Regiões

Perspectivas e sonhos de jovens do Quiculungo

Manuela Gomes

Jornalista

Por entre pontes e rios. Há um caminho perigoso que vira à esquerda na Estrada Nacional 140, entre Lucala e Camabatela, província do Cuanza-Norte, tão enlameado pelas chuvas que as viaturas parecem deslizar sem intervenção humana.

29/04/2021  Última atualização 06H00
© Fotografia por: Cedida
As montanhas abrem-se de repente. Numa cota (bem) mais baixa está a sede do município de Quiculungo. Um grupo de jovens do bairro Kimbamba mostra-se interessado em debater o futuro.Ivo Quizomba, 19 anos, aproxima-se de calções amarelos, smartphone na mão e auscultadores brancos pendurados numa das orelhas. É estudante da 10ª classe na Escola Missionária São Pedro Nolasco, em Quiculungo, de onde é natural.

"Para além da escola, também faço alguns biscates, sobretudo quando é preciso capinar, preparar a terra ou semear”, conta Ivo. São trabalhos relacionados com a agricultura familiar, a que mais se pratica na região.  Não há explorações agrícolas de grande dimensão em Quiculungo, ao contrário do que acontecia no tempo colonial, em tempos de café e palmar e outros mundos. 

Uma ou outra fazenda mais avançada pode ser vista nos caminhos que cirandam a sede municipal. Apenas casos pontuais. Antes da dipanda chegou a existir uma fábrica de óleo de palma em Quiculungo, investimento que é nada mais do que uma miragem no actual contexto. Ressente-se, por isso, a economia rural, que se assemelha a um balão sem ar e sem asas. Chega a ser contraditório entre aquilo que se vê e imagina e aquilo que acontece realmente. A região de Quiculungo, e todas aquelas montanhas verdes e de terra castanha-escura, está na zona de influência do planalto de Camabatela: talvez seja a zona mais fértil do país e com melhores condições naturais para a agricultura e pecuária. 

Chove que chove - qual estiagem mais -, os cursos de água rasgam as estradas e as picadas e os olhos de quem observa, a ligação Luanda-Ndalatando-Lucala-Camabatela (um percurso que ronda os 400 quilómetros) está transitável por qualquer viatura, ainda que muito longe da perfeição. Mesmo assim, parece que a vida desapareceu com a queda estrondosa e, de certa forma, inevitável, da economia colonial. São raras as lavras que assaltam a paisagem. Não se vislumbram empresas ou novos investimentos. Salva-se a economia pública (educação, serviços) e o comércio de cantina, que serve apenas as necessidades básicas.

A Estrada Nacional 140 é um bom exemplo porque regista um tráfego automóvel quase irrelevante - passam-se minutos e minutos sem cruzar com outras viaturas -, sinal da falta de actividade, de negócios, de pessoas, de movimentos pendulares. Também não encontramos transportes públicos, o que significa que a população, mesmo que inserida numa região de forte potencial e relativamente próxima da maior cidade do país, desloca-se a pé, pendurada em carrinhas inseguras e as crianças caminham para a escola debaixo de nuvens escuras e frias, sol ardente e chuva pesada, consoante a hora do dia.

Entre Quiculungo e Lucala, cerca de 100 quilómetros, o táxi custa 5 mil kwanzas. Antes da pandemia era 3 mil. Quase não há hotéis e hospedarias.Nada disto é estranho para Ivo Quizomba, que no Facebook destila amores perdidos e sonhados, partilha músicas e letras e algumas mensagens de teor político-partidário: trivialidades próprias de um cidadão de 19 anos, com sonhos, vontades, gostos pessoais. Ao seu lado, juntam-se depois outros jovens da mesma idade e alguns um pouco mais velhos.
"Nós é que conhecemos a realidade”

"A nossa opinião não foi ouvida”, alega Destino Paixão Zua, 24 anos, estudante do curso de formação de professores. É natural de Luanda mas a família é originária de Quiculungo. "Vim aqui para estudar, em Luanda tudo é difícil e mais caro e mais inseguro”, justifica.Quando lamenta a falta de participação dos jovens refere-se ao Kwenda, um programa do Governo destinado a apoiar as famílias mais desfavorecidas. 

