Especial

Em memória de Henrique Santos Onâmbwe e Hermínio Escórcio

Por estes dias novembrinos, as nossas mentes regressam inevitavelmente àquele final do ano de setenta e cinco do século passado, em que o País nasceu e o povo se vestiu de soberana nova dignidade. Nesta altura é recorrente o apelo, sobretudo dos que nasceram muitos anos depois, para que os mais velhos falem do que viram, ouviram e sentiram naqueles tempos gloriosos. De facto, a história faz-se de muitas histórias, assim como “de todos se faz um País”, na bela síntese de Óscar Monteiro. E a todos incumbe um imprescritível dever de memória, para que a história não se apague ou deslembre.

12/11/2023  Última atualização 06H40
O nacionalista Hermínio Escórcio Faleceu em Setembro, na África do Sul, aos 88 anos © Fotografia por: DR

Por mim, já por diversas vezes e fóruns vários tentei cumprir aquele dever, dando o meu testemunho sobre a saga do caminho para o 11 de Novembro, sobretudo dos derradeiros meses até lá e a explosão do «dia inicial, limpo e inteiro» e também fundacional, retomando o famoso verso de Sofia Breyner Andersen sobre o 25 de Abril.

Este ano, por esta altura, deu-se a triste coincidência de terem partido do nosso seio, a espaço de dias, duas personalidades com quem me cruzei naqueles tempos e que se cruzaram de uma forma marcante e indelével no nascimento da República Popular de Angola. Refiro-me ao Camarada Hermínio Escórcio e ao Comandante da guerrilha Henrique Santos Onâmbwe, um, falecido como Embaixador, outro como General reformado. São dois nomes que ninguém, com justiça e recta intenção, poderá apagar da história moderna de Angola.

No tempo do Governo Provisório da Junta Governativa de Angola, chefiada pelo Almirante Rosa Coutinho (Junho de 74 a Janeiro de 75), eu fui requisitado, pelo MFA, para o Gabinete do Comandante Jesuíno, que tinha o pelouro da informação. Trabalhando no Palácio do Governador, rapidamente passei a relacionar-me com os órgãos de informação, "fazendo a ponte”, como angolano, entre a estrutura governamental e os diferentes movimentos democráticos (em que se destacava o MDA, da Dra. Medina, Drs. Eugénio Ferreira, Antero de Abreu e Albertino Almeida) e, sobretudo, com o MPLA, principalmente através dos seus dirigentes representantes "do interior”, a maior parte dos quais acabados de sair dos campos prisionais de S. Nicolau, Missosso e Tarrafal. É aqui  então que surge, com papel relevante, o Hermínio Escórcio. Conheci-o pessoalmente por volta de Setembro/Outubro de 74, aquando da preparação da ida da delegação portuguesa da Junta Governativa para o Leste de Angola, onde nas chanas de Lumeji, em 22 de Outubro, foi acordado e assinado a cessação das hostilidades entre o Exército português e o MPLA. Hermínio Escórcio, a par de Lopo do Nascimento e outros dirigentes "do interior”, integrou essa histórica delegação, embora na fotografia, apareça humildemente atrás, como era seu timbre. Curiosamente, uns meses depois, viria a conversar largamente com o Escórcio, cada um contando peripécias da sua vida, a bordo do avião da Força Aérea Portuguesa, que foi de Luanda a Lusaka para buscar Agostinho Neto e Savimbi e dali voar para o Alvor. Como habitualmente, mais próximos de Neto estavam Hermínio Escórcio e o seu secretário pessoal Afonso "Mbinda”. Cabia ao Escórcio vir à parte traseira do avião, onde estavam os jornalistas, que eu bem conhecia, e orientar o encaminhamento deles até ao assento de Neto, para colher as suas declarações. Já uns meses mais tarde, com o Governo de Transição a funcionar e o Ministério da Informação a promover os primeiros passos da nossa Televisão, foi o Escórcio que me acompanhou, e a dois técnicos da então nóvel televisão angolana, para instalarmos um aparelho de televisão na humilde residência de Agostinho Neto, no Bairro do Saneamento.  Essa tarefa de ir «plantar» a TV pela cidade, haveríamos de a fazer mais tarde, no Ministério da Informação, a 9 e 10 de Novembro de 75, instalando 400 aparelhos nas Comissões de Bairro, numa operação coordenada com o Escórcio e com o Beto Van-Dúnem, e, pelo Ministério, Aristófanes Couto Cabral, a fim de o povo poder assistir à Proclamação da Independência.

