, sobre as pessoas com volume cefálico aumentado (cabeça grande), fez nascer em mim uma vontade doentia, passe o termo, de aprofundar os meus conhecimentos sobre a hidrocefalia. Deixava-me muito curiosa o adjectivo "sereia” que era atribuído às pessoas com este tipo de problemas. Além da história do gato que era citado como um dos principais causadores… Os estudos ajudaram-me a conhecer melhor este tipo de problema que, apesar de existir em Angola, pouco ou nada se fala a respeito.


Tem vários artigos de investigação publicados no Google. Qual é a abordagem que desenvolve nos seus trabalhos?
Os trabalhos publicados estão essencialmente relacionados com investigações sobre parasitologia, imunologia, serologia e infecciologia.


Na verdade o que é a Toxoplasmose humana?

A toxoplasmose é um protozoário oportunista, que vive e se reproduz dentro das células humanas. É considerada oportunista, porque se aproveita das debilidades do organismo para se infiltrar nas células, causando muitas vezes a morte de pessoas infectadas. As grávidas e pessoas imunes deprimidas são os seus principais alvos. A sua infecção é provocado por um protozoário intracelular, micróbio que vive e se reproduz dentro das células humanas, ao passo  que o T.gondii é um parasita do grupo dos protozoários oportunistas, microrganismo que se aproveitam das debilidades do organismo para causar os seus danos. O toxoplasma é o principal agente causador da toxoplasmose, mas, por si só, não causa a infecção. Para que haja infecção precisa de se alojar em outros organismos hospedeiros, aqui definidos como intermediário e o definitivo. A encefalite toxoplasmica pode afectar, com grande facilidade, pessoas seropositivas (Sida) e tem como principal alvo o sistema nervoso central.


Como é que ocorre a transmissão do Toxoplasmose de animais para o homem e que riscos representam à saúde?
Os hospedeiros intermediários são animais domésticos, aves, répteis, incluindo o homem. O gato doméstico (fellis catus) é considerado o hospedeiro definitivo. Nas mulheres infectadas com este microrganismo, a Toxoplasmose pode causar abortos espontâneos, malformação congénita, cegueira, surdez congénita, atraso mental e hidrocefalia. Podem estar propensas a contrair a doença, as pessoas que fazem a criação de animais no domicílio, o contacto com animais fora de casa e com excrementos de gato, roedores, galinhas, o consumo de lacticínios pasteurizados, carne e ovo cru ou mal cozida, vegetais e frutos mal lavados. A transmissão ocorre de três formas principais, a saber; ingestão de alimentos e águas contaminadas, com significado, parasitas que têm a sua origem nas fezes de gato contaminado, carnes cruas ou mal cozidas, entre outras.


Como é que são conhecidas este tipo de infecções?

 Estas infecções são conhecidas pelas altas taxas de seroprevalência em mulheres grávidas, nas regiões tropicais e subtropicais. Apesar da sua ampla distribuição, em Angola não existem estudos de seroprevalência da Toxoplasmose, nem tão pouco, em relação aos factores de risco.


Oficialmente, em Angola, não há registos de casos de Toxoplasmose?
Até os dias que correm, em Angola, houve apenas o registo de dois estudos, realizados para determinar o grau de infecções e os números de infectados. Um estudo foi realizado, em 1976, e culminou com o registo de 10 casos positivos, mas sem a descrição dos factores de risco. O meu estudo, efectuado, em 2014, para determinar a prevalência de anticorpos anti-T.gondii em grávidas, em consultas externas de obstetrícia na Maternidade Lucrécia Paim, em Luanda, conclui que em 300 mulheres grávidas, 27,3% revelaram a presença de anticorpos anti-T.gondii, 25,3% com infecção crónica e 2% com infecção aguda. Apesar de 72,7% das mulheres que investiguei apresentarem-se seronegativas, elas estão potencialmente vulneráveis a contrair esta infecção.


 Em caso de infecção, quais são os sintomas que a doença apresenta?

Os sintomas são as gripes, calafrios, febre alta, convulsões, linfonodos (inguas no pescoço), dores musculares,   entre outros. O tratamento exige muita higiene pessoal e a eliminação de focos de lixo; Tratar adequadamente a água, antes de a consumir e utilizar luvas sempre que estiver a tratar do jardim.


Existe algum fármaco para o tratamento da doença?
A doença pode ser tratada com alguns antibióticos, como a Espiramicina, pirimetamina, sulfadiazina, clindamicina, adicionando ao ácido fólico.


