Cultura

Nova proposta romanesca de António Quino

O escritor António Quino procede, na próxima sexta-feira, na sede da União dos Escritores Angolanos, ao lançamento do romance “Herdeiros do Pecado”, editado pela Mayamba. O escritor António Quino procede, na próxima sexta-feira, na sede da União dos Escritores Angolanos, ao lançamento do romance “Herdeiros do Pecado”, editado pela Mayamba.

12/05/2024  Última atualização 08H51
© Fotografia por: DR

    ***
"Procurou a vizinha Mingota, amiga dos kwata e das confidências. Amigas como poucas, desde a turbulenta infância no bairro do Marçal. Fizeram-se prolongamento uma da outra, protegendo-se mutuamente.

– Sabes aquele armazém que te falei ontem? – Mingota parecia não lembrar. – Que vendem coxas de frango a bom preço? Aquele onde fui testar para uma vaga na caixa?

– Já sei, amiga. Lembro bem, Aninha! É o armazém daqueles brancos que vestem à toa?

– São indianos, não são brancos!

– E se indiano não é branco, é o quê, então?

– Pronto, são brancos. Complicas muito. Mas, ouve. Ligaram-me para eu levar os documentos agora mesmo. Me acompanha só, amiga! – pediu.

Prontamente, as duas amigas partiram com pressa nas pernas, depois de se aprumarem nos preparos de mulher. Com as conversas postas em actualidade, chegaram rapidamente.

O gerente, um angolano magricela da confiança dos patrões indianos, foi indicado para orientar a admissão de uma nova caixa, que ocuparia a vaga deixada por uma preta fula apanhada a intrujar clientes. Cheio de atitude, logo logo o magricela mostrou que mandava mesmo.

– Dá cá isso – recebeu o envelope contendo os documentos pessoais da pretendente. – Vais entrar sozinha. Vem! – ordenou.

Ana Mambwene olhou para a amiga pedindo apoio. Mingota fez um sinal de encorajamento, desejando boa sorte à amiga.

Os dois desapareceram por um beco estreito e foram dar num confortável compartimento, contrastando com o ambiente onde se atendia a clientela, cercado por contentores frigoríficos e barulhado por compressores, que queimavam levemente os tímpanos.

– Senta aí! – ordenou o magricela, que se fechou posteriormente numa outra sala.

Ana Mambwene sentou-se num mocho exageradamente fofo, que a obrigou a desguarnecer as grossas pernas, porque a saia de pano grosso, mesmo comprida, encolheu-se sobre o frio do ar condicionado da sala. Aquilo lá, requintada decoração, mobília portuguesa, mosaico brilhando como água límpida, impressionou a jovem mãe que conhecia essas mordomias apenas pelas telenovelas a que assistia, quando calhasse, na televisão da vizinha Mingota.

– Entra! – a voz do magricela soou cavernosa e cheia de rouquidão, trespassando a solidez da porta. Ela abriu e entrou porta adentro. Encantou-se ainda mais com a beleza do pequeno escritório. Sem que a autorizassem, acomodou-se na cadeira diante da mesa onde se apoiava o anfitrião. – Eu sou o dono verdadeiro do armazém, sabes? Eu mando aqui. – Continuou como um galo que se apronta para governar o galinheiro. – Sou o preto mais branco que conheço e gosto de um trabalho bem feito. Essas coisas de negralhada eu não aturo: moleza no trabalho, atraso por tudo e por nada, faltar para óbitos até da barata do enteado do director da escola do filho, etc. Estou já a te informar como funcionamos aqui. – Fez uma curta pausa sem tirar os olhos dos olhos dela. – E estou a te ajudar porque gostei muito de ti, jovem. O teu olhar atraiu-me. Gosto de mulher cabedalosa, cheia dos costumes corporais. O emprego é teu!

– Obrigada! – falou pela primeira vez Ana Mambwene, ainda estranhando tudo aquilo.

– Mas deves passar por um último teste – dito isso, o magricela levantou-se da sua cadeira de chefe, deu a volta e colocou-se por trás da pretendente ao emprego. Colocou as suas mãos nos ombros dela. O olhar do cinquentão fixou-se no decote da jovem, que mal conseguia levantar a cabeça. – Já sabes qual é o teste, não sabes?”