Conheci Henrique Santos Onâmbwe no dia 8 de Novembro de 1974, no Aeroporto de Luanda, quando ele chegou integrando a primeira delegação do MPLA a vir para Angola, chefiada por Lúcio Lara. Era um mar de gente, só superado pela chegada de Neto no 4 de Fevereiro seguinte, mas eu, com os privilégios de quem trabalhava no Palácio, lá me consegui abeirar dos heróicos "combatentes vindos da mata”… Depois, pela circunstância de eu morar perto, na mesma rua, do Onâmbwe (e também do Lúcio Lara e do Dilolwa), mas sobretudo porque ele rapidamente se integrou na vida luandense, encetando inúmeros contactos e relações com os intelectuais, por assim dizer, da família do MPLA, o meu relacionamento com ele estreitou-se. E ainda mais, depois do Alvor, com a instalação do Governo de Transição, tripartido (ou melhor quadripartido, porque para além dos três Movimentos havia também no Governo representantes de Portugal), para o qual o MPLA indigitou Onâmbwe como secretário de Estado do Interior e Manuel Rui Monteiro como ministro da Informação. Com gabinetes no Palácio ou próximo, à volta dos ministros Manuel Rui, Diógenes Boavida, Carlos Rocha Dilolwa e Onâmbwe, vários juristas, como o Aníbal Espírito Santo, a Paulette Lopes, Antonieta Coelho, Adérito Correia, o autor destas linhas e os "mais velhos” Maria do Carmo Medina, Eugénio Ferreira e Antero de Abreu assessoravam empenhadamente aqueles dirigentes, no domínio do Direito. Desde muito cedo que todos nós nos apercebemos de um grande interesse e uma particular inclinação e sensibilidade do Onâmbwe – ele que era um geólogo de formação – para as coisas do Direito e da Justiça. Aliás, não por acaso, ele veio mais tarde, depois da Independência, a desempenhar, no Secretariado do MPLA, a função de coordenador do Departamento de Estudos Jurídicos do Comité Central, empenhou-se decisivamente  na criação da nossa Faculdade de Direito e, como deputado à Assembleia do Povo, presidiu a Comissão de Assuntos Jurídicos e Constitucionais, a qual levou a cabo algumas das revisões constitucionais e variada legislação, salientando-se o novo Código da Família, que hoje permanece em vigor. Ainda em 1976, teve um papel importante na preparação e realização do julgamento dos mercenários em Luanda, o primeiro julgamento deste género na história, com uma grande repercussão nacional e internacional.

