Entrevista

Sónia Guilherme: Empresas incumpridoras ficam impedidas de fazer negócios com o Estado

A Assembleia Nacional (AN) aprovou,recentemente, a Nova Lei da Contratação Pública, que passou a vigorar desde o mês de Janeiro deste ano.

10/02/2021  Última atualização 10H00
Sónia Guilherme © Fotografia por: DR
 A preocupação do Governo com esta nova versão é a de tornar mais fácil a relação do Estado com os seus principais fornecedores de bens e serviços, além de garantir às empresas nacionais, sobretudo as Micro, Pequenas e Médias Empresas (MPME), a capacidade de competirem num ambiente de mercado mais vantajoso e de menos constrangimentos. Através deste instrumento legal, é também expectativa do Governo que se melhore o ambiente de negócios no país. A directora-geral adjunta do Serviço Nacional de Contratação Pública (SNCP), órgão afecto ao Ministério das Finanças, Sónia Guilherme, aborda toda uma série de alterações e vantagens com que as Entidades Públicas Contratantes (EPC) passam a ter de lidar na relação com as adjudicatárias (empresas que beneficiam dos direitos de execução de contratos celebrados com o Estado).


O que motivou a revisão da Lei da Contratação Pública?

A Lei da Contratação Pública (LCP) foi, recentemente, revista e aprovada pela Assembleia Nacional, Lei 41/20, de 23 de Dezembro, tendo entrado em vigor no dia 22 de Janeiro deste ano. Em termos gerais, a Contratação Pública é um processo dinâmico e em função da sua aplicação houve a necessidade de se fazer uma revisão de aspectos que, eventualmente, não estivessem muito claros, por um lado, e, por outro, para complementar outros aspectos que a Lei 9/16, de 16 de Junho, não contemplava na sua totalidade. Desde 2018 que o Serviço Nacional da Contratação Pública tem vindo a rever a lei, de forma a colmatar algumas deficiências na sua aplicação. Foi neste sentido que, numa primeira fase, se previa que fosse uma alteração pontual, mas por altura da sua discussão na Assembleia Nacional, os deputados acharam por bem que a alteração, pelo conteúdo da informação, fosse por via de uma lei nova. Foi neste sentido que surgiu o presente diploma.


O que foi melhorado?

Um dos aspectos que foi revisto é o da clarificação da inclusão de Contratos de Concessão. A lei anterior (9/16) fazia apenas uma breve referência, mas nesta nova lei (41/20) foi introduzida informação, num capítulo próprio, sobre o regime substantivo dos Contratos de Concessão. Estamos a falar dos Contratos de Concessão Administrativa de Obras Públicas, de Serviços e os Contratos de Exploração de Domínio Público. Além disso, ainda em relação ao âmbito objectivo, houve a necessidade de se esclarecer o uso e a praticabilidade dos contratos ligados às Empresas Públicas (EP) e às de Domínio Público (EDP). Na anterior lei, havia dois níveis de aplicação da LCP, sendo um para serviços e bens com limite igual ou superior a 182 milhões de kwanzas e outro, nos casos de obras, o limite era igual ou superior a 500 milhões.


Na nova lei está tudo melhor clarificado?

A nova lei clarifica que a estas naturezas de contratos devem ser  aplicadas as regras da LCP quando os contratos a celebrar por essas empresas representem valores iguais ou superiores a 500 milhões de kwanzas, independentemente  do objecto a contratar, mas só para aquelas empresas que tenham recebido subsídios operacionais ou outros recursos do OGE. Ou seja, se uma EP desenvolver a sua actividade de aquisições com base em recursos próprios, sem qualquer dotação que venha do OGE, não precisa de aplicar a lei. Mas isso não quer dizer que no âmbito da aplicação dos procedimentos não os faça com base nos critérios que a LCP determina, como são os casos da transparência, da concorrência, portanto, os princípios estabelecidos na lei devem ser aplicados.


Quais os tipos de contratos existentes?

Normalmente, os Contratos Públicos são de Aquisição de Bens, de Serviços e de Empreitadas. Por outro lado, existem os Contratos de Concessão, que é uma outra forma de contratação. Nesta, o Estado concede o direito a um privado de fazer os serviços públicos, como é o caso do recente contrato celebrado entre o Terminal Multiuso do Porto de Luanda e a DP World. Para a concretização desta variedade de contratos, a LCP dispõe de várias modalidades para o desencadeamento dos procedimentos, pelo que a EPC deve escolher o que mais se adequa àquilo que é o objecto do seu contrato, em função do valor estimado.


Qual é o racional da subida de 182 para 500 milhões de kwanzas sobre o valor que obriga a contratação pública?

