Entrevista

Responsabilidade penal das pessoas colectivas é um avanço

António Pimenta

Jornalista

A juíza jubilada do Tribunal Constitucional, Luzia Sebastião, afirma que um dos avanços no novo Código Penal foi a inclusão da responsabilidade penal das pessoas colectivas, no caso concreto, as empresas. Entrevistada pelo Jornal de Angola, afirma que pode haver muitas pessoas individualmente a praticar actos lesivos ao ambiente, mas, essencialmente, são as empresas que mais praticam tais actos.

24/05/2021  Última atualização 09H14
© Fotografia por: Contreiras Pipa | Edições Novembro
O livro "Legalidade penal, costume, pluralismo jurídico, a experiência angolana”, que lançou recentemente, aborda um assunto que, mais do que oportuno, é sugestivo. O que pretende com essa obra?
Pretendi, com este título, fazer um confronto entre o princípio da legalidade como base estruturante do Direito Penal, aquele que diz que não pode haver crime se não houver uma lei anterior a dizer que determinada conduta é crime, e não pode haver uma pena se não houver antes uma lei que defina que àquela conduta se aplica aquela pena. É aquilo que se diz em latim "Nullum crimen nulla poena sine lege”, e o costume. Escrever só sobre o princípio da legalidade e a sua vigência em Angola. Um trabalho que, apesar de o fazer, desde 1975, nunca encontrei nenhuma novidade. Para quem vai defender uma tese de doutoramento, a novidade que trouxer com o seu trabalho representa a grande mais-valia da própria tese.
 
Tem alguma razão especial para a insistência nestes temas?
Queria fazer este confronto entre o princípio da legalidade e do costume por duas razões: porque o princípio da legalidade nega o costume como fonte do Direito. Ele diz: sim senhor, tudo bem, mas o costume só pode funcionar como circunstância atenuante da responsabilidade. O texto que presumo ser de 2003 ou 2004, anterior à Constituição de 2010, dizia, também, no artigo 7, que reconhecia o costume, desde que não contrariasse a Constituição e a Lei… Ora, isso para mim não servia porque era o comum. Depois das pesquisas que fui realizando sai, em 2010, a nova Constituição que, ao contrário da proposta de 2003, reconhece, também no artigo 7 º, a validade do costume, desde que não seja contrário à Constituição e à dignidade da pessoa humana. Isto representou, de facto, uma viragem no sistema jurídico angolano, particularmente no Direito Criminal. Dizer que o costume vale, desde que não contrarie a Constituição e a dignidade da pessoa humana, e retirar daí a lei significa que se colocou o costume ao mesmo nível hierárquico da lei. E, ao proceder desta forma, levantou um outro problema em relação a este princípio da legalidade. E porquê? Porque "Nullum crimen nulla poena sine lege” diz, primeiro, que a lei que sanciona um determinado comportamento por ser crime tem de ser anterior e, segundo, uma lei inscrita; terceiro, tem de ser uma lei formal (da Assembleia Nacional). O costume não tem nada disso.
 
O costume não tem nada inscrito. Como é que fica a força do costume?
O costume é aquilo que vai passando oralmente pelas comunidades, as pessoas sabem que isto ou aquilo não se faz, mas não tem nada escrito em lado nenhum. E, depois, não há nenhum Parlamento a dizer: sim senhor, estamos aqui a legitimar o costume.
 
O que propõe, quando aborda a questão do pluralismo jurídico?
No essencial, percebi que, para tratar deste assunto, teria de enveredar para o pluralismo jurídico. Representava uma viragem completa do pensamento. Porque, em princípio, as pessoas falam no Direito Positivo e quando se fala em Direito Positivo significa que se está a falar do Direito do Estado, o que está em vigor, deixando subentender que não existem outros direitos, quando na realidade isso não é bem assim. Na realidade, estou a falar do caso concreto de Angola, nos regemos por dois sistemas. Por um lado, o "familiar”, que é o tal costumeiro, e o sistema do Estado.