                   ***

"Pelo contrário, Mukongo nada tinha de inocente. Vivaço e sobrevivente de um grupo de marginais que um dia delinquiu por Luanda, entregou-se com firmeza a um estilo de vida socialmente útil. Da criminalidade, sobreviveu apenas o seu primeiro filho, acomodado durante sete meses no útero duma catraia, que de manhã atendia numa rulote e à noite se prostituía até por uma cachimbada de crack.

A morte da sua Mbelita, por overdose, e dos seus dois comparsas nos assaltos à mão armada, juntamente com o nascimento do seu primeiro filho, a si entregue, foram o accionar do botão do juízo e da sua humanização.

Iniciou-se como ajudante de electricista. Mas precisava de ocupar o tempo livre para afastar os maus espíritos que não o deixavam em paz. Ouvia por aí que os espíritos dos mortos atormentam sempre os culpados da sua permanente estadia em Kalunga. Nessa cidade, as almas pululariam enquanto na Terra as pessoas se lembrarem delas, um estágio que pode ser eterno à dimensão da efemeridade dos humanos. Então, lembrava-se das inúmeras vidas que mandou para Kalunga no tempo em que servia Kalungangombe.

– Eu não prestava. Sentia-me mal quando não desgraçava pelo menos uma vida – lembrava.

Reabilitado socialmente, Mukongo encheu o tempo num grupo de escuteiros e associou-se a uma organização não-governamental de protecção e restauração de mangais.

Perdido de paixão pela Flor-de-lis, Mukongo esqueceu-se da franqueza, da dedicação e da pureza do escutismo e assumiu a virtude de, aos 17 anos de idade, receber o seu segundo filho.

Plantando, prosseguiu. Numa zona de trânsito, enquanto cultivava mangais entre uma atmosfera terrestre e outra marinha, prestou valioso serviço ao ecossistema dos mangais das praias do Nzeto, partilhando carícias com a Mingota. Também colheu um par de gémeos.

Profissionalmente, progredia como ajudante de electricista. O seu mestre aconselhou-o a retornar à escola.

Salomé e Mukongo conheceram-se no Largo das Escolas, durante o curso médio de Contabilidade e Gestão, ela, e Electricidade, ele. Institutos separados, mas com o mesmo ponto de autocarros públicos. Apaixonaram-se e decidiram juntar-se para uma vida em comum.

Mukongo já tinha quatro filhos. Sendo também o filho varão de um casal com mais duas meninas, Mukongo assumiu a responsabilidade de cuidar dos filhos da sua irmã mais nova, já adolescentes. Para si, os seus verdadeiros filhos, conforme tradição matrilinear bantu.

– É assim na nossa família. Filho da irmã tenho certeza que é sangue do meu sangue.

No início da coabitação a dois, ainda grávida, Salomé aceitou acolher os seis filhos não biológicos, não sem antes ser aconselhada pelos seus familiares a legalizar a relação.

– Minha filha, ouve bem, essa casa que vocês estão a construir, no terreno do Mukongo, se alguma coisa vos separar, perdes tudo. Seria melhor vocês acelerarem o pedido.

– De novo essa conversa, mamã?

– Mamã, nada, mulher. Fica esperta e aprende a ouvir. Sabes que os teus tios e o teu pai te desprezaram porque te juntaste a um homem sem cumprir a tradição. Sem protecção, o feiticeiro nganga-mbungula pode assobiar, combinar com o kalungangombe, e vos vender na mayombola. Ainda podemos remediar…”

 

                   ***

 

"No calor do amor, ignorou as palavras da sua mãe e insistiu nos braços do seu amor, futuro pai do seu filho.

A campestre aldeia da Ngueve suflava sonhos divinos na Terra. Os ancestrais, no seu majestoso poiso, deixavam correr as belas águas do rio Catumbela irrigarem os campos agrícolas. Animado naquele paraíso representado pela sua afilhada, o ngana Dembo temia pela vida da comunidade quando a guerra visitou a aldeia vizinha.

Pela importância geoestratégica, o exército governamental montou uma base militar de comandos, com funções operacionais e logísticas específicas para, temporariamente, impedir a progressão da guerrilha inimiga. Foi assim que o Hiena chegou ao Biópio, com o importante posto de logístico.