O que se pretendeu aqui foi fazer com que as EP e as EDP tivessem mais autonomia, uma vez que visam o lucro, pois a LCP exige prazos e conteúdos, e, no caso, previu-se que se as empresas tivessem nalguns casos os mesmos procedimentos que os privados, talvez consigam mais rapidamente e com menos burocracia alcançar o objectivo do negócio proposto. Em resumo, podemos afirmar que se pretende que as empresas concorram com maior equilíbrio no mercado e maximizem as vantagens existentes.


A questão da transparência está garantida na lei?

A nova lei não traz nada de novo nesse capítulo, uma vez que a anterior era suficientemente clara e abrangente nesse quesito. Acho que tem estado a haver uma confusão com o Decreto Executivo 319/18, sobre a Declaração de Bens e Rendimentos, que exige aos gestores públicos a declaração dos seus bens e rendimentos e, à semelhança, a todos os funcionários que tenham sido indicados como membros de comissões de avaliações de procedimentos de Contratação Pública ou que estejam, de alguma forma, envolvidos nos processos de contratação. Isso já vem da lei anterior, o que poderá ter ocorrido é que não havia tanta publicidade.


De que forma esta nova lei vai beneficiar o ambiente de negócios?

De certa forma, havia alguma relutância na aplicação da lei por parte de muitas Entidades Públicas Contratantes (EPC), que diziam que o diploma era muito burocrático. Nesse sentido, a nova lei procurou desburocratizar e tornar a própria lei mais simples, na sua aplicação. Por exemplo, uma das novidades tem a ver com o uso das cauções que, por vezes, tem havido alguma relutância a nível da banca de as prestar. A lei anterior previa dois tipos: a Provisória (apresentada por altura da apresentação de propostas) e a Definitiva (apresentada apenas pelo adjudicatário, ou seja, aquele a quem foi adjudicado o contrato). A lei previu retirar a caução Provisória, mas manteve a Definitiva, passando a designar-se apenas de Caução.


O que alterou com isso?

A mesma sofreu uma redução do seu valor máximo, passando de 20 para 15 por cento do valor do contrato, mas tem a obrigatoriedade de prestação para contratos com valor igual ou superior a 182 milhões de kwanzas, que é de um mínimo de 5 por cento, ou seja, a lei estabelece como limite de Caução 5 a 15 por cento do valor do contrato. Assim, em função do objecto de contrato, fica a escolha da percentagem a adoptar ao critério da EPC.


Em que momento se aplicam as indemnizações?

A Caução em si é uma ferramenta que as EPC têm em seu favor para fazer com que as entidades contratadas cumpram com os termos e condições dos contratos. Se o contratado incorrer em incumprimentos, a EPC pode executar a Caução, e, desta forma, ao invés de o Estado incorrer a custos adicionais para solucionar as falhas registadas pelo contratante, por via da Caução, o Estado poderá cobrir os referidos custos.


E quando é o Estado que incumpre com os acordos?

Se dentro dos prazos determinados, a EPC não devolver as cauções, a lei prevê a aplicação de juros de mora. Deste modo, incorre-se em outros custos para o Estado. Foi por esses motivos que a nova lei previu que a gestão das cauções fosse levada ao Serviço Nacional de Contratação Pública, ou seja, por via desta nova lei, o SNCP é entidade legítima para a gestão das cauções.


Quem controlava as cauções?

Cada uma das EPC controlava as respectivas cauções. A gestão era autónoma e por diversas vezes o SNCP era chamado a advogar a favor das empresas para a devolução de cauções detidas por determinadas EPC. Por outro lado, também se verificava que estas cauções, que no fundo devem cobrir o ciclo de implementação toda do objecto de contrato, eram devolvidas antes dos contratos estarem terminados. Nesses casos, se o co-contratante incorresse a alguma falha, a caução já não poderia ser accionada. O Estado incorria, igualmente, em novos gastos para cobrir as falhas.


A falta de observação aos procedimentos terá alguma ligação com a dívida pública não certificada?

A dívida não é matéria de contratação pública, mas do domínio de uma outra área do Ministério das Finanças. Pode ser que, em algum momento, resultado de procedimentos de contratação pública, se traduzissem em dívida. Como é sabido, atravessamos um momento financeiro difícil e por isso estamos a levar a cabo uma agenda de reformas macroeconómicas. O que se tem estado a fazer é um trabalho no sentido de se evitar que, por via da contratação pública, se incorra a novas e mais dívidas. O que se espera nesse caso é que, face à retenção de recursos, cada órgão máximo das EPC deveria ter a atenção de não efectuar procedimentos que não tenham dotação para o efeito, para se evitar uma ‘bola de neve’ na questão das dívidas. Não acredito que as dívidas públicas sejam apenas por via dos contratos. Pelo contrário, processos de contratação, à luz das regras orçamentais, ajudam-nos a evitar estes eventos.