Por ausência de qualquer documento escrito e aprovado pela Assembleia Nacional, podemos afirmar que o Direito Costumeiro não existe em Angola?Esta é a ideia que paira, uma total inversão da realidade. Tanto é assim que temos como exemplo o caso mais recente, o da Ombala do Bailundo, que reafirma aquilo o que eu estava a dizer. Os cidadãos angolanos regem-se pelos dois sistemas.
 
Mas o Rei da Ombala foi destituído?
A questão da destituição do Rei da Ombala do Bailundo não tem nada a ver com a que eu estou a tratar. Ali, tem questões relacionadas com política e outros. Falo do Direito de Estado e do Tradicional, os dois existem, estão em vigor e funcionam. Tanto é assim que, quando os cidadãos têm algum problema, sobretudo os que residem nas comunidades, as pessoas recorrem às autoridades tradicionais para resolverem os seus problemas. As pessoas apenas recorrem ao Estado se a solução, no primeiro caso, não as satisfizer. Até mesmo aqui, na cidade de Luanda, as coisas funcionam assim. Do levantamento que se fez, os resultados estão aí. Mesmo aqui em Luanda, por causa desta questão da vigência de vários sistemas de Direito que convivem com o sistema do Estado, confirmam estas teses. No fundo, é isso que sustenta aquela ideia de pluralismo jurídico, embora o conceito mereça, às vezes, várias distorções.
 
Que sistemas jurídicos afirmativamente, existem em Angola?
Regemo-nos por dois sistemas de Direito, o Familiar e o do Estado. Ambos estão em vigor. Tanto é assim que, se observarmos bem à nossa volta, vamos nos dar conta que hoje, cada vez mais, temos cerimónias familiares para tratar de assuntos relacionados com casamentos. O Código da Família não estabelece rituais de "bate à porta” e muitos outros. Mas quando há casamento, por exemplo, tanto o noivo como a noiva, sejam eles de que nível social forem, fazem questão que estes rituais sejam cumpridos.
 
Fale-nos um pouco do direito à terra e do fenómeno sucessório. Como é que isso funciona no nosso país?
Dependendo do grupo étnico ou linguístico a que cada um pertença, as nossas famílias estruturam-se pela linha matrilinear. E aqui vem aquela velha máxima segundo a qual a mãe a gente sempre sabe, o pai talvez. E isso tem sempre algum sentido. Por isso é que os filhos pertencem ao tio, irmão uterino da mãe. Portanto, se houver um irmão uterino da mãe, nada pode ser organizado sem que ele seja chamado. Isso não está escrito na lei do Estado, nos códigos Civil ou da Família. Resulta do Direito Costumeiro inerente às próprias pessoas. Elas aceitam as normas do Estado, aqui não há discussão, mas há aspectos da sua vida que continuam a ser regidos pelo Direito Costumeiro.
 
Como é possível essa convivência pacífica entre os dois direitos?
A convivência dos dois direitos cria conflitos, umas vezes de baixa e outras de alta intensidade, como aconteceu recentemente no Reino do Bailundo.
 
Que interpretação jurídica faz do caso do Rei do Bailundo?
Para mim, há duas questões e, isso aqui, já representa um problema para reflexão. Há 11 anos que o Estado aprovou a norma do artigo 7º sobre o costume e também o reconhecimento das autoridades tradicionais e a sua organização, mas, até agora, nunca definiu como é que esse relacionamento, em princípio, se vai dar. Um trabalho que, apesar da sua importância, nunca foi feito. Estas são as tais falhas que originam os conflitos de grande intensidade.
 
