Opinião

Saudosismo colonial ou formas encapotadas do neo-colonialismo?

Adebayo Vunge

Jornalista

Há algum tempo estão a proliferar na internet, alimentados por gente com motivação suspeita, alguns materiais que evocam um certo saudosismo pelo colonialismo.

19/04/2021  Última atualização 06H10
A capa mais evidente dessa corrente são as imagens dum álbum com fotografias de Luanda no auge do terceiro império português (1825-1975) que coincide obviamente com o auge do Estado colonial em que se mostram imagens do casco urbano de Luanda e ignora-se completamente a indigência dos nativos nos musseques de Luanda, exactamente porque estes não contavam para a fotografia e eram a escumalha da sociedade. Era assim que tratavam os nossos pais e avós, mesmo que estivessem já na condição de assimilados.

Para além de todas as narrativas que procuram confundir as pessoas, disseminando a ideia de que com o colonialista era melhor, a verdade é que vão ganhando peso a julgar pela quantidade de gente que as reproduz, mediante partilha, muitas vezes apenas em resposta ao "estado de desgraça” que se tornou a salubridade de Luanda, situação que urge corrigir.
Há até um hino intitulado "Angola é nossa” que supostamente era uma cantiga do exército na sua guerra contra os apelidados terroristas angolanos, muitos dos quais sofreram as agruras da perseguição política, quando não foram mesmo eliminados.

Para além da apropriação do território, o que me parece mais condenável no colonialismo é a sua ausência total de humanidade ignorando qualquer conceito de igualdade e valorizando sobremaneira a exploração de uns pelos outros. Portanto, o que os nossos pais, avós e outros ancestrais combateram foi exactamente essa postura e não podemos a preceito de que estávamos diante de um bom colonialismo fazer-lhes apologia.

Mas essa postura não é nova e nem é exclusivamente nossa. Ela motivou há uma dezena de anos, a abordagem de inúmeros e conceituados autores em dispersas obras e revistas de centros de investigação de que destacaria a revista Politique Africaine (do Centre d'etude d'Afrique noire — Institut d'etudes politiques de Bordeaux) e ainda o Caderno de Estudos Africanos (do Centro de Estudos Africanos do Centro de Estudos Internacionais (CEI-IUL) do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) onde se sugere o questionamento comum sobre as reconfigurações das memórias do passado colonial, aproveitando o contexto de falência das políticas públicas nos Estados Africanos pós-independências ou ainda da reconfiguração do passado colonial em alguns países europeus.

Neste capítulo, gostaria de sublinhar os estudos que mostram a matança que foi a repressão dos Mau-Mau no Quénia, perpetrada pelos ingleses ou ainda o extermínio de 80% dos Herero da Namíbia pelo exército imperial dos alemães (isso mesmo, alemães) nos anos 20 do século passado.
Segundo um artigo interessante da revista Cadernos Africanos, da investigadora Cláudia Castelo, esse discurso e aquelas imagens são sobretudo alimentadas pelos que exaltam os "descobrimentos”, segmentos de ex-retornados e até de antigos combatentes, com um juízo negativo da descolonização, não porque ela tivesse incontornavelmente que ser feita, mas, admitem alguns historiadores, porque o poder ficou longe daqueles que eram quiçá os seus preferidos.

"Os chamados «retornados» (portugueses e seus descendentes oriundos das ex-colónias ou que vieram viver para Portugal após a descolonização) e os antigos combatentes encontram-se entre os grupos que, de uma forma mais sistemática, promovem a construção e reelaboração das memórias do passado colonial”. E fazem-no de diversas formas, hoje com recurso sistemático às redes sociais onde encontramos inúmeras páginas desse cariz e os propósitos mais diversos. Infelizmente, muitos de nós reproduzem esse discurso e essas imagens sem prestarmos atenção aos riscos que acarreta essa postura neocolonial, tentando fazer crer as pessoas que Angola seria melhor se ainda estivesse sob o jugo colonial. Ledo engano!

Como diria o outro, o que me assusta é o silêncio dos bons. Dos mais velhos que não mandam calar quem propala essa mensagem, que escamoteia o tom de racismo do colonialismo. Mas não é possível que nos calemos a essa saudade de uma coisa que muitos, por sinal, não vivemos e que todos sabemos que estava errada. Nem os nossos erros – a obsessão pelo poder da UNITA que nos conduziu a uma guerra civil ignóbil e os erros da governação do MPLA, sobretudo depois de 2010 – como dizia, não servem para legitimar esse saudosismo. Angola é nossa, sim. Mas Angola é nossa dos angolanos e dos que amam Angola sem quaisquer saudades de um "paraíso perdido”.

A  imagem do Angola é nossa precisa de ser alimentada com a apropriação patriótica por meio do ensino, da religião e da média. O sentido da auto-determinação, a imagem do Angola é nossa não tem preço e não podemos sucumbir ante um passado verdadeiramente inglório.
Entre a melancolia e o trauma dos nossos processos históricos – se olharmos só a intensidade dos últimos cem anos, precisamos colocar a nossa sociedade no divã socorrendo-nos de Adorno e Freud.

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