Cultura

Uma conversa com Ruy Duarte de Carvalho

Foi em 1982 que conheci o Ruy Duarte de Carvalho (1941–2010). Eu era um estudante universitário que do Lubango regressava a Luanda. Andava mergulhado em inquietações existenciais e literárias. Fui sendo conduzido à exploração dos caminhos do cinema e de outras linguagens. Daí resultou uma amizade que deu origem a muitas conversas.

25/04/2021  Última atualização 10H26
© Fotografia por: DR
Luís Kandjimbo – Boa noite. Trazemos hoje à conversa um escritor, um dos mais importantes poetas angolanos da sua geração cujas ocupações criativas cobrem o cinema e a literatura. Mas ultrapassam estas duas dimensões para tocar também o discurso científico no domínio da Antropologia. Trata-se de Ruy Duarte de Carvalho. Seja bem-vindo. Vamos falar da tua obra, da poesia, do teu discurso que anda à volta da ficção narrativa, eventualmente, de outros domínios. Por exemplo o cinema e a antropologia.
Ruy D. Carvalho
– Boa noite. Obrigado.


LK –Um leitor mais ou menos atento, como pelo menos procuro ser, constata que a tua obra é polifónica. Apresenta-se como um vasto discurso que vai do ensaio, passando pela ficção narrativa, pela poesia. E, enfim, vai tocando, mais ou menos todos estes domínios, concentrando-se numa obra apenas. Qual o género que merece a primazia?
RDC
– Ora, julgo que não há grandes dúvidas a esse respeito. Aquilo que eu valorizo mais pessoalmente, embora às outras expressões eu dedico um empenho tão grande como à poesia, é sem dúvida a poesia. Acho que é aquela expressão que eu valorizo mais, levo mais a sério. E pela qual respondo, sem hesitação nenhuma, como sendo aquela que, realmente, talvez esteja a accionar todas as outras. Embora nem sempre esteja presente, é sem dúvida a poesia.


LK –Sendo a poesia, constato que há uma preocupação permanente com a busca de referências que ilustrem a pertença a determinado espaço físico e social. Há uma geografia. Isto é, a geografia deste país?
RDC
– Enfim, é uma coisa que não me ocorre enquanto a estou a produzir. Mas que deve estar implícito. Se eu for chamado a pensar no assunto, se tivermos em conta que realmente está associada a vários lugares, sim é verdade. E não só apenas a lugares físicos. Disseste com propriedade a lugares sociais. Enfim, e a lugares interiores também que, se se der conta - estou neste momento a pensar no assunto não é? - vai ser possível assinalá-los também. Meia dúzia de referências que voltam a aparecer em cada livro, e que correspondem realmente a lugares geográficos, a lugares sociais, culturais, etc. Mas também a lugares interiores. Sim, acho que tens razão. A minha produção está ligada à noção do lugar, à noção de espaço. São noções que me são extremamente importantes e caras.


LK – Por essa razão, para além da primazia que a poesia tem na produção criativa de um poeta, creio que há também, mais ou menos circunscrito a tudo isso, preocupações de ordem ética. Quer dizer, se por um lado é o poeta que está a tirar o máximo de rendimento daquilo que a realidade proporciona, há também uma postura que se traduz através de uma ética, numa forma de estar na vida.
RDC
– Sim, sem dúvida. E ainda bem que isso emerge daquilo que eu faço. Há sim. Enfim, sem entrar em grandes especulações filosóficas, se nós referirmos a ética ao conjunto de códigos, a um código de comportamento, de relação com a sociedade e com o mundo, de maneira que os comportamentos individuais não colidam com os interesses que excedem o indivíduo, sim senhor! É uma coisa que, desde sempre me assiste. Não faço um grande esforço para me situar desta maneira. Corresponde ao meu comportamento espontâneo e é muito natural que isso se revele na produção literária ou mesmo a produção escrita, que não tem tanto a ver de literário. Esse seria o aspecto da questão. Enfim está-me a ocorrer neste momento, que se referia à minha relação com o mundo, mas eu acho que também pode ser, enfim, se enveredarmos por esse caminho, pode ser levado mais longe: à minha própria relação com a deontologia da prática, que também pode ser encarada do ponto de vista ético. Há um respeito pela própria matéria com que se trabalha e os próprios instrumentos.


