Sociedade

Uma flor pelo Dia do Pai

Osvaldo Gonçalves

Jornalista

Por causa da pandemia causada por esse novo coronavírus, chamado Sars-Cov-2, estou há meses quase sem sair de casa e aqui permaneço, com o tempo repartido entre o computador, a televisão, a música e os livros. Ao quintal, já só vou para cuidar das plantas e dar de comer e beber aos animais.

19/03/2021  Última atualização 07H00
Já pensei em mandar levantar muros com dois metros de altura, encimados por coroas de vidros partidos e concertinas de arame farpado, para evitar visitantes indesejados, e instalar um sistema de rega e outro de iluminação com tudo accionado a partir da pequena mesa de trabalho.
Também tive a ideia de mandar construir um subterrâneo. A ideia surgiu aquando de uma visita à cidade do Cuito, Bié, após o cerco das forças da oposição, durante o conflito armado. Com um colega, fui a uma casa onde vendiam kachipembe.

A bebida que ali se vendia fora-nos referenciada como sendo de boa qualidade, utilizada mesmo como álcool, até para desinfectar os fios de pára-quedas utilizados nas suturas. Os dois fomos levados para um pequeno abrigo, utilizado pela família para fugir aos tiros e explosões.
Na altura, várias residências na cidade do Cuito tinham bunkers como aquele, cavado no meio do quintal, com a areia das paredes suportada por estacas, uma esteira no chão e uns bancos desengonçados para os clientes se sentarem.

O líquido da primeira garrafinha era demasiado fraco e cheirava a fumo. Reclamamos e deram-nos outra com kachipembe "das ponteiras”. Após alguns goles em latinhas de leite condensado, utilizadas à moda de copos, já as línguas corriam mais soltas, embora quem nos ouvisse fosse bem capaz de notar algum arrastar das palavras.

Vários esboços, alguns passados a tinta-da-China em papel quadriculado, a lembrar os tempos da escola, mostravam quanto tempo estivera empenhado em levar adiante a ideia. No início, planeara construir uma espécie de refúgio, com espaço para uma mesa de trabalho e um pequeno divã.
Mas, aos poucos, o projecto foi ficando maior e até já ali imaginei um lava-louças, um frigorífico, um fogão, um aparelho para ouvir música, uma estante para livros e discos, um WC privativo.

Na parede da sala, um pequeno quadro chamaria a atenção dos visitantes, se os houvesse. É uma lembrança oferecida há muitos anos pela minha caçula, pelo Dia do Pai. Em letra de menininha, diz: "És o melhor pai do Mundo e sempre vais ser. Mando-te uma flor”.
Nestes tempos sofridos, em que estou há meses quase sem sair de casa, às vezes acho-me perdido a olhar para o quadro, a resmungar que este ano será difícil celebrar o 19 de Março, Dia do Pai.

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