Dados os primeiros passos na transição, o conflito interno agudizou-se dramaticamente na capital (começando pelo que se chamou a "batalha de Luanda”, em 9 de Julho) e por todo o País. As principais forças da FNLA e da UNITA saem de Luanda em meados de Julho; em 30 de Julho o então Alto Comissário General Silva Cardoso demite-se e é substituído pelo Almirante Leonel Cardoso; em 12 de Agosto, os Ministros do Governo de Transição da FNLA e da UNITA abandonam Luanda e os seus cargos e, finalmente, em 22 de Agosto, é publicado pelo Alto Comissário o Dec.-Lei nº 458/A-75, que procede à suspensão parcial do Acordo de Alvor, "ficando transitoriamente suspensa a vigência do Acordo no que diz respeito aos órgãos de Governo de Angola”. Porém, nem esta suspensão legal por parte da potência colonial administrante, nem pela postura e comportamento dos três Movimentos e de todo o Povo Angolano, alguma vez se pôs em causa o facto definitivamente adquirido no Alvor de que a Independência haveria de sobrevir a 11 de Novembro desse ano. Daí que, logo a partir de Setembro/Outubro, o MPLA (e certamente também os outros dois Movimentos) começou a trabalhar na preparação dos instrumentos legais fundadores da Independência que se avizinhava. Tudo isto se processou aceleradamente, no meio da voragem das batalhas e vicissitudes do conflito armado que, entretanto, se generalizara (a invasão e ocupação ao Norte pelas tropas do Zaíre e do ELP português e a invasão da parte Sul do País, ocupação e progressão do Exército sul-africano); das tentativas de solução bilateral entre os Movimentos (encontro entre Lopo do Nascimento e José Ndele, em Lisboa, em 25 de Agosto); diversas intervenções diplomáticas africanas, desde a visita a Angola de uma delegação da OUA, em 20 de Outubro (em que eu, na emergência até servi de chofer a uma delegação dum país africano, para espanto dos integrantes da mesma que, na língua deles comentaram «estes tipos estão avançados, até põem os brancos a conduzir»…), até à Cimeira da OUA, realizada in extremis  em Kampala, em 2/4 de Novembro. Entretanto, as colónias irmãs ascendiam à sua Independência: Moçambique, a 25 de Junho, Cabo Verde, a 5 de Julho; S. Tomé e Príncipe, a 12 de Julho. Em Angola, a par das sucessivas batalhas e ocupações no terreno, assistia-se ao gigantesco êxodo humano da "ponte aérea”, em que, entre 17 de Julho e 31 de Outubro, abandonaram o País cerca de trezentas mil pessoas (oficialmente, 235.315 para Portugal, 30.000 para a África do Sul e 17.000 para o Brasil). Dizia-se na altura, e era verdade, até os empregados de café e os coveiros foram-se embora. Com esta dimensão, a paisagem humana modificava-se radicalmente, num curtíssimo espaço de tempo.

Do nosso lado, muitos e bons quadros engajavam-se, de corpo e alma, nas mais diversas tarefas da corrida para a Independência. Recordo-me, por exemplo, do Luís Filipe Colaço passar dias no Aeroporto, a receber delegações de países africanos que depois, com o Hermínio Escórcio, iam levar até ao Presidente Neto. Entretanto, o conflito militar agudizava-se por todo o País, à medida que o dispositivo militar português se ia retraindo. Naquela altura, lembro-me que recebíamos, "à sucapa”, da parte do MFA, através de um oficial da Marinha Portuguesa, quase diariamente, os relatórios da observação aérea que a força aérea portuguesa fazia da localização e movimentação das tropas da UNITA e da FNLA, sul-africanas e do ELP e zairenses ao norte. Esses relatórios eram passados ao Onambwe que prontamente os levava para o Estado-Maior das FAPLA.

Na incerteza da realidade que mudava a cada instante, obrigando a quase uma "navegação à vista”, pelo lado do MPLA foi-se trabalhando na preparação daqueles instrumentos fundamentais, a saber, a Constituição e a Lei da Nacionalidade, o texto solene da Proclamação da Independência e a confecção dos símbolos do novo Estado. Essa tarefa foi obra de um núcleo muito reduzido de dirigentes e militantes e desenrolou-se, principalmente, num marco espacial centrado na Cidade Alta, no Palácio do Governo, onde funcionavam o Alto Comissário, o Colégio Presidencial (entretanto reduzido a um membro, Lopo do Nascimento), o Ministério da Informação e o Ministério da Justiça, e o adjacente Bairro do Saneamento, por detrás do Palácio. Aí residiam os ministros, nomeadamente Manuel Rui Monteiro, Carlos Rocha Dilolwa, Saydi Mingas e Augusto Lopes Teixeira (alguns ministros da UNITA e da FNLA já tinham abandonado as suas casas vizinhas, saindo de Luanda). O "trabalho de casa” foi feito, literalmente, na casa do Manuel Rui, onde, pela noite adentro, encontravam-se ou apareciam juristas como a Dra Antonieta Coelho, o Dr. Aníbal Espírito Santo e o Dr. Orlando Rodrigues, dirigentes como Lúcio Lara, Lopo do Nascimento, Saydi Mingas e Henrique Santos Onâmbwe. Bem próximo, solitariamente na sua casa, Dilolwa esboçava o que viria a ser a parte económica da Constituição, concertando-se com Saydi Mingas. Nos últimos dias, também deu o seu sábio contributo o Dr. Óscar Monteiro, jurista moçambicano que, seu amigo pessoal e colega na Faculdade em Coimbra, estava alojado na residência do Manuel Rui. Por outro lado, a Lei da Nacionalidade que, no essencial recolhia o acordado em Alvor e, mesmo antes, em Mombaça – a consagração do ius soli -, ia sendo preparada no gabinete do Dr. Diógenes Boavida, já então Ministro da Justiça, com a colaboração principal do Dr. Antero de Abreu, Dra Maria do Carmo Medina e o chefe de Gabinete Dr. Aníbal Espírito Santo.