LK – Este respeito verifica-se e remete, por exemplo, para a coisas que têm a ver com o tratamento de situações, episódios, acontecimentos e personagens. Estou a lembrar-me por exemplo de "Como se o Mundo não Tivesse Leste”, que é um livro longínquo que está lá para a década de 70, mas igualmente num livro mais recente "Vou lá Visitar Pastores”. Esta preocupação ética com a matéria com que se trabalha, está presente.
RDC
– É. Voltamos à mesma questão, à circunstância da escrita, à referência do lugar. A escrita de alguma forma é o lugar que me coloca em relação com o resto do mundo. E aí, enfim, há normas que assistem a essa relação. Em relação aos tais personagens e como referes, por exemplo, neste livro do "Vou lá Visitar Pastores”, que é o resultado de uma relação estreita, continuada, prolongada e exaustiva, com sujeitos da prática social angolana, é evidente que ele seria pouco adequado, pelo menos, se eu não tivesse em conta as pessoas, quando estão a conversar comigo e quando fazem confiança em mim. O que me permite extrair do discurso deles e da informação que eu recolho, dos elementos que eu introduzo, extrair versões das colocações deles nos problemas que não os traiam. Agora, quer dizer, independentemente disso também há a minha própria versão das coisas que eu tenho que introduzir e que está informada pela minha preocupação pelas leituras, pela informação, pela formação, etc. É desse jogo que acaba por resultar essa noção que me agrada, que seja evidente, de que realmente há um rigor grande. Há um rigor em relação à escrita, não confundir as escritas, porque há escritas demonstrativas, há escritas exploratórias. Eu posso dizer assim, há escritas criativas. Não é a mesma maneira. Quando eu quero demonstrar qualquer coisa, um argumento, uma tese que eu quero demonstrar, a linguagem não é a mesma de quando eu me deixo envolver e conduzir por um discurso poético, ou que não se faça recurso à fantasia e à imaginação, e a esse andamento não resulta poesia. Pode resultar um texto demonstrativo sob a forma poética, que depois nem é texto demonstrativo nem é texto poético, enfim, espero não estar a complicar.


LK – Estás exactamente a ir ao encontro do que estou a levantar. E eu associo ainda estas questões a uma outra dimensão da tua obra. Tem a ver com a exploração das propostas que decorrem daquilo que pode ser considerado como literatura oral, a tradição oral. A tradição oral parece-me ser para ti um mundo com o qual estás em permanente diálogo. Parece-me haver da tua parte um grande respeito neste capítulo.
RDC
– Há. Decorre de uma prática, de um convívio muito estreito com situações destas que excedem de longe as minhas preocupações literárias, que se inscrevem nas minhas preocupações profissionais, e que se inscrevem nas minhas preocupações cívicas. Desde muito novo que a minha actividade profissional, a minha colocação mesmo na realidade angolana, é feita através de um contacto muito estreito com populações que desconhecem a escrita. Ora, isso cria um abismo. Se o meu instrumento de trabalho é a escrita, eu trabalho com populações que desconhecem a escrita, enfim, ocorreu-me ao longo da vida ir encontrar as plataformas que podem assegurar a ponte entre a minha relação e a minha produção. Por outro lado, desde muito cedo que me preocupam as maneiras como será possível discernir os universos conceptuais e os universos expressivos de populações que não conhecem a escrita e que muitas delas se exprimem em línguas que nem sequer são a minha língua materna. Ora, o que me ocorreu –   ao longo da minha prática de escritor, de poeta, sobretudo, e noutros domínios –  é tentar encontrar a maneira de eu poder conjecturar como é que esses sujeitos elaboram os seus discursos. E quando eu acho que consegui realmente –  enfim, de alguma forma, e que tem sido, tem sofrido alterações, tem sofrido perturbações –  foi quando eu achei que poderia, e isso acontece nalguns livros, produzir textos, que são imediatamente conotados com a tradição oral. E que saíram completamente do meu imaginário, que não se referem a nenhuma fonte que eu tenha recolhido e trabalhado antes.  São o produto do meu labor criativo e quando eu dei conta, uma coisa que poderia ter perturbado outro autor, a mim não me perturbou. Acho que digeri como me convinha, quando eu percebi que alguma da minha produção, "Sinais Misteriosos” por exemplo, era entendido como correspondente a laborações sobre testemunhos da tradição oral que eu tinha recolhido. E eu sabia que não. Eles tinham saído todos da minha própria lavra. Fiquei muito tranquilo porque realmente estava a produzir, eu, tradição oral. Enfim, quer dizer, não vou depois explicar como fiz. Mas esse tipo de equívoco que poderia perturbar outros autores, a mim não me perturbou nada. Deixou-me foi muito tranquilo, porque realmente aquilo que eu me propunha alcançar estava ali em evidência. Às pessoas custava era a admitir que aquilo fosse da minha inteira lavra. Não podiam entender sem atribuir uma retaguarda e a retaguarda não existia. Existia uma retaguarda vaga, geral. Mas que não se referia àqueles textos, àquelas imagens, àquelas metáforas, àquelas articulações das referências.