Está de acordo com a decisão judicial?
Para mim, o Rei do Bailundo foi julgado porque há uma pessoa que morre, conforme atestam os meios de comunicação social. Digo meios de comunicação social porque não li o processo e seria necessário fazê-lo para compreender melhor. Mas a questão que se coloca aqui é que, na aplicação do direito tradicional, alguém morreu e a vida é um direito fundamental. Ora, se o Estado, na Constituição, diz que não pode haver pena de morte, o poder tradicional não pode ir além desses limites. Portanto, há ali uma morte derivada da aplicação do direito tradicional. Essa é uma questão que precisa, efectivamente, de ser resolvida ao nível do direito tradicional, para saber que tipos de sanções devem ser aplicadas. A outra questão tem a ver com o seguinte: se existem fóruns especiais para o Presidente da República, ministros, deputados, juízes e muitas outras individualidades, por que não se pensar num fórum especial também para estas autoridades tradicionais? Esta é uma questão de regulação, porque, do meu ponto de vista, os dois sistemas estão em vigor e, por isso, não distingo Direito Positivo do Direito Tradicional e funcionam em tudo que é canto. Existem zonas onde, por várias razões, as estruturas do Estado não chegam, como o caso que o Nacional Geographic retratou recentemente, na região do Okavango, de comunidades que vivem há mais de 40 anos sem a presença do Estado. Será que estas pessoas não têm as suas normas de convivência? Claro que têm. Elas usam as normas do seu grupo étnico e linguístico que regem ali a vida das pessoas.
 
É possível o funcionamento, em sã convivência, dos dois direitos?
Por isso é que eu tive o cuidado de mencionar que só o facto de eles funcionarem cria conflitos, umas vezes de pouca importância, porque o Estado sequer se interessa, porque a informação, muitas vezes, sequer lhes chega. A comunidade resolve. A convivência é possível. Precisamos é de regular e a regulação passa, antes de tudo, pelo conhecimento que temos de ter sobre a nossa realidade em diferentes níveis.
 
Então, considera que o Estado agiu por justa causa?
No caso concreto da Ombala do Bailundo, o Estado tomou conhecimento da morte de uma pessoa em consequência da aplicação de uma lei tradicional. Quando isso acontece, há aqui duas coisas a tratar: primeiro, saber se, na aplicação do castigo, a Ombala seguiu ou não as normas que regem o funcionamento do seu reinado; segundo, saber se, tendo havido uma morte, o Estado deve ou não intervir. O Estado interveio, porque há ali um bem jurídico que se chama vida que foi sacrificado.
 
E a actuação do Estado foi justa?
Sim, porque o Estado tem a função da tutela dos direitos, das liberdades e garantias, e faz isso aplicando o Direito Criminal. O que eu digo no meu livro é que o Direito Criminal não existe só do lado do Estado. No Direito Tradicional também existe. Tanto é assim que ele foi sancionado por ser feiticeiro. Feitiçaria que mata gente. É aí que temos de olhar. Nem sempre o feitiço é para matar. Daí, até à destituição do rei, parece não haver alguma relação. A destituição do rei tem a ver com outras questões que, em nada, têm a ver com aquele processo. A morte foi só a gota de água que fez transbordar o copo. A informação que eu tenho é que aquele rei não era da linhagem. Agora, temos de estabelecer os limites naqueles efeitos que o sistema produz e que podem pôr em causa a Constituição.
 
Falou da necessidade de impor limites?
Somos um Estado de Direito, inserido no concerto das nações. É estando inserido no concerto das nações que temos obrigações, por exemplo, de respeitar os direitos humanos, a dignidade da pessoa humana, etc.. Agora, penso que não é solução chegar às comunidades e ditar o que se deve ou não fazer. Precisamos sentar, equacionar as questões e ver, à luz das teorias do Estado, o que pode ou não figurar.
 
Defende uma codificação dos costumes?
Não diria codificar. Acho que o que nós temos de fazer é, antes de tudo, um levantamento para conhecer as nossas tradições. No meu caso concreto, por exemplo, eu sou kimbundo e conheço mal os meus costumes. Se não conheço o meu próprio, claro que vou ter dificuldades em conhecer o cokwe. Então, a primeira tarefa seria criar equipas interdisciplinares para fazerem esse levantamento que, acredito, deve haver já muito trabalho. Se já estiver escrito, melhor para nós. Mas vamos precisar sentar para sistematizar o que temos. Precisamos de ver onde é que os dois sistemas chocam e criam conflitos de grande intensidade.
 