Naquelas longas e tensas noites, e também no mesmo local, trabalhava-se na feitura dos símbolos da futura República: o hino "Angola Avante”, em que à bela letra do Manuel Rui se juntava, estrofe a estrofe, a harmonia dos acordes do Rui Mingas; a bandeira e a insígnia, com as ideias e desenhos iniciais do Henrique Santos "Onambwe” e o traço esmerado do Marcos Almeida "Kito”, sob a supervisão do Hélder Neto. Quanto à insígnia, Onambwe contou-nos que, figurando num primeiro esquiço apenas o algodão e o café, Agostinho Neto pediu para se juntar o milho…não fosse a gente do sul considerar-se desconsiderada. Como é evidente, todos estes projectos eram depois levados à aprovação da direcção do MPLA, designadamente do Presidente Agostinho Neto, que se encontrava as mais das vezes no chamado "Estado Maior”, no Morro da Luz, na Samba. E o "estafeta” era normalmente o Dr. Manuel Rui Monteiro, o Onambwe ou o Hermínio Escórcio. Já a sua execução material era feita na Direcção-Geral de Informação do Ministério da Informação, no rés-do-chão do Palácio, então chefiada por Luís de Almeida, que viria a ser, mais tarde e por décadas, o decano dos Embaixadores angolanos. Foi no seu gabinete que se ultimou também o texto da "Proclamação da Independência”, cuja matriz inicial foi da autoria de Carlos Rocha Dilolwa, beneficiando dos contributos de Lopo do Nascimento, José Eduardo dos Santos e também, na versão "literária” final do Manuel Rui, do Orlando Rodrigues, da Paulette Lopes e de mim próprio. Numa entrevista que em vida deu ao Jornal de Angola, Escórcio contou que recebera o texto final da Proclamação das mãos de Paulo Jorge e foi entregá-lo na própria tarde do dia 10 ao Presidente Neto. Aprovadas, por aclamação, pelo Comité Central do MPLA no mesmo dia 10 de Novembro, a Lei Constitucional da República Popular de Angola e a Lei da Nacionalidade, ainda nessa tarde houve que as dar à estampa na Imprensa Nacional, cujos tipógrafos estavam naturalmente a postos, de modo a que, no dia seguinte, fosse publicado o nº 1 do novo "Diário da República”. O que efectivamente veio a acontecer (embora com tantas gralhas que, logo no dia 12, saía uma extensa corrigenda no nº 2…). Esse nº 1 do novo jornal oficial da República estampava os dois documentos fundadores do novo Estado, a sua certidão de nascimento: a Lei Constitucional, vertida em sucintos mas fundamentais sessenta artigos, e a Lei da Nacionalidade, em oito curtos artigos, definindo a nova cidadania angolana.

Aquela mesma emergência marcou a confecção material da bandeira e da insígnia, que lestas costureiras, a Dona Joaquina da OMA e a Dona Sissi, esposa do Aristófanes Couto Cabral, faziam prontamente. O primeiro ensaio de entoação do Hino foi feito por um coro improvisado pelo Carlos Lamartine, na então Emissora Oficial de Angola, primeiro com Rui Mingas, Catila Mingas e o próprio Manuel Rui e depois com um grupo de jovens apressadamente encontrados para o efeito.