Dos dois meses que esperavam fazer, a missão foi ampliada e acabaram por ficar mais de um ano, expandindo o raio da missão para proteger a barragem do Biópio. Daí, foi um passo até conhecer a lua mais brilhante, amada e acarinhada na aldeia.

Dois enormes globos cheios de luz e ternura enchiamo seu rosto. Viu-a a sorrir na margem do rio Catumbela e acreditou que estava apaixonado. Ngueve cantava como o catuíti habitante da Nsanda, enfrentando os traiçoeiros jacarés. Nadando afoitamente, Ngueve mexia-se como uma enguia irrequieta. Talvez por ela honrar sempre o ritual antes de qualquer mergulho, os répteis a receassem. Desde o tempo dos avôs do Dembo, seu padrinho, só forasteiros serviam de pitéu para os jacarés.

Ngueve expedia alegria e luz. Grandes olhos molhados germinavam o porvir da comunidade. Lindos olhos, profundos e abertos como a fenda de Tundavala.

Seu corpo delgado como o de um golungo, exibindo agilidade e pequenas pintas brancas no rosto, serpenteava-se com o gingar do rio Catumbela que se esquiva entre a sua nascente na serra de Cassoco e o oceano Atlântico.

De casa a casa, batia ritmicamente duas palmas, seguida duma saudação cheia de vigor.

– Walale!?– ouvia-se-lhe.

As respostas dos aldeões enchiam aquele mundo de paz:

– Wlalale!

Hiena rendeu-se ao encanto daquela rapariga cheia de vida e inteligência. Sentiu-se endoidado. Paixão diferente a da infância com a Mingota, que não tinha aquele profundamente inocente olhar.

– Como te chamas, moça?

– Não respondo a estranhos.

– Não sou o estranho – mostrou um risinho maroto. – Sou o Hiena, chefe da logística da base, amigo do teu irmão Jamba.

– Aié? – pareceu desinteressada no início, mas descontraiu quando ouviu o nome do irmão. – Afinal, és amigo do Jamba? Eu sou a Ngueve.

– Agora que somos          amigos…

– Não somos amigos – cortou sem rodeios. – Pessoa de família não conversa com militar, ainda mais na rua.

Deixando Hiena pregado no seu orgulho de manobrador de prendadas raparigas, ela seguiu. Ele, nem força teve para concluir mentalmente a sua frase. Gravou nos seus olhos os olhos de Ngueve: profundamente inocentes.

– Essa miúda será minha. Queres apostar quanto?

Os seus pares não duvidaram. Conheciam a força do chefe Hiena.

– Já não te bastam as outras que andas aqui a fuzilar? Deixa a miúda, chefe.

– Todas se fazem difíceis, Elias. É disso que eu gosto.

Nunca antes encontrara tanta resistência numa       conquista.

Ngueve estava decidida a não o aceitar. Sonhava casar com o seu amor de infância, um jovem que partira para lá longe em cumprimento do serviço militar, mas que prometera voltar para ficarem juntos e construírem o seu paraíso na Catumbela.

Hiena mudou de estratégia.”

 

                   ***

 

"– Só Deus, minha irmã! – pensou no Mayembe, na sua disposição para a apoiar. Na conversa que tiveram, aceitou inclusive fazer o papel de primo. Se ele não honrasse a sua palavra, iria ser engolida pelos seus cunhados e sogros, que impingiam suas tradições. – Não me bastava a morte do Pacheco, e ainda tenho de lidar com esses abutres!

Tendo ficado na ampla sala de estar onde decorriam as conversas, bem antes do funeral, mal refeitos da desfeita da viúva, os familiares do defunto já programavam a fragmentação dos bens. A casa, o carro, a mobília, as roupas do defunto.

– Ela que se prepare para arranjar onde morar. Depois das exéquias, aqui já não fica! – falou com força viva a doutora Maria Luísa Coeiro, a sogra. O seu rosto fino, de pele clara enrugada, parecia mais bronzeado pelo luto. Algumas madeixas de cabelos grisalhos longos passavam a falsa imagem de mulher avantajada no tamanho. Ledo engano. O seu sotaque não resguardava a sua origem alentejana. – Não vou cometer esse pecado. Essa preta embruxou o meu menino e não merece cá permanecer!