Além do pluralismo jurídico, a professora fala na sua obra sobre novos modelos de democracia. Pode explicar-nos qual era o alcance das suas palavras?
O pluralismo de que falo é a vigência de vários sistemas de Direito dentro daquilo que consideramos, segundo a nossa definição, um Estado unitário, que não é federado e nem tão pouco dividido por regiões, apesar de existirem nele essa pluralidade de sistemas. Ter vários sistemas de Direito a funcionar dentro de um mesmo espaço territorial. Os sistemas dos ovimbundos, dos bakongos, dos kimbundos, dos nganguelas, dos kwanyamas e muitos outros, todos eles existem e têm cada as suas normas. Entretanto, pensamos que os levantamentos que precisamos realizar não devem ser feitos a pensar nos espaços geográficos. Fazer essa repartição foi o primeiro erro que os colonialistas cometeram. Como resultado dessa separação, uns grupos ficaram numa parte e outros noutra. Em vez de estarmos a dizer que vamos à província da Huíla ou Cunene, vamos olhar para os grupos étnico e linguístico e perguntar por onde é que eles se estendem, porque, se olharmos para o grupo étnico e linguístico umbundo, vamos ver que podemos encontrá-los no Bié, Huambo, Benguela, partes do Cu-anza-Sul, Cuando Cubango e da Huíla. Portanto, não me parece que tenhamos de delimitar territorialmente. Os especialistas na matéria encarregar-se-iam de fazer a respectiva delimitação. Se calhar, vamos precisar de ir até aos Congo, Namíbia e ao Gabão. Portanto, os espaços geográficos onde acharmos que está localizado um determinado grupo.
 
Esteve a pesquisar o pluralismo jurídico que impera noutros países. Quais as principais diferenças que encontrou, comparativamente ao nosso?
Delimitei a minha investigação aos países com o mesmo sistema jurídico que o nosso, portanto, o chamado sistema jurídico romano-germânico, a começar pelos países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), que são os que estão mais próximos de nós. E entre estes, encontrei o direito tradicional vigente na Guiné-Bissau, que já fez o levantamento a que me referi há bocado, Moçambique, que já teve até tribunais tradicionais a funcionar, Timor Leste, Brasil, que tem a situação dos índios. Em nenhum destes encontrei uma norma comparável ao nosso artigo 7º. Entretanto, têm normas na Constituição que reconhecem a existência desta pluralidade jurídica por razões de natureza cultural e outras.
 
É o mesmo em relação à América Latina, a realidade que estudou?
Dos países que investiguei nesta região, com semelhanças ao nosso sistema jurídico, reconhecem o sistema, mas não encontrei uma norma que se equipara ao nosso artigo 7º, ou seja, nestes países o costume não é fonte de Direito e muito menos de Direito Penal. Encontrei esta caracterização, mas, sobretudo, algumas normas de convivência dos sistemas. Na Venezuela, por exemplo, os factos que ocorrem na comunidade, ainda que seja homicídio, são julgados lá, mesmo quando se trata de um cidadão estrangeiro. Mas têm os limites. A comunidade não pode julgar crimes contra a segurança de Estado, contra a humanidade, tráfico de seres humanos e de drogas. Ainda que estes factos ocorram lá, eles têm de entregar ao Estado. Noutras áreas, pode haver o tratamento diferenciado para alguns casos, como exemplo, os que envolvem os índios, só para citar um.
 
Até que ponto vai o tratamento diferenciado que é atribuído aos índios?
Se por algum acaso um índio se deslocar da sua zona residencial para a cidade e, por algum acaso, praticar um determinado facto criminoso é levado a tribunal. A primeira coisa que o tribunal tem de fazer nestes casos é procurar compreender se o indivíduo em causa compreendeu o sistema. Se ele tem noção do que o que ele cometeu é crime. Isso é assim tratado porque, muitas vezes, a pessoa sequer tem noção disso. O exemplo que eu vou mostrar aqui tem que ver com algumas comunidades da América Latina que têm o hábito de mascar cannabis (liamba). Esta é uma prática muito comum entre eles, mas não é a mesma coisa na cidade, onde a posse, uso e consumo deste tipo de estupefacientes é crime. Logo, se o tribunal compreender que ele não tem noção que ter a liamba no bolso constitui crime, devolve-o à comunidade.
 