Já é conhecida alguma forma de prevenção?

Os resultados dos estudos demonstraram, o quão relevante pode ser a divulgação, como forma de prevenção desta infecção em mulheres grávidas. Considero necessário a sensibilização da sociedade para fazer despertar a necessidade de estratégias de prevenção e controlo destas doenças, reduzir a prevalência das infecções e eliminar a sua possível transmissão vertical em Angola.


Além das pesquisas que realiza na área da Biologia Molecular, o que mais faz na sua vida profissional?
Trabalho apenas na área da docência, em algumas instituições privadas, mas, actualmente estou praticamente paralisada. Apesar do esforço que desenvolvo não consigo um emprego a nível das instituições do Estado.


E o que é que falta?
Existem muitos entraves...Está difícil! Pensei que com o surgimento da pandemia da Covid-19 e dado a formação que tenho, os mercados de emprego fossem estar mais acessíveis a pessoas com a minha formação. Mas, as coisas aconteceram exactamente ao contrário. Fiquei em casa, de Março a Outubro de 2020, sem qualquer ocupação. Após o meu regresso, nunca tive oportunidade de trabalhar na área em que me formei. Saíram goradas todas as tentativas que fiz para conseguir emprego na minha área de formação, incluindo no Ministério da Saúde. A carta que enderecei à esta instituição a solicitar o meu reingresso, continua sem resposta até a presente data. Antes de partir para Portugal, por razões de saúde, trabalhei durante sete anos no Hospital Américo Boavida.


Que resultados saíram dos estudos comparativos realizados entre Angola e Portugal sobre a prevalência do T. Gondii?

Se do lado de Angola, os estudos realizados provaram não haver um estudo disponível para avaliar a actual situação epidemiológica, tornando praticamente difícil a planificação de políticas ou estratégias de saúde para combater ou prevenir a Tgondii,  em Portugal as coisa parecem, também, não irem lá na sua perfeição. Estão muito limitadas as informações actualizadas sobre a prevalência da infecção por T. Gondii, em mulheres grávidas. Do nosso lado, os estudos apresentaram uma relevante preocupação com o número elevado de crianças nascidas com hidrocefalia, uma infecção pré-natal, considerada a segunda patologia mais prevalecente no país. A hidrocefalia é considerada um dos principais sintomas pré-natais do toxoplasma e a infecção durante a gravidez, pode causar várias manifestações clínicas graves ao bebé, no seu estado de gestação.


É possível identificar estas infecções logo à nascença?
Nem sempre. Embora possam parecer saudáveis à nascença, as crianças com infecção pré-natal podem-se desenvolver, aparentemente bem e, mais tarde, virem a apresentar deficiências graves, sobretudo visual e auditiva. Daí a necessidade de se realizar os testes às mães, antes e depois do parto. 


Quais são as medidas preventivas?
O essencial nisso seria monitorar a seroprevalência de T.gondii em mulheres grávidas, não apenas como medida profilática, mas, também, para a promoção de diagnósticos precoces de infecção aguda e administração do tratamento apropriado para minimizar as lesões ao feto.


Pode falar um pouco mais sobre os estudos comparativos que realizou com Portugal e os métodos utilizados?

De Abril de 2010 a Janeiro de 2011, 300 mulheres que efectuavam consultas de rotina na Maternidade Lucrécia Paim e 163 mulheres no hospital Garcia Orta, em Lisboa, todas em estado de gestação, foram contactadas para participarem neste estudo, realizado com aprovação do Ministério da Saúde de Angola e a Comissão de Ética do Hospital Garcia Orta. Os estudos incidiram na análise sobre a infecção do T. Gondii em mulheres grávidas, identificar os factores de risco para a seroprevalência. Em Angola, onde 93, 23 por cento das pessoas letradas desconhecem a doença e os potenciais factores de risco associado à transmissão da infecção, esperavam-se resultados muito superiores dos que encontramos. A ausência de saneamento à altura das necessidades, era visto como um grande factor de transmissão e contaminação do T. Gondii. Para surpresa de todos, os resultados provaram o contrário. Os vínculos culturais e históricos que temos, com destaque para a área da gastronomia, terão, na opinião de muitos, contribuído para a obtenção destes resultados.