Ao meio dia do dia 10, o Alto Comissário Leonel Cardoso, num acto realizado no salão nobre do Palácio, para o qual convocara a imprensa, declarava solenemente que Portugal se retirava de Angola e "entregava a soberania ao Povo Angolano”. Foi a solução, algo ficcional, que em Lisboa o Governo português, largamente dividido sobre a situação em Angola, encontrou para se recusar a reconhecer formalmente o novo Estado e o novo Governo instituído na capital. Feita essa proclamação unilateral de uma independência difusamente sem destinatário, o Alto Comissário e o seu staff abandonaram o Palácio, apesar de tudo com alguma dignidade, dirigiram-se à Fortaleza, onde arrearam a "ultima bandeira portuguesa em solo angolano” e daí saíram para a base naval na Ilha de Luanda, onde embarcaram nas "últimas caravelas”, os navios "Niassa” e "Uíge”, duas fragatas e uma corveta. Por circunstâncias que não interessa agora revelar (fora incumbido por Onâmbwe de entregar a bandeira portuguesa arreada na base de Belas ao Tenente da Marinha portuguesa Soares Rodrigues, numa artimanha para obter uma preciosa informação…), tive a oportunidade de assistir à retracção do último dispositivo militar português em terra, ao longo da Ilha, e recordo o quadro ímpar a que assisti: quando entrei na base, ainda havia na porta de armas fuzileiros portugueses; quando saí, uma escassa meia hora depois, todos tinham embarcado, a porta de armas estava escancarada e as crianças e o povo da Ilha entravam por ali dentro, com manifestações indescritíveis de alegria. Sabe-se que, depois, num desígnio de afirmação mais simbólico do que real, os navios portugueses terão permanecido nas águas territoriais angolanas (que na altura tinham uma extensão legal de 20 milhas…) até às zero horas do dia 11. Mas a sede do poder, o Palácio, havia ficado vazia desde as catorze horas, entregue aos serventuários angolanos, mais velhos de impecável libré branco, os "criados do Senhor Governador”, chefiados pelo Senhor Gaspar. Mais tarde, Manuel Rui observaria: tudo guardaram religiosamente, não tocaram numa baixela de prata, nem um guardanapo surripiaram… Por volta das dezasseis horas, Hermínio Escórcio, com um pequeno destacamento das FAPLA que fora buscar à Vila Alice, tinha lá ido preencher esse vazio, assegurando depois, com o seu proverbial optimismo, de que "estavam criadas todas as condições” e de que "estava tudo no papo”… Cerca das seis da tarde, Manuel Rui dirigia-se à Televisão e aí fazia um apelo à serenidade para a noite que se avizinhava. E bem necessária era essa intervenção acalmante: chegavam à cidade os ruídos e os rumores da batalha em Kifangondo, no "Morro da Cal”, e muita gente tinha nos ouvidos o que, ainda nessa mesma tarde, ameaçava pela rádio Holden Roberto: "Estaremos em Luanda até à meia noite. Até logo, Luanda!”.

Todas as atenções, e todo o ajuntamento humano, convergiam para o Largo 1º de Maio (hoje, Largo da Independência) onde se iria passar o histórico acto. Entretanto, 400 aparelhos de televisão haviam sido instalados pelo Ministério da Informação nas Comissões de Bairro e outros locais públicos, em toda a cidade, principalmente nos musseques, para que toda a gente pudesse assistir em directo ao acontecimento. Antes de chegar ao Largo (mais precisamente ao pequeno palanque próximo situado do lado direito da Estrada de Catete), as três viaturas que conduziam o Presidente Neto e seus familiares, tendo saído do Futungo às 11 horas, andaram por ali perdidos e às voltas – é o relato de Maria Eugénia Neto –, até encontrarem a entrada para a tribuna, tal era a concentração e a confusão reinante no local. Mas, por fim, ao som da parafernália de tiros festivos disparados para o ar e dos cânticos e palavras de ordem difundidas pelos altifalantes, "às zero horas do dia 11 de Novembro”, tal como estabelecido no Acordo de Alvor, pela voz de Agostinho Neto, "em nome do Povo angolano, o Comité Central do Movimento Popular de Angola (MPLA), proclama solenemente, perante a África e o mundo, a Independência de Angola”. E logo a seguir irrompe uma estrondosa ovação quando Neto anuncia que "correspondendo aos anseios mais sentidos do Povo, o MPLA declara o nosso País constituído em República Popular de Angola”. A bandeira da nova República foi depois içada no mastro defronte à tribuna pelo pioneiro Dinis Kanhanga e pelo braço sobejante do Comandante do 4 de Fevereiro, Imperial Santana e é entoado, pela primeira vez em público, o "Angola Avante”.