Quando se fala em costume e poder tradicional, a primeira impressão que fica é que se está a falar de duas coisas diferentes?
Pessoalmente, há muito que deixei de chamar costume. Do pouco que andei pelo país, em parte alguma encontrei o termo costume. O costume veio dos portugueses. Nas comunidades é "tradição”. Utilizamos este conceito para lhes chamar Direito, Direito Costumeiro, Direito Consuetudinário, para atribuir-lhe, em certa medida, uma certa conotação, um tanto ou quanto, diminuída comparativamente ao Direito do Estado.
"Um dos avanços importantes foi termos incluído a responsabilidade penal das pessoas colectivas”
Como avalia o sistema jurídico angolano?
Primeiro, autonomizou-se o Direito da Família enquanto ramo de Direito. Ele estava no Direito Civil, foi retirado de lá e criou-se outro ramo de Direito. Nisto, estabeleceu-se a igualdade entre o marido e a mulher no ca-
samento, para poder responder àquele artigo da Constituição sobre a igualdade perante a lei. No Código Civil, o homem era o chefe da família. Havia uma disposição que fazia referência ao depósito de mulher casada. Aquela situação em que a autoridade tinha o direito de ir buscar a mulher e depositá-la em casa do marido, como se de um ob-jecto se tratasse.
 
Existem outras alterações pertinentes?

A igualdade para os filhos, dentro e fora do casamento. Portanto, deixou de haver filhos ilegítimos, estabeleceu-se o regime de comunhão de adquiridos para os casamentos e a figura de união de facto.
 
Quais são os principais avanços do Código Penal Angolano?
Há muitos avanços no novo Código Penal. Do meu ponto de vista, um dos avanços im-portantes foi termos incluído a responsabilidade penal das pessoas colectivas. No caso concreto, as empresas. Existem áreas que dizemos novos bens jurídicos que precisavam de uma tutela um pouco mais forte, como é o exemplo da questão do Ambiente. É verdade que podemos ter muitas pessoas individualmente a praticar actos lesivos ao Ambiente, mas, essencialmente, são as empresas que praticam mais actos. Então, esta responsabilidade das pessoas colectivas foi, de facto, uma das coisas muito importantes que o código trouxe. Depois, há todo um conjunto de tipos legais novos, por exemplo, no domínio da Família, há uma série de normas que vêm efectivamente dar maior protecção, sobretudo, aos menores, no seio da família.
 
Essas alterações são sempre pacíficas?

Existem as pacíficas e outras nem tanto. Por exemplo, há uma questão muito interessante que está a suscitar acesas discussões, que tem a ver com o facto de as pessoas estarem a interpretar como se tendo autorizado a homossexualidade em Angola. Eu não faço a mes-ma leitura. Digo que se passou a proteger as pessoas com o fundamento no princípio da igualdade, igualdade e direitos iguais para todos. Outra inovação, o código anterior assinalava fundamentalmente a violação sexual a mulheres. Só a mulher, no sentido feminino, é que podia ser violada. O que significa que se um homem fosse violado não era crime. Era de uma desigualdade que não fazia sentido. Em relação à homossexualidade, não considero que houve legalização. As pessoas devem fazer as opções com as quais se sentem melhor acomodadas.
 
E em relação ao Código do Processo Penal?
Neste domínio, temos a criação do juiz de garantias. Está ainda meio amputado, falta ainda a segunda parte, mas pelo menos o código já tem lá as normas e competências do juiz de garantias até onde ele pode chegar, entre outras.
 

Temos quadros à altura para assumir estas responsabilidades?

 Os quadros estão aí, precisam de ser colocados nos lugares devidos. Pode ser que não seja suficiente determinar se vão funcionar a nível das esquadras ou dos Serviços de Investigação Criminal (SIC). Eles são juízes, são autónomos e fazem parte do sistema judiciário. O que é preciso saber aqui é em que momento é que se impõe a sua intervenção. Isso não se faz a nível das esquadras. É nos SIC que deve ser feito. Se alguém for apanhado em flagrante delito a cometer um crime grave, essa pessoa tem de ser imediatamente apresentada ao juiz de garantias. Agora, se o crime prevê uma medida de coacção, temos que ver qual a medida de coacção a aplicar e é o juiz de garantias que tem que decidir.
 