Loira, amante de cola e gengibre, os gostos por coisas da terra caíam bem às gentes que cultuam a tradição. Aprendeu a apreciar e não passava sem este composto que fazia a delícia de bessanganas de Luanda. Tal feito mereceu elevados elogios e elevou-a aos píncaros da elite das tradicionais famílias da Ilha do Cabo.

Aquela branca tinha autoridade moral sobre as velhas elegantemente representadas nos seus mais escuros panos. Iriam respeitá-la como voz de alguma autoridade             ancestral.

– Eu fico com a mobília do quarto do mano. Sempre gostei muito da cama e da cor das cortinas – adiantou-se a irmã mais nova do Pacheco, que deixou a mais velha dela com a voz embargada por minutos.

– Sabias que eu iria pedir isso, querida! Eu devia ser a primeira. Sou a mais velha! Mas não faz mal. Contento-me com o fogão e os electrodomésticos que o mano comprou pra aquela aí.

– Mas, família, deixem ainda a lista da distribuição das coisas do malogrado. Não podemos permitir que aquela viúva desrespeite a nossa tradição. Somos Caeiro Dumbula! – lembrou a tia Ndungu, mostrando uma exagerada preocupação – Devíamos ir onde ela está para lhe pôr juízo na cabeça. Se não fizermos nada, vão pensar que a nossa família não tem força. Os nossos mais velhos podem ficar zangados e pode vir aí desgraça na nossa família!

Como impulsionados por uma mola, seguiram em cortejo de beatos em ruidosa marcha. Não sendo apóstolos, os doze indicados barulhavam, procurando pela viúva. Mãe, tias, primos e sobrinhos do finado Pacheco rusgavam pelos quintais próximos.

Descobriram a Rosa Fwa a descansar num loando, colocado à sombra da Nsanda, no quintal da casa duma vizinha.

Pensava na vida. Sem apetite e com insónia desde o dia do falecimento do esposo, ali se sentia protegida pelos espíritos poderosos que habitavam nos seus troncos. Do portal entre os vivos e os espíritos, outros seres assistiam sem interferir.

– Não é insónia, amiga. É medo de enfrentares fantasmas no sono ou pesadelos, o que é bem pior. – Ouvira momentos antes da Teresinha, irmã da dona do quintal.

Sem pedir licença, o bando da tia Ndungu invadiu a casa alheia e, com a ponta dos pés, a chefe dos discípulos sacudiu o corpo da viúva. A sombra continuou inerte.

– Ei, você aí, acorda, sua reguila. Nós, da família do malogrado, viemos tirar satisfação. A bem ou a mal, vais cumprir o ritual!

Rosa Fwa despertou cansada do quase sono e viu demolida toda a sua valentia. Não se sentia com alento para contestar. De pé, ares excitados, os doze prometiam alguma violência caso ela recusasse submeter-se, novamente, aos rituais. Naquele momento, maldisse o seu Pacheco.

Não foi com surpresa que viu dois primos do malogrado a avançarem. Ferozes, preparavam-se para a pôr no seu devido lugar, em respeito à família. E ela, mentalmente, preparou-se para a agressão física.”


Nótula  bio-bibliográfica

Crítico literário, antologista, cronista, contista, romancista e jornalista, António Quino é doutor em Ciências da Literatura pela Universidade do Minho, Portugal, e mestre em Ensino de Literaturas em Língua Portuguesa pela Universidade Agostinho Neto.

Docente no Instituto Superior de Ciências da Educação de Luanda, é membro da União dos Escritores Angolanos e membro fundador da Academia Angolana de Letras, exercendo a função de secretário-geral.

É autor, dentre outros títulos, dos livros "António Agostinho Neto: O caminho das estrelas” (Luanda, 2022),"Duas faces da esperança: Agostinho Neto e António Nobre num estudo comparado” (Luanda, 2014), ambos de ensaios; e "República do vírus” (Lisboa, 2015), ficção. Organizou as antologias "Conversas de homens no conto angolano” (Luanda, 2010) e "Balada de homens que sonham” (Lisboa, 2011), esta traduzida em espanhol (2013), italiano (2014) e hebraico (2014); co-organizoua antologia "Pássaro de asas abertas (Lisboa, 2016 e Luanda, 2018).

Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Cultura