Opinião

Que amor é esse …

Caetano Júnior

Jornalista

A degradação dos valores morais é uma realidade um pouco por todo o mundo.

11/04/2021  Última atualização 06H35
Entre nós, a falta de educação, de um modo geral, o desrespeito a pessoas e instituições, a banalização do conceito de família, a trivialização da amizade e do companheirismo, a favor do interesse material, enfim, a institucionalização do reles ou a aceitação do indecoroso já quase não despertam a nossa sensibilidade. Do mais simples gesto de indisciplina à mais grave atitude imoral, coabitamos todos os dias com as marcas da decadência do bem e do bom; testemunhamos, no quotidiano, actos que correm na contramão do comportamento que devia balizar a vida em sociedade; que devia orientar a existência entre os Homens.

Sequer vale a pena trazer à conversa exemplos de transgressões diárias, como a do automobilista, que desrespeita o sinal vermelho e ignora o peão na passadeira, ou do transeunte, que passa debaixo da pedonal, colocando em perigo a própria vida e a de outrem. Convém, igualmente, deixar de lado o cidadão que corre o fecho ou abre os botões das calças, para urinar na rua, a descoberto, sem pudor, à vista de quem o quiser ver. Ignoremos também a senhora - não necessariamente zungueira -, agachada num qualquer canto, a aliviar a bexiga do aperto decorrente da necessidade biológica. De nada adianta lembrar o constrangimento que causa o funcionário da loja de conveniência, quando pede ao cliente que lhe ofereça algo. São todas ocorrências tão corriqueiras, normalíssimas, às quais damos, infelizmente, pouca ou nenhuma atenção.

Em entrevista recente ao Jornal de Angola, a comandante de uma das unidades da Polícia no Kilamba revelou-nos uma atrocidade moral: casais desavindos, em processo de separação, dividem o mesmo apartamento, permitindo, entretanto, que o agora ex-parceiro leve a nova companheira à casa que partilham. Portanto, qualquer deles, ele ou ela, tem permissão para o fazer. Uma concessão que corre, inclusive, numa situação em que o casal tem filhos. É assim mesmo, como foi detalhado por uma autoridade, uma senhora que conhece os contornos destas "ocorrências”, às quais chamar aberrações seria atenuar-lhes a gravidade.

A denúncia da comandante é mais uma prova - e das mais concludentes - da decadência moral da sociedade que estamos a edificar; uma evidência da perda de valores; um exemplo de falta de vergonha, o derradeiro bastião que nos deve impedir actos, gestos e atitudes repugnantes. Quando nem o pudor é capaz de nos travar práticas indecentes, é o caos que emerge, sob as mais diferentes formas. Que exemplo colhe uma criança que vê o pai ou a mãe a entrar em casa - espaço que sempre partilhou com os progenitores - com outra pessoa? Que pensamentos estarão a importunar-lhe? Continuará, este apartamento, a ser um lar, um espaço confortável? Não se sentirá melhor na rua? Um dia, ele/ela vê o pai entrar com outra senhora; a seguir, assiste o contrário, a mãe a chegar com o companheiro. Serão estes pais normais? Não estarão, também eles, a precisar de apoio psicológico? Ou será psiquiátrico? Afinal, podem os dois partilhar a casa, com base em regras de conduta a obedecer. Pelo menos em respeito aos filhos. Ou é assim tão profundo o ódio que agora nutrem um pelo outro, ao ponto de até os levar à troca de ofensas e a maltratar crianças?

Por outro lado, que homem se submete à vergonha, à condição humilhante, de entrar numa casa onde ainda habita o ex-marido da namorada? Ou que mulher se sujeita à tão baixa situação? Que se socorram ao menos do amor-próprio, que apelem à réstia de dignidade que ainda lhes sobra, para que resistam à tão pronunciada queda na hierarquia dos princípios. Que educação os quatro pretendem para os filhos; que exemplos lhes querem legar? Vivemos hoje um contexto particularmente difícil, no qual a orientação que queremos para os nossos dependentes encontra interferências e influências no percurso. Nestes tempos, pais pouco conversam com os filhos; quase não resta espaço para lhes dedicar a devida atenção e encaminhá-los convenientemente.

Transpomos uma era de provações: casas transformaram-se em meros dormitórios e domínios de empregados domésticos. A vida dos nossos filhos gravita por entre creches e instituições de ensino. Os ensinamentos, conselhos e o aprendizado que lhes queremos passar encontram resistência logo à porta, à saída de casa, nos grupos de amigos, nas Redes Sociais e na própria escola. Vemo-los pouco; às vezes, deixamo-los e os encontramos a dormir. Quase não temos o chamado "tempo de qualidade”, porque, pressurosos, estamos sempre distantes, confiando o percurso moral e a orientação de que precisam ao acaso ou a terceiros. Há quanto tempo não nos sentamos à mesma mesa, ao almoço ou ao jantar? 

Portanto, é irremediável, quando, aos males gerais que nos dificultam a educação dos filhos, adicionamos atitudes de baixo jaez. À falta de alternativa, um casal já no fim da relação pode, perfeitamente, partilhar o espaço, desde que sob determinadas regras e condições, de preferência por um período bem definido. A vida privada de cada pode ser levada fora de casa, longe do conhecimento e do olhar do ex-parceiro. Portanto, um não precisa de provar ao outro que há quem o queira.

Ao fim de uma relação, deve haver uma espécie de "período de carência”, durante o qual se observa a negação dos prazeres do amor. É um recolhimento autoimposto, um momento de resguardo voluntário; de inventariação, de avaliação do passado e projecção do futuro, de forma ponderada. Há tempo para a retoma, sem necessidade de urgências. Haverá sempre alguém à espera, ali, para onde o olhar é atraído.

De outra forma, como denuncia a comandante do Kilamba, não apenas é condenável; é também anti-higiénico. Pelo menos do ponto de vista moral. Que amor é esse, que leva à perda do raciocínio, do equilíbrio, da razoabilidade, da vergonha, da dignidade e do respeito?

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