Como olha hoje para o nosso ordenamento jurídico?

A Independência do país deu lugar àquilo que é chamado de fenómeno de sucessão de Estados, onde o novo Estado que emerge não pode funcionar sem normas. No fundo, o ordenamento jurídico angolano é o ordenamento jurídico português com as adaptações que se foram mostrando necessárias. Em algumas áreas, houve mudanças completas, como foi, por exemplo o Código da Família, o primeiro que mudou completamente "Se nós dissermos que a Constituição é a lei mãe, então é o Tribunal Constitucional que está encarregue de zelar pelo cumprimento da Constituição".
 
Que aspectos considera relevantes e oportunos na proposta de revisão pontual da Constituição da República?

Tenho uma opinião muito particular sobre estas propostas. Para mim, e porque havia alguma pressão da comunidade, entendeu-se fazer esta proposta que, creio, tem mais uma finalidade política do que propriamente jurídica. Além da questão da autonomia do Banco Nacional de Angola que, efectivamente, acho que já há muito devia ser resolvida. Existe uma outra questão que considero não estar ainda resolvida a contento, que tem a ver com o relacionamento entre o Poder Executivo e o Legislativo, sobretudo no que diz respeito à prestação de contas. Ver o Executivo a ir até ao Legislativo para prestar contas e sujeitar-se ao escrutínio da Assembleia Nacional. Para mim, esta questão ainda não está resolvida. Mas também não me parece que isso tenha sido totalmente retirado. Creio que deve ter havido ali algum problema de interpretação. É preciso que, efectivamente, o Executivo preste contas da sua actividade junto da Assembleia Nacional. O sistema que temos actualmente não permite censura do Executivo, não permite que o Legislativo emita uma moção de censura ao Executivo. Mas esta parte é já da política.
 
A Constituição da República de Angola de 2010 vai ser "pontualmente” revista e o capítulo sobre o poder judicial está entre as alterações previstas, com mexidas no n. 1 do art. 176º, cuja nova configuração vai colocar o Tribunal Supremo em primeiro e o Constitucional e demais tribunais a seguir. Tem fundamento a polémica à volta do modelo de hierarquia dos tribunais superiores?

Esse já é um assunto antigo, mas que, para mim, tem uma explicação. Primeiro, não me parece que as razões que fazem com que o Tribunal Supremo seja colocado em primeiro lugar na hierarquia dos tribunais possam ter a ver com razões protocolares, porque as razões protocolares não têm nada a ver com a Constituição. Acho que isto foi posto ali, talvez, por algum descuido, mas nada relacionado com a Constituição. As razões protocolares são um "não assunto”. Agora, há uma questão importante, é preciso olhar para a função e as competências do Tribunal Constitucional. Se dizemos que a Constituição é a "lei mãe”, então é o Tribunal Constitucional que está encarregado de zelar pelo cumprimento da Constituição. Não precisamos de discutir muito à volta deste assunto. O Tribunal Constitucional é o guardião, o garante da Constituição.
 
A professora fala de um tribunal que conhece?

Primeiro, temos um Estado de Direito Democrático onde os direitos, liberdades e garantias das pessoas são fundamentais. Segundo, o Tribunal Constitucional é o tribunal dos direitos humanos. Terceiro, é o Tribunal Constitucional que trata do processo eleitoral, é ele que diz que você é o vencedor das eleições, é o Presidente da República porque venceu as eleições... Creio que isso é mais do que suficiente para compreender porquê, na hierarquia, é o Tribunal Constitucional que deve estar no topo, não obstante que, em diferentes níveis, outros tribunais também tenham estas obrigações, até porque essa é uma obrigação geral, mas como missão específica é o Tribunal Constitucional que tem esta responsabilidade. Por isso é que ele tem um "mais” na hierarquia. Ao Tribunal Constitucional compete verificar, em matéria constitucional, se determinado acórdão do Tribunal Supremo violou ou não a Constituição. É o Tribunal Constitucional que dá posse ao Presidente da República, como também tem competência para o destituir.
 