LK – Eu referi há instantes o facto de, sob o ponto de vista histórico e literário, pertenceres à geração de 70, e pretendi com isso também dizer que afirmas-te como poeta, com uma obra que reputo ainda hoje como fundamental. Trata-se de "Chão de Oferta”. O que parece ser, digamos assim, o livro que lança o programa teu poético e que mereceu um prémio em 1972. Há circunstâncias que associas concretamente a produção deste livro?
RDC – Há-de haver sem dúvida. É um livro distante e que se eu me detenho nele, nomeadamente um período na minha vida que pouco tem a ver com o que se passa hoje, já foi há muito tempo. Em termos da minha história pessoal e em termos da história dos tais lugares que me enquadram. Sim, de facto é um livro que, de alguma forma, já define os lugares que vão, à posteriori, levar a essa conclusão, aos lugares. Outra vez geográficos, cívicos, ideológicos, se quiser, acabam por estar ali definidos.
Quer dizer, de alguma forma, explicam também como é que a poesia passou a fazer parte da minha vida. Eu não parti exactamente, enfim, do culto da poesia para a produção de poemas. Para a produção de poemas eu parti do meu fascínio perante aquilo que a realidade me oferecia. E a comunicação que entretanto a minha vida me facultava com elementos perfeitamente palpáveis e físicos como é a terra, a água, o ar e o fogo, e coisas dessa natureza. Julgo que isso está lá. Estávamos num período, enfim, estávamos no último período do tempo colonial. Havia coisas que só não via quem estivesse completamente distraído. Eu passei um período muito rico emotivamente da minha vida nessa altura. Por implicações de outra ordem, que não é oportuno, nem tem interesse falar aqui.
Mas porque estava a trabalhar no plateau de Benguela, onde eu ainda hoje não posso deixar de circular. E, portanto, tomei contacto com coisas de grande força telúrica, etc. E foi aí que a poesia começou a ocupar-me, de uma forma muito emotiva e apaixonada. É evidente que não contam os poeminhas da adolescência, li outro dia não sei onde. Acho que é interessante saber, que realmente até aos 20, 25, todos nós somos poetas. Ver se alguém é poeta, daí para a frente, e se com 50 anos continua a produzir poesia, porque realmente essas aventuras poéticas ocorrem na extrema juventude. E é interessante, pois, esse livro também não me aconteceu nessa extrema juventude, eu tinha mais de 30 anos. E pronto, realmente, inaugura uma produção.

 * Ensaísta e professor
universitário

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