Opinião

Solidariedade sem tréguas

Caetano Júnior

Jornalista

Os testemunhos de que há pessoas dependentes da caridade alheia acumulam-se todos os dias. Não obriga a esforço algum enumerá-los.

03/01/2021  Última atualização 11H37
O país tem-nos mais do que gostaria. Em Luanda, por exemplo, fica difícil não dar, a cada esquina, a cada rua, com alguém de mão estendida, carente, à espera da sensibilidade de quem hoje deve transformar o coração num poço de bondade. Por isso, também abundam, entre nós, exemplos de gente de profundo humanismo, de seres cuja vocação é aliviar o semelhante da dor provocada pela carência, do sofrimento trazido, principalmente, pela falta do que comer.

No Katambor, subúrbio vizinho das outrora reluzentes Maianga e Alvalade, os moradores associaram-se: juntaram o poucochinho que puderam, para minorar o sofrimento de quem com eles divide paredes toscas, becos e ruelas. Um exercício de profundo humanismo, num tipo de bairro geralmente referenciado pelos piores motivos. De facto, as zonas suburbanas são quase sempre associadas a actos de violência ou lembradas pela actividade criminosa de natureza diversa.

No passado, o Katambor foi, aliás, tido como o abrigo preferencial de ladrões e meliantes de toda a sorte, que, como se dizia, para lá se refugiavam depois de supostos assaltos na Maianga ou no Alvalade. Um estigma que perseguiu jovens e adolescentes do bairro ao longo dos tempos, o que lhes condicionou, inclusive, a convivência com colegas em instituições de ensino e a formação académica. Mas é um tempo que ficou para trás, felizmente.

Hoje, os moradores orgulham-se do associativismo que os move e dos gestos de solidariedade que estendem ao próximo. Afinal, o
local onde vivemos não define o coração que temos. O carro do lixo desce a rua, numa outra zona de Luanda. A cada porta, o motorista pede as "boas festas”, um ritual que se conhece de há muito tempo e que se reproduz nesta época, a cada ano, nos mais diferentes lugares. De algumas residências, chegam pratos cheios, enrolados em guardanapos de papel. Há doces, salgados, carne, peixe e até refrigerantes.

De outras habitações, a resposta é o silêncio. Se calhar, os moradores também enfrentam dificuldades, não do tipo que vivem os trabalhadores da empresa de saneamento. Mas pode, igualmente, dar-se o caso de as pessoas da casa serem avessas a gestos solidários. Acontece. Ninguém é obrigado a dar. É uma questão de consciência.

Na Centralidade, vêem-se mais meninos nas ruas, a pedir. Cada vez que uma viatura pára, por força do sinal vermelho do semáforo, eles aproximam-se à janela, ora são atendidos, ora simplesmente ignorados. Omotorista de um Hyundai fez descer o vidro e estendeu uma tigela com bolinhos. Coincidentemente, estavam seis garotos, para a mesma quantidade de bolos. O último ía levando a tigela, o que arrancou risos dos amigos e de quem assistia à cena. Até em pequenas tragédias, há espaço para a descontracção.

O drama dos pequenos continuaria nos dias subsequentes. Muitos deles são orientados pelos pais ou tutores a sair para este exercício ao longo das estradas e em residências. Todos os dias, independentemente da Quadra Festiva, porque a alimentação é uma necessidade vital e a barriga não cumpre folgas. Muito bom seria se o fizesse! Por isso mesmo, os moradores da Centralidade dizem-se fartos das investidas de quem lhes bate à porta em busca de uma côdea que seja. Chega a ser cansativo, é verdade. Mas é preciso manter aberta a porta da solidariedade.

À entrada para o supermercado, duas senhoras estão sentadas, de braços estendidos. Rodeiam-nas duas crianças, que às vezes se antecipam aos pedidos das mães. Já não querem dinheiro, como acontecia com frequência.
A quem vai às compras, agora pedem produtos: "Padrinho, pode ser massa, óleo, arroz ou outra coisa”, diz uma das mulheres. Uma moeda ficava mais barato para quem quer ajudar. Do supermercado saiu, entretanto, um senhor, que entregou a uma delas um saco com produtos.

Resta saber se ela foi capaz de apelar à sua própria solidariedade e dar parte do conteúdo à amiga. Não poucas vezes, fazemos apelos para que os outros sintam a nossa dor, sem, contudo, o fazermos quando os papéis se invertem. A adversidade pode atingir-nos a todos. É preciso lembrar.
Talvez tenha sido um efeito produzido pela viatura que conduzia. Mas a ele foi ter um portador de deficiência, estendendo-lhe um papel. Era de uma óptica, a dar conta de que alguém precisava de um par de óculos, urgentemente.

Disse-lhe o homem que era para a filha e que não tinha como obter o valor em falta, 12 mil Kwanzas. Era muito ou pouco
dinheiro? Questionou-se. Ele tinha-os e, muito provavelmente, não lhes daria destino mais nobre do que este, que lhe era "proposto”. Mas podia ser um oportunista, um vigarista, como os há aos montes em Luanda; parasitas que fazem do dinheiro alheio o pecúlio. Acabou por dá-lo, na esperança de que seria usado no propósito para o qual foi solicitado.

Subiu na viatura e foi. Tinha acabado de fazer a parte que lhe cabia. Se fosse uma intrujice … Em Deus temos de confiar!
Gestos destes, de anónima solidariedade, testemunham-se um pouco pelo país. Não há um angolano que os nunca tenha presenciado.
Aliás, temos todos, pelo menos, um episódio para partilhar. Em comum, as situações têm a caridade e seriam em número suficiente para encher páginas de jornais. São provas nossas de preocupação com o bem estar do próximo, em acções que calam choros de bebés, arrancam sorrisos em crianças e atenuam o desespero de adultos, dando-lhes o conforto de poderem contar até com um "desconhecido”, que mais não é senão um compatriota, com quem divide os problemas do país e cujo amparo agradece.

A solidariedade deve permanecer, pois, um pregão, proclamado a cada instante. Desde que professada com respeito; sem humilhação, nem a exposição embaraçosa de quem dela precisa. Que se estenda a mão com o respeito que nos merece cada ser humano, independentemente da fase da vida que esteja a atravessar. Afinal, a adversidade é um risco a que estamos todos expostos; é um perigo que todos circunda e ao qual nem sempre há prevenção. A Covid-19 está aí a comprová-lo.

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