Naqueles derradeiros meses, Carlos Lamartine andava a cantar "Dipanda Wondó Tula Kia”- a independência está a chegar… – e agradecia a Agostinho Neto. Agora, "com os olhos secos”, Neto por certo chorava interiormente de alegria por ver realizada a sua profecia do poema "Içar da Bandeira”, que escrevera em Agosto de 1960 na prisão do Aljube, em Lisboa. A velha Xica, do Waldemar Bastos, bem podia já dizer "posso morrer, posso morrer, já vi Angola independente!”. E os meninos do Huambo, do Manuel Rui, iam "aprender como se ganha uma bandeira” e "o que custou a liberdade”. Na histórica fotografia da tribuna da cerimónia, vêem-se os principais dirigentes do MPLA e, rodeando Neto, à direita, Hermínio Escórcio, Manuel Rui, Lara, Lopo do Nascimento e, à esquerda, Luís de Almeida, Iko Carreira, Xietu, Nito Alves e Lopes Teixeira, Paulo Jorge e Onâmbwe. Atrás de Neto, como sempre o seu guarda-costas pessoal, o simpático cubano Carlos.

O que se seguiu naquela noite, não estava inicialmente previsto: a ida ao Palácio. À última hora, entendeu-se que a tomada do poder implicava também a tomada dos símbolos do poder e, no caso, o derradeiro símbolo do poder colonial era precisamente o Palácio do Governo, de onde a colónia tinha sido dirigida durante séculos. Assim, pouco tempo antes da cerimónia terminar, o Onambwe pediu-me para eu ir para o Palácio "ver se tudo estava a postos para a recepção”, o que eu fiz, juntamente com o Hermínio Escórcio. Findo o acto, a comitiva do Presidente Neto e uma imensa multidão dirigiu-se para o Palácio. Na grande escadaria da traseira do mesmo (que não sei se se conserva actualmente), Hermínio Escórcio e eu recebemos um Agostinho Neto, com a sua habitual simplicidade e serenidade, que escondia a enorme emoção e felicidade. O mesmo com os serviçais do Palácio, perfilados, orgulhosos nos seus vistosos librés e luvas brancas. Hermínio Escórcio dizia-me "vês, Fernandinho (era assim que carinhosamente me tratava), eu bem te dizia que isto estava tudo no papo…”, frase em que habitualmente transbordava o seu proverbial optimismo.

Lá dentro, foi feito um brinde de champanhe, impecavelmente servido por aqueles que antes eram os "criados do Senhor Governador” e o Presidente Neto e comitiva foram à varanda principal e acenaram à multidão que ali chegara. Neto não falou na altura, apenas Manuel Rui improvisou, na sua proverbial verve poética, como já o fizera antes na tomada de posse do Governo de Transição: "Está definitivamente enterrado o tempo em que, das varandas dos palácios coloniais, erguidos com o trabalho forçado do nosso Povo, os sorrisos de ouro e os gestos de abastança procuravam disfarçar a fome, a usurpação e o genocídio. A máscara do colonialismo acabou”.

No dia seguinte, ao meio-dia, no salão nobre da então Câmara Municipal de Luanda, hoje sede do Governo Provincial, Lúcio Lara dava posse formal a Agostinho Neto, como Presidente da República Popular de Angola.  Assistiram ao acto representantes de 28 Países, 17 dos quais manifestaram de imediato a disposição de reconhecimento do novo Estado. Iniciava-se então a "batalha do reconhecimento” internacional, crescendo, dia a dia, os reconhecimentos dos Estados de todo o mundo. A potência colonial, que em 10 de Novembro havia "entregue a soberania ao Povo Angolano”, quando finalmente reconheceu a República Popular de Angola, uns meses depois, em 22 de Fevereiro de 1976, foi o 88º Estado a fazê-lo.

Mas a página da noite colonial fora definitiva e irreversivelmente virada, à custa de tantos e tantos que já partiram, mas que a Pátria não esquecerá, e de alguns que teimam em continuar entre nós, quarenta e oito anos depois.  Como no belo título do livro do nosso amigo moçambicano Óscar Monteiro, podemos bem dizer que "de todos se faz um País”.

 

Fernando Oliveira- Professor de Direito, Jubilado

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