Opinião

Valores sem valor

José Luís Mendonça

Existe, aqui e agora, um conceito de valor muito generalizado e actuante.

23/03/2021  Última atualização 09H45
Quase toda a gente diz "não tenho valores para o táxi, não tenho valores para pagar o estágio, não tenho valores para a renda da casa, não tenho valores para os medicamentos.” Cá está uma palavra da língua oficial que, não só adquiriu uma nova conotação sócio-económica, como criou, no subconsciente colectivo, uma auto-desvalorização de sentido mais lato de valor.

O conceito mais alto de valor que se propagou a partir do fim da segunda Grande Guerra é o da dignidade da pessoa humana, um século antes proposto por filósofos da craveira de Immanuel Kant.
Hoje por hoje, porém, temos as pessoas da rua, do funcionalismo público e até gente da alta roda a proferir sem qualquer pejo a palavra valores (geralmente é no plural, o que agrava ainda mais essa meta-desvalorização) referindo-a única exclusivamente ao dinheiro. Estamos, com esta frequência pejorativa do conceito de valor, a fazer definhar ou reduzir ao dinheiro o sentido fundamental do termo.

Este vector da monetarização do pensamento é uma excrescência, um tumor nascido da crise global do liberalismo, na sua etapa mais avançada de bancarização da sociedade humana. Hoje em dia, o valor mais alto já não se insere nas qualidades morais ou intelectuais do homem. A qualificação do homem do século XXI é determinada pelo seu peso financeiro.

Sem dinheiro ninguém vive. Nem os padres. Quem conhece o poema O Dinheiro, do poeta português João de Deus? Começa assim: "O dinheiro é tão bonito, /Tão bonito, o maganão!”
O dinheiro é mesmo muito bonito e brincalhão, como diz João de Deus no poema. Brinca tanto com a nossa vida ao ponto de criar uma divisão social tão profunda entre ricos e pobres.
É assim o dinheiro. Tão bonito e maganão que até ampliou o campo da representação semiótica do seu objecto, através do fenómeno da associação mental, ao ponto de apagar os outros sentidos do termo valor.

Assim vai a nossa sociedade. Cheia de valores esquecidos no subconsciente dos mais velhos reformados ou nas lápides dos campos santos. Valores que se perdem a cada dia que passa. Até porque, mesmo os discursos de alto nível e que ajudam a moldar as consciências, estão eivados da substância e do cheiro dos recursos financeiros, do OGE, dos biliões expatriados, dos milhões para o lixo, para erradicar a pobreza, diversificar a economia, a cabeça do cidadão frente aos ecrãs da televisão acaba o dia cheia de milhões de kwanzas em palavras ditas, escritas e ensaiadas pelos planificadores financeiros da nossa economia.

Mas, estarão única e simbolicamente contidos no kwanza todos valores da nova era inaugurada desde o ano 2000?
Qual o lugar da afectividade, da solidariedade, do respeito pelos mais velhos, neste impressionante século XXI, em que o retorno ao recurso à força pelo cidadão comum nos espaços vitais da sociedade civil é a tónica dominante?

No final da semana passada, circulou no WhatsApp o lamento do Sr, Vidinhas, um mais-velho de 70 anos, espancado sem apelo nem agravo no seu local de trabalho, por um jovem musculado. Está o pelouro da Saúde a tentar proteger os mais velhos com a vacina anti-Covid para quê, se podemos sucumbir à porrada quando menos esperamos? Onde está o respeito pelos nossos kotas, valor mais precioso que os valores para pagar o candongueiro?

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