Reportagem

“Só conheci a doença quando o meu filho tentou tirar a própria vida”

Alexa Sonhi

Jornalista

Depois de ignorar os sinais de alerta, Paulo Fernandes descobriu, da pior forma possível, que o filho adolescente padecia de Transtorno Afectivo Bipolar, quando este tentou tirar a própria vida. Sem cura, a doença afecta mais de 140 milhões de pessoas no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), divulgados em 2019. Só no primeiro trimestre do ano em curso, o Hospital Psiquiátrico de Luanda registou 80 casos. Hoje é o Dia Mundial do Transtorno Afectivo Bipolar, data celebrada em homenagem ao pintor holandês Van Gogh, que após a sua morte, estudos indicaram que, possivelmente, seria portador da patologia

30/03/2021  Última atualização 08H33
© Fotografia por: Vigas da Purificação| Edições Novembro
Aos 13 anos de idade, Telmo Pascoal era um adolescente alegre, que se considerava o melhor da turma, mesmo sem o ser, gastava dinheiro sem controlo e dizia ser parente de alguém famoso ou de algum membro do Governo. Por isso, ficou conhecido como "rapaz com manias de grandeza”.
Apesar da alegria, havia momentos em que Telmo Pascoal preferia se isolar, sem vontade de sair de casa, ficava dias sem tomar banho e irritava-se com frequência. Para os pais, esse tipo de comportamento tinha um objectivo: chamar a atenção dele.


Três anos depois, a situação era a mesma. Havia momentos de alegria, que de repente eram substituídos por profunda tristeza e isolamento. Mergulhado numa depressão profunda, o adolescente começou a ter ideias suicidas. Tinha perdido a alegria de viver. "Um dia, o Telmo tentou se enforcar com uma corda decorativa que a mãe usava para prender as cortinas da sala. A irmã mais velha evitou o pior, porque, naquele exacto momento, entrou no quarto dele”, lembra Paulo Fernandes, pai de Telmo Pascoal.

Preocupados com a tentativa de suicídio do filho, os pais procuraram ajuda médica. Primeiro, no Hospital do Prenda, onde o médico clínico-geral deu conta que o problema era de âmbito mental, por isso, indicou os serviços de um psicólogo clínico.
Durante meses, Telmo Pascoal foi acompanhado pelo psicólogo clinico, mas o quadro não melhorava. "Algumas vezes, estava muito triste e sozinho. Outras, ficava muito alegre, com vontade de sair para estar com os amigos”, lembra o pai.

Um ano depois e sem nenhuma evolução no estado emocional do paciente, o psicólogo clínico entendeu encaminhar o caso para um médico psiquiatra, no Hospital Psiquiátrico de Luanda. Depois de vários exames e conversas com os familiares, era revelado o diagnóstico: Transtorno Afectivo Bipolar.

À reportagem do Jornal de Angola, Paulo Fernandes admite que, até o dia em que recebeu o diagnóstico do filho, desconheciam a existência da doença. "Transtorno Afectivo Bipolar? O que é isso, doutor?”, questionou na altura. "O problema era sério. O Telmo já sofria de Transtorno Afectivo Bipolar desde os 13 anos. A nossa ignorância e falta de acompanhamento médico pioraram a situação. Só conheci a doença quando o meu filho tentou tirar a própria vida”, reconhece.

"Transtorno bipolar é uma doença mental que precisa de medicação e acompanhamento médico, para evitar que evolua para quadros mais críticos ou acabe em morte. Como pais devemos conhecer os sinais”, aconselha.


Psiquiatria de Luanda com muitos casos

O director clínico do Hospital Psiquiátrico de Luanda, Jaime Sampaio, revela que, no primeiro trimestre do ano em curso, o Banco de Urgência e as consultas externas registaram 80 casos de Transtorno Afectivo Bipolar.
Segundo o médico psiquiatra, este número já é preocupante, na medida em que o Transtorno Afectivo Bipolar é uma patologia sem cura, cujas reais causas ainda não foram devidamente estudadas.

Jaime Sampaio explica que o Transtorno Afectivo Bipolar é uma doença mental caracterizada por alterações contínuas do humor, sendo que algumas vezes os níveis de humor são altos (chamada mania ou hipomania) e outras baixam drasticamente, levando à depressão profunda.
"São aquelas pessoas que num determinado período estão muito alegres e noutros completamente tristes. Por isso, chamam-se bipolar, porque tem dois polos, um  maníaco e outro depressivo”, esclarece o psiquiatra.

Segundo o especialista, a doença está dividida em duas partes. Na primeira, "o paciente apresenta quadros de manias e de depressão com alguma relevância”. Na segunda, "o paciente demonstra mais episódios de depressão em relação às manias”.
"Esta patologia, quando não acompanhada convenientemente, pode evoluir para perturbações de ansiedade, obsessão compulsiva, transtornos de pânico, fobias e problemas de personalidade, principalmente os relacionados com a organização pessoal”.


