Sociedade

Vento castiga desalojados da Ilha de Luanda

Rui Ramos

Jornalista

Fernando Pinto já foi pescador artesanal na Ilha de Luanda, exactamente no bairro Benfica da Ilha, perto do antigo Hotel Panorama. Há 12 anos, numa tarde de sexta-feira do mês de Abril, corria o dia 17, sem pré-aviso, apareceram dezenas de tractores, enquadrados por numerosas forças policiais, para demolirem o bairro e desalojarem os seus moradores, enviando-os, sem recurso, para um vasto local ermo, a que chamavam Zango 1, no município de Viana, em Luanda.

10/03/2021  Última atualização 08H05
Apesar das imensas dificuldades crianças podem aprender a ler e escrever © Fotografia por: Rui Ramos | Edições Novembro
Foi num local quente e desolado, sem vegetação, que Fernando Pinto, de 47 anos, recebeu o Jornal de Angola, em reportagem sobre os estragos causados pela ventania que varreu Luanda no último sábado.
As chapas finas e envelhecidas, agarradas a panos já muito gastos, foram arrancadas pela ventania, deixando muitos moradores sem tecto.

"Vivemos aqui nestes casebres de chapa e de panos porque nos expulsaram, à força e de repente, numa sexta-feira, às 15H00, alegadamente por ordens do Governo Provincial e da Administração da Ingombota”, disse, entristecido, o antigo pescador, para acrescentar: "Eu tinha três embarcações e dava emprego a 20 trabalhadores, de repente ficámos sem nada.”

Com quatro filhos, Fernando Pinto guiou-nos pelos becos tortuosos de areia e aqui e ali espreitam-nos, no escuro, rostos endurecidos.
"Lutei muito, nunca nos responderam, até à Assembleia Nacional tentámos recorrer, em vão, nunca nenhuma autoridade local nos visitou, nunca ninguém nos ajudou até hoje”, prosseguiu Fernando Pinto, que informou que regularmente consegue ir até à Ilha para tentar pescar e dar de comer à família, embora tenha sido despojado de todos os seus bens. "Para ir à ilha tenho de ter valores para o transporte, não é fácil, eu não tenho emprego, sou um quadro qualificado da pesca, mas isso não conta, há 12 anos pareço um cão vadio.”

Semelhante a uma paisagem do fim do mundo, o amontoado de casebres de chapa alberga mais de três mil famílias, uma comunidade que pode chegar a mais de dez mil pessoas, a maior parte arrastando-se sem emprego.
"Não temos água corrente, compramos os bidões a 50 ou 75 kwanzas, não conseguimos tomar banho numa zona extremamente quente e árida”, disse Fernando Pinto.

Escolas improvisadas  

Dezenas de crianças jogavam futebol com uma bola improvisada. O Jornal de Angola questionou Fernando Pinto sobre as escolas: "Não há escolas públicas para as mais de quatro mil crianças e jovens e os pais não podem pagar colégios”, informou o antigo empresário da pesca. "Temos somente uma pequena escola, criada e dirigida pelo professor Américo Freitas, e outra pelo professor José Chimuco Xicuamanga”.

O Jornal de Angola visitou as duas pequenas e improvisadas escolas de chapa do Zango 1. Américo Freitas dirige a pequena escola de Santo Irineu onde, antes da pandemia, estudavam 126 alunos, agora reduzidos a cerca de 90.
"A escola não tem reconhecimento oficial, é uma obra particular e debatemo-nos com muitos problemas, pois temos cinco jovens professores, que leccionam até à 6ª classe, e eles têm de receber algum rendimento”.
Não é fácil, reconhece o jovem professor. "Os pais não têm 500 kwanzas para pagar  mensalmente e nós não temos coragem de cobrar, porque sabemos que nada têm”.

Um improvisado campo de futebol, onde duas equipas de jovens sem aulas levavam a sério um encontro sem marcações no chão, mas com regras, separava-nos de outra parte do bairro, onde o professor José Chimuco Xicuamanga, natural de Chipindu, Huíla, recriou uma escola, depois de ver a sua na Ilha completamente destruída pelos tractores do Governo Provincial, para aí ser construído um bairro para a classe média.

"Eu era o dono de uma escola evangélica, no bairro Benfica, na Ilha, a seguir ao Hotel Panorama, leccionava cerca de mil alunos e, de repente, numa sexta-feira, vieram os tractores e demoliram toda a minha escola, um rés-do-chão e um primeiro andar”.
Com 58 anos de idade, José Chimuco evidencia-se pelo uso de vocabulário de qualidade, próprio de um professor antigo e profissional. "Eu era proprietário de seis casas, não era um Zé-ninguém, eu era o dono daquela escola e tinha mais seis casas, minhas propriedades, fiquei sem nada naquela sexta-feira à tarde, não por força das calemas mas pela força dos tractores, e despejaram-nos num lugar vazio, este, um deserto, onde tivemos de construir, com as nossas próprias mãos, estas casas, buscando chapas e panos, que esperamos não venham também demolir”.

O professor José Chimuco Xicuamanga, um rosto que parece de pedra, olha em frente e é determinado quando diz à nossa reportagem. "Na semana passada tivemos aquele vento, fugimos com os nossos filhos para a rua, porque as chapas estavam a saltar e a voar, as casas eram perigosas, mas logo que o vento acalmou avaliámos os prejuízos e começámos a martelar, a endireitar, as casas mais atingidas com prejuízos e com dramas humanos são pelo menos dez”, disse o professor, que construiu do nada uma escola de chapas, com salas de aula, sala de professores, gabinete da direcção e lavados separados para alunas e alunos.  

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