Os primeiros pagamentos trimestrais de 25 mil e 500 kwanzas, que se estenderão durante um ano, já começaram a ser entregues às famílias de Quiculungo, onde foram registados mais de 2000 agregados familiares muito vulneráveis. A comunidade olha para o programa com alguma desconfiança.Destino Zua veste-se de forma casual, similar a Ivo Quizomba. Mas com calças, em vez de calções e um chapéu moderno. Numa zona onde reina o kimbundo, que todos dominam como língua-materna, Destino canta num português sem mácula. Nota-se também um balanço típico do meio urbano, na forma como se expressa, como movimenta o corpo. Sente-se uma auto-confiança diferente, realidade que lhe permite transbordar o que lhe vai na mente.   

"Por vezes sentimos que nos querem esconder a realidade. Mas nós estamos a crescer e também já sabemos reflectir”, assegura Destino Zua ao Jornal de Angola.Afinal, são eles que melhor conhecem o bairro onde vivem, as suas belezas e dificuldades próprias.No Kimbamba não há posto médico, nem campo de jogos "clássico” (apenas informal) e falta energia eléctrica, apesar da sede municipal ser abastecida pela rede nacional.

As linhas de transmissão atravessam o bairro sem interligação às casas de adobe - material tradicional de enormes capacidades térmicas, que merece ser reinventado no grande imaginário rural e até urbano. "As pessoas dizem que vão comprar um fogão ou um novo fogareiro de melhor qualidade, uma botija de gás, um colchão, cadernos para as crianças ou trocar a cobertura de colmo por chapa”, conta Catarina Sembe, 19 anos, que é Agente de Desenvolvimento Comunitário (ADECO) num dos bairros do município de Quiculungo.

Catarina Sembe foi recrutada pelo Kwenda para actuar no terreno. São estes agentes locais, os ADECO, que conhecem as famílias, que acompanham os beneficiários durante o cadastramento, são eles e elas que servem de ponto-focal entre os beneficiários e a gestão técnica do programa, da responsabilidade do Fundo de Apoio Social (FAS)."Nas cidades, há uma tendência para considerar que 25 mil e 500 kwanzas é um valor irrisório. Mas para estas famílias significa muito”, defende Catarina Sembe.

Registo de famílias vulneráveis 

Nem sempre as músicas oficiais tocam fundo no coração dos mais jovens. "Na nossa opinião, o registo das famílias mais desfavorecidas do bairro não correu bem. Há quem precise de apoio mas ainda não foi incluído. Também pensamos que os pagamentos deveriam ser efectuados rapidamente. Assim quando nos falam de uma segunda fase ou de um segundo dia de pagamentos, nós desconfiamos. Será que vão voltar mesmo?", questiona Destino Zua, secundado por Jorge Sama Miguel, 23 anos.Gomes Golambole, coordenador do FAS em Malanje (com responsabilidades regionais que incluem também o Cuanza Norte), explica que em Quiculungo "os agregados familiares mais vulneráveis foram todos registados, deve ser dos locais onde o processo decorreu melhor". 

"O que acontece, por vezes, é que algumas pessoas ficam com ideias erradas sobre o programa. Por exemplo, o registo centra-se no agregado familiar. Podem viver três famílias na mesma casa mas o registo apenas vai assinalar um agregado", lembra o responsável do FAS.Gomes Golambole assegura também que podem sempre acontecer algumas "tentativas de furar as regras", uma situação que deve ser acautelada pela gestão do programa. "Mesmo assim, posso dizer que estamos muito atentos às sugestões e reclamações. É a nossa obrigação", garante.

Domingos Quizomba, avô de Ivo e soba do bairro Kimbamba, acompanha à distância a equipa do FAS que efectua a primeira grande ronda de pagamentos do Kwenda. Também aproveita a ocasião para trocar contactos para vender o café que ainda produz nos seus terrenos."No outro tempo, recebíamos as sementes do comerciante português e só pagávamos no final da colheita", recorda, "depois comprávamos o bom peixe e tudo o que precisávamos". 

Esta descrição sem grande pormenor foge à exploração, ao racismo, às hierarquias de poder e aos preconceitos oficiais típicos do colonialismo."As pessoas já estavam habituadas a isso, era assim mesmo que funcionavam as coisas", diz. "Quando veio o Agostinho Neto ficamos muito contentes, foi uma grande festa. Mas depois a guerra complicou tudo", recorda o mais-velho. Resignado mas nunca distraído. Tal e qual os jovens de Quiculungo.

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