Qual foi a prevalência de casos?
Na sua maioria, cerca de 57.3% das gestantes avaliadas, a seropositividade recaiu para o grupo de mulheres que afirmaram não consumir leite e lacticínios não pasteurizados. E isso nos permitiu aferir que nem sempre o que consumimos consegue proteger-nos, por várias razões. As mulheres grávidas são forçadas muitas vezes a comprar nas ruas, sem o mínimo de higiene e os cuidados que se impõem, ao leite pasteurizado, sorvete, iogurte. Como consequência, na hora do consumo, por exemplo, elas pensam que estão a consumir leite pasteurizado, quando na realidade a água utilizada para a preparação do leite não tinha a qualidade que deveria ter. O desconhecimento da origem e autenticidade dos bens que consomem, como a água potável e o leite pasteurizado, bem como o manuseio inadequado destes produtos nos locais onde são comercializados, particularmente nas ruas de Luanda, expõem às mulheres grávidas a uma interpretação errada do conceito de produtos pasteurizados, acabando, muitas vezes, por consumir gato por lebre. Ao longo dos nossos estudos, não foi possível observar uma associação de facto entre a contaminação da T. gondii e alguns factores considerados como de potencial risco, como o saneamento básico, contacto com gatos, consumo de carne crua ou mal passada. Resultados que, em alguns casos, podem ter sido influenciados pela má interpretação das mulheres às perguntas que lhes foram apresentadas.


No nosso caso, considera esses resultados preocupantes?
Apesar de considerar significativos os resultados alcançados para alertar as autoridades angolanas, sobre a importância de fazer alguma coisa para, no mínimo, tentar prevenir esta infecção, novos estudos podem ser necessários para determinar de facto a importância destas variantes como um factor de risco na epidemiologia do T. Gonii. Apesar de grande dos resultados negativos que grande parte das mulheres registaram, os estudos deixaram evidenciar que é muito alto  o risco de elas contraírem o vírus durante a gravidez.


Como é que isto pode ser evitado?
Considero ser necessário a criação de mecanismos que propiciem a vigilância serológica do T.gondii nas mulheres, com a utilização de técnicas padronizadas, focadas particularmente em mulheres em idade fértil e grávidas, preferencialmente no início da gravidez, com acções fortemente viradas para a monitorização e prevenção. A educação sanitária sobre Toxoplasmose e os seus factores de risco, é necessária para chamar à atenção sobre os perigos desta doença e minimizar os seus efeitos na população, particularmente as mulheres grávidas.
Superação
Gilberta Patrocínio tem uma história de superação para contar. Saiu de Angola com o curso médio de Saúde Pública, nas especialidades de Técnica de Laboratório de Análise Clínica e foi para Portugal, em tratamento médico, sob os auspícios da Junta Nacional de Saúde. Lá, depois de alguns anos a trabalhar como empregada doméstica, juntou tostões e investiu na viagem do marido e de três filhos. Com o dinheiro da mercadoria que enviava para Luanda, foi amealhando dinheiro, o que lhe permitiu concretizar outros sonhos. Matriculou-se na Universidade Nova de Lisboa e licenciou-se em Psicologia. Mais tarde, fez o mestrado em Biologia Molecular.

 Ao longo dos 14 anos de vivência em terras lusas, o investimento nos estudos não foi só para ela, os filhos também ganharam formações. A primogénita, por exemplo, fez licenciatura e mestrado em Recursos Humanos, Hoje trabalha numa das empresas do Ministério da Energia e Águas, em Luanda.


Perfil
Gilberta Maria Inácio Patrocínio

49 anos de idade, angolana, natural
de Luanda

Licenciada
em Psicologia Geral e mestre em Ciências Biomédicas, na especialidade de Biologia Molecular, em Medicina Tropical e Internacional, pela Universidade Aberta de Lisboa. Fez o curso médio de Laboratório de Análises Clínicas

Dezembro de 2014
depois de uma longa estadia em Portugal, regressou ao país.

Um ano depois
foi chamada para leccionar na Universidade Metodista de Angola, na condição de colaboradora.

Em 2016
foi enquadrada como professora efectiva da citada instituição de ensino e, logo a seguir, foi nomeada directora do Curso de Análise Clínica, Saúde Pública e Desporto

 Trabalhou
como colaboradora no Instituto Superior Técnico Militar e na Escola Superior de Ciências e Desporto. Recentemente, foi exonerada sem aviso prévio e dispensada dos serviços da Universidade Metodista.

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