Na orgânica dos tribunais, qual é o papel do Conselho Superior da Magistratura Judicial?

Aqui há uma questão estrutural. Na orgânica dos tribunais, o Conselho Superior da Magistratura Judicial tem uma função administrativa de gestão dos tribunais e outra disciplinar, que tem a ver com a disciplina dos juízes, o funcionamento dos tribunais, os concursos para a promoção dos juízes, o desempenho dos tribunais, entre outras. Ele não tem funções jurisdicionais. Por isso, ele não pode ser colocado numa posição do tipo superior hierárquico do juiz. O juiz deve obediência à lei e à sua consciência. Não se pode estar a pretender dar a ideia de que o Conselho Superior da Magistratura Judicial vai dar ordens ou determinar que os tribunais julguem nesta ou aquela direcção. Essa é uma questão que deve, logo à partida, ficar muito clara. Quando o juiz actua numa causa é aí onde ele tem a sua soberania. Está ali para decidir e fá-lo de acordo com a lei e a sua consciência.
 
Qual é o enquadramento que faz de um contexto em que os juízes são órgãos de soberania e não os tribunais. A actual Constituição estabelece que os juízes são titulares destes órgãos de soberania (tribunais), sendo o poder jurisdicional difundido pelos vários juízes concretamente considerados, à luz de um dos princípios do poder judicial (o da polarização individual do poder judiciário)?

Não tenho o texto e, consequentemente, não tenho bem presente o que está escrito no texto. Mas tenho algumas dificuldades em compreender a rácio, ou melhor, a razão de ser desta questão. Entretanto, há aqui uma coisa que é importante. A autoridade dos tribunais e dos juízes estende-se a todos os órgãos públicos e privados. Portanto, as decisões que os tribunais tomam, que os juízes proferem, são de cumprimento obrigatório para todas estas instituições. Então, se elas são de cumprimento obrigatório para todos, você não pode reduzir a actividade do juiz à sala de audiência, até porque grande parte da actividade do juiz é realizada no seu gabinete e não na sala de audiências.
 
A questão já não se coloca em relação ao procurador-geral da República?
Isso é outra coisa. A Procuradoria-Geral da República organiza-se de forma hierárquica. O procurador-geral da República é o superior hierárquico de todos os procuradores. Pode dar ordens, tal como pode receber ordens e instruções do Presidente da República. Portanto, é uma estrutura diferente. Mas não tem poderes para julgar nada. Daí a necessidade de criação da função do juiz de garantias. A Procuradoria-Geral da República está a exercer uma função do juiz de garantias. O procurador-geral da República não tem poderes para mandar fazer escutas.
 
Pode comentar o processo em curso de harmonização das competências dos tribunais superiores em matéria de recurso (Tribunal Supremo e Tribunal Constitucional)...

Com a organização judiciária que se está a criar, pelo menos até à altura em que eu saí, pretendeu-se, sobretudo, criar uma nova orgânica para ajudar na questão da celeridade na decisão dos processos. O país tinha só uma instância de recurso, que era o Tribunal Supremo, o que obrigava a que, para atender, por exemplo, um recurso em Santa Clara, esse processo tinha que vir até Luanda para ser reapreciado. Daí, a ideia da criação dos tribunais da Relação, uma instância de recurso, intermédia, em que um caso é ainda apreciado do ponto de vista dos factos e do Direito. Isso iria permitir que sempre que a decisão proferida pelo Tribunal da Relação for satisfatória ao interesse da pessoa que interpôs recurso, o processo terminaria mesmo aí, portanto, sem necessidade de chegar até ao Tribunal Supremo. Seria só baixar para o Tribunal de Comarca para executar a decisão.
 

E o que acontece quando a decisão não satisfaz o queixoso?

Caso a pessoa lesada continue a achar que a decisão ainda não o satisfaz, tem o direito de recorrer ao Tribunal Supremo. Mas apenas se o seu recurso estiver relacionado com matéria de Direito. Tem de ver apenas se a lei aplicada é a que devia ser, se já não existiam outras leis para serem aplicadas, se foram atendidos os princípios do Direito, entrem outros.


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