Idade de riscoNa opinião do psiquiatra, os problemas de Transtorno Afectivo Bipolar começam na adolescên-cia, ou seja, aos 14 ou 15 anos de idade."E é no intervalo entre os 15 e 25 anos que esses transtornos ganham maior evidência”, salienta o especialista.
Segundo Jaime Sampaio, do ponto de vista epidemiológico, as mulheres têm estado apresentar com mais frequência transtornos bipolares, sendo que, em alguns casos, a hereditariedade é apontada com uma das causas.

"Também podemos apontar como causas o ambiente em que a pessoa vive, o consumo de álcool, drogas e violação sexual na infância. Mas, também, a patologia pode estar relacionada com uma determinada desorganização física a nível do cérebro, onde os hormônios que têm a missão de fazer o controlo emocional ficam exaltados devido a outras doenças”, explica.
O stresse no trabalho, na escola, na rua e no dia-a-dia, depende do equilíbrio emocional de cada um, podem, igualmente, desencadear em transtorno bipolar.


Sintomas  da doença
Jaime Sampaio explica que, na fase maníaca,  a pessoa com Transtorno Afectivo Bipolar tem a "sensação de extremo bem-estar; aceleração do pensamento e da fala; agitação e hiperactividade; diminuição da necessidade de sono; aumento da energia; diminuição da concentração; euforia ou irritabilidade; desinibição; impulsividade; ideias de grandiosidade e sensação de "poder”. 

Ainda nessa fase, acrescenta, a pessoa tem tendência de fazer sexo com muita frequência com o parceiro ou com outros. De acordo com o médico, estas pessoas gastam dinheiro sem qualquer controlo, mas, depois de algum tempo, passam para a depressão profunda. "Nesta fase, a pessoa já não quer sair de casa, nega-se a conversar, não cuida da higiene, deixa de ter vontade de estar com o parceiro, perde a capacidade de discernimento, perde a vontade de viver e começa a ter ideias suicidas ou homicidas”, sublinha, acrescentando que "os familiares devem estar atentos, e quando notarem estes sinais, é um alerta de que o indivíduo sofre de Transtorno Afectivo Bipolar”.


Prevenção e tratamento

Apesar da doença não ter cura, tem tratamento que ajuda a controlar o humor (os chamados estabilizadores de humor), além do acompanhamento regular de psicólogos, psicanalistas, psico-educadores e psiquiatras, para permitir que haja uma estabilização do humor ao longo da vida. O tratamento inclui o uso de medicamentos, psicoterapia e mudanças no estilo de vida, tais como o fim do consumo de substâncias psicoactivas (cafeína, anfetaminas, álcool e cocaína), o desenvolvimento de hábitos saudáveis de alimentação, sono e redução dos níveis de stress.

Por isso, aconselha o médico, é necessário que todos saibam controlar as emoções. "Os pais, principalmente, devem prestar cada vez mais atenção aos filhos, na forma como eles expressam as emoções na fase de risco, que é dos 15 aos 25 anos”, aconselha.
Jaime Sampaio assegura que há casos de pessoas com transtorno bipolar que levam uma vida normal, "apesar das manias de grandeza e algumas crises de depressão”. "Mas existem casos graves da patologia que deixaram mesmo de estudar ou trabalhar. Estiveram internados e agora estão em casa apenas para evitar problemas no local de trabalho ou na escola”, refere o médico.


Homenagem ao pintor holandês Van Gogh

O Dia Mundial do Transtorno Bipolar é celebrado no aniversário do pintor holandês Vincent Van Gogh, que nasceu a 30 de Março de 1853. Após a sua morte, a 29 de Julho de 1890, estudos indicaram que, possivelmente, seria portador do transtorno bipolar. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), divulgados em 2019, o Transtorno Afectivo Bipolar atinge cerca de 140 milhões de pessoas no mundo.

A data é celebrada com o objectivo de chamar a atenção para os transtornos bipolares, eliminar o estigma social e levar informação à população, educando e sensibilizando para a doença, que representa um desafio significativo para pacientes, profissionais de saúde, familiares e comunidade.

A causa exacta do Transtorno Afectivo Bipolar é desconhecida. No entanto, estudos sugerem que o problema pode estar associado a alterações em certas áreas do cérebro e nos níveis de vários neurotransmissores, como noradrenalina e serotonina. Esse desequilíbrio reflecte uma base genética ou hereditária para o transtorno, que tem como principais características episódios depressivos alternados com episódios de euforia (também chamada de mania ou hipomania, dependendo da intensidade e da duração) e casos em que há uma mescla dos episódios depressivos com os de euforia.  

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