 Têm sido defraudados?

O SNCP não tem dados que permitam afirmar se o Estado tem sido ou não defraudado por via de procedimentos de contratação pública.


Quais são as preocupações genéricas das EPC?

Entre outras, a relacionada com a desactualização do valor para aplicação da Contratação Simplicada que, por via da nova lei, foi alterado de 5 milhões para 18 milhões de kwanzas; alguma burocracia na aquisição de documentos de habilitação, pelo que a actual LCP dispõe que estes sejam solicitados, apenas, aos concorrentes propostos para adjudicação dos contratos. São no fundo preocupações atendidas em sede da lei agora em vigor e que em última analise facilitam também o ambiente de negócios, ou seja, a relação entre as EPC e os fornecedores.


Há muitas empresas com perfil de incumpridoras?

Se formos ver as informações que já passaram pelos noticiários dos órgãos de comunicação social, parece existirem muitas empresas que incumpriram os contratos. Se, porventura, já houvesse essa prática de avaliação dos fornecedores e as próprias Entidades Públicas Contratantes fizessem a comunicação ao SNCP para que este apurasse de facto, o incumprimento foi devido a má-fé ou resultante de uma outra razão, facilitava-se sobretudo a lista de empresas impedidas. Esperamos que as EPC comecem a avaliar aqueles que são os seus parceiros na implementação dos seus contratos.


Nos contratos públicos, há reservas exclusivas para os nacionais?

A lei estabelece um determinado montante para os quais os procedimentos devam ser, apenas, executados por empresas nacionais. Além disso, mesmo naqueles contratos em que se permite o concurso de empresas estrangeiras, a lei prevê que se possa dar alguma preferência às micro, pequenas e médias empresas. Isso de-corre da forma de avaliação dos procedimentos em que a EPC define os critérios sobre como se irá materializar esta preferência. Se as peças do procedimento não tiverem esta informação, não há como se fazer tal preferência. A perspectiva da preferência é essencialmente de impulsionar o empresariado nacional, dando-lhes alguma vantagem na avaliação para que possam ter acesso aos contratos.


Como são vistos os critérios de urgência na contratação?

Até então, admitiam-se quatro procedimentos, sendo Concurso Público; Concurso Limitado por Prévia Qualificação, Concurso Limitado por Convite e Contratação Simplificada. A actual lei, com base na urgência, definiu um novo procedimento designado de Contratação Emergencial, que fez cair o anterior critério de Contratação Simplificada, pois era, muita das vezes, erradamente empregue.


O que dizer da Contratação Electrónica?

Contratação Electrónica designa-se aos procedimentos que tramitam directamente na plataforma SNCPE, no Por-tal da Contratação Pública www.compraspublicas.minfin.gov.ao. O Procedimento Dinâmico Electrónico, em adição à Contratação Emergencial, resultou no aumento de quatro para seis tipos de procedimentos de contratação de serviços, bens ou empreitadas que podem ser adoptados pelas EPC, ao abrigo da lei 41/20. O mesmo permite a adjudicação de contratos de bens ou serviços padronizados em até 24 horas e traz três etapas: publicação do leilão, tramitação do leilão e adjudicação do contrato. Para a publicação, no Procedimento Dinâmico Electrónico, os contratos com valores até 18 milhões de kwanzas obrigam a divulgação, para início do leilão, de pelo menos quatro horas antes. Para contratos com valores inferiores a 72 milhões, o processo de divulgação deve ser feito em três dias. Quando o valor for igual ou superior a 182 milhões, o procedimento de divulgação do leilão impõe 10 dias. Para este procedimento, o critério de adjudicação a utilizar é o do "Preço Mais Baixo”, embora, conforme previsto por lei, haja também o da "Proposta Economicamente Mais Vantajosa”, onde além do preço são indicados outros factores que podem afectar a escolha de uma dada proposta.


Em que circunstâncias a mesma chega a representar poupança?
A questão da poupança tem a ver com aquilo que é o valor estimado em relação ao valor contratualizado. Ou seja, a diferença entre o valor inicialmente planificado para determinado contrato e o que foi contratado, que poderá daí resultar ou não em poupança. Por exemplo, até à presente data foram tramitados 20 procedimentos por via do portal das compras públicas, sendo que a média dos 18 em que ocorreram adjudicações demonstraram um nível de poupança de 32 por cento, equivalente a aproximadamente 99 milhões de kwanzas. Portanto, com vista a se conseguir maiores poupanças, e tendo em consideração os outros ganhos já demonstrados (como transparência, concorrência e eficiência), recomendamos vivamente às EPC o uso reiterado de procedimentos electrónicos.

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