Especial

Sociedade une forças no combate aos abusos contra os mais vulneráveis

Engrácia Francisco

Jornalista

Actualmente com 19 anos, Júlia Gouveia (nome fictício) é uma das várias vítimas de abuso sexual. Aos 4 anos, recorda em prantos, foi estuprada por um primo de 17 anos. Cinco anos depois o mesmo acto se repetiu, mas desta vez, pelo jardineiro de casa, de 35 anos. Nas duas circunstâncias, apesar da idade, a imagem em si, continua viva na mente da jovem.

23/09/2023  Última atualização 12H39
A violência contra as mulheres é, ainda hoje, de uma forma generalizada © Fotografia por: DR
Na primeira vez, contou, era a caçula e como não tinha com quem ficar, a mãe a levava à casa da tia, onde ficaria com a prima da mesma idade, as duas sob os cuidados do primo de 17 anos. "Era assim quase todos os dias, até que o meu primo começou a aproveitar-se de mim, quando a minha tia não estivesse em casa”, recordou, ainda com o sentimento de culpa e mágoa, por lembrar que nunca contou nada e nem conseguir entender a razão de tal acto.

Ao atingir a idade escolar, parecia que tudo não passaria de um sonho. Porém, mesmo em casa, Júlia não estava segura. Como estudava de manhã e os irmãos mais velhos à tarde, quando regressava da escola, ela e o sobrinho, de dois anos, ficavam sob o cuidado de uma babá e do jardineiro.

Com repugnância, Júlia conta que enquanto brincava no quintal de casa, o jardineiro, na altura com 35 anos, aproveitando-se da sua inocência, fazia brincadeiras usando os órgãos genitais. "Não sabia do que se tratava. Nem sequer prestava atenção. Mas, às vezes, ele esfregava-se em mim”, lamentou, destacando que toda a ingenuidade da infância foi apagada por duas pessoas que a deviam cuidar e proteger. "É duro falar sobre isso novamente e recordar essas situações”, desabafou aos prantos.

Apesar de ter 9 anos, acrescentou, ainda não entendia o que se passava e mais uma vez calou-se. "Naquela fase havia pouca informação sobre o assunto, por isso não entendia a situação”, disse, além de explicar que o acto se repetiu por três vezes, enquanto a mãe e a irmã estavam fora de casa a trabalhar e os irmãos na escola.

Júlia revelou que não denunciou o violador com receio de represálias. "Não falei nada com medo do que pudesse acontecer e isso começou a afectar-me psicologicamente. Foi difícil lidar com tudo. Em 2020 consegui contar para a minha família o que aconteceu e abriu-se um processo crime”, disse.

 Depois da denúncia, explicou, a família do primo começou a fazer ameaças e o sentimento de culpa só aumentou, por isso, decidiu parar com o processo crime. "Era algo que estava a me fazer mal. A partir do momento que entendi o que acontecia comigo, comecei a me culpar, sempre que me lembrava e ainda carrego esse sentimento comigo”, desabafou.

País só tem o registo de estrangeiras exploradas sexualmente

O abuso de mulheres, de uma forma generalizada, é, ainda hoje, realidade em vários países. Muitos são os casos narrados pelas vítimas. A realização de campanhas de sensibilização para o combate acirrado da prática é uma tarefa que move toda a sociedade, especialmente em datas como a de hoje, Dia Internacional contra a Exploração Sexual e o Tráfico de Mulheres e Crianças.

O último caso de exploração sexual que o Serviço de Investigação Criminal (SIC) Geral registou foi de oito cidadãs, da República do Vietname, que eram obrigadas a prostituir-se e depois "vendidas” a cinco milhões de kwanzas.

As mulheres tinham sido mantidas em cárcere privado, numa residência localizada numa rua adjacente à Via Expressa Fidel Castro Ruz, onde eram obrigadas a envolver-se sexualmente com alguns clientes. Proibidas de sair de casa, as vítimas tinham idades entre os 23 e 38 anos e eram abusadas há mais de um ano.

O porta-voz do SIC-Geral, Manuel Halaiwa, sublinhou que em Angola só há registo de mulheres estrangeiras usadas para exploração laboral sexual. Muitas delas, avançou, entraram no mundo da prostituição, através das redes sociais, onde eram chamadas para trabalhar em Angola e quando chegavam ao país acabavam sendo exploradas sexualmente e vendidas.

O último caso registado, contou, é o de duas mulheres vietnamitas, vendidas a cinco milhões de kwanzas cada e levadas para a República Democrática do Congo (RDC).

Um mal que ganha mais espaço

Para o psicólogo clínico e comportamental Alberto Neto, a exploração sexual, seja infantil, de adolescentes ou adultos, é um mal que vai ganhando espaço na sociedade angolana.

O especialista referiu que não tem sido fácil trabalhar com as vítimas de violência sexual, porque o trauma tem sido difícil de ultrapassar e acaba por prejudicar o bem-estar físico e emocional das pessoas abusadas.

Alberto Neto esclareceu que as crianças ou adolescentes vítimas de abuso, podem desenvolver transtornos como, ansiedade, depressão, síndrome do pânico, comportamentos autodestrutivos, ainda mais quando a acção é praticada por alguém próximo a vítima. "Geralmente, ela sente raiva de si mesma, por não ter conseguido evitar o acto”, disse, acrescentando que é comum também ter medo de quem praticou o crime, ou que algo de mal lhe aconteça ainda mais se o agressor for conhecido.

"Vergonha de contar o que se passou, medo  que ninguém acredite caso conte, ou de ficar marcada sempre e nunca conseguir se recuperar do acto violento”, avançou, além de referir que 70 por cento das vítimas, com quem trabalhou, já tentaram se suicidar mais de duas vezes.

Penas para a exploração de crianças e adolescentes

O docente universitário Waldemar José explicou que, de acordo com o Código Penal, o lenocínio de menor (prática criminosa que consiste em explorar, estimular ou facilitar a prostituição) é punido com pena de prisão de 3 a 12 anos.

A lei, esclareceu, se aplica para qualquer um que promova, incentive, favoreça ou facilite o exercício da prostituição de menores de 18 anos ou a prática reiterada de actos sexuais por menores.

Caso o agente use de violência, ameaça ou coacção, para actuar com fim lucrativo ou fizer da profissão uma actividade no qual o menor pode sofrer de anomalia psíquica, adiantou, a pena de prisão é de 5 a 15 anos.

"Se aliciar a menor de 18 anos, transportar e a alojar para o exercício da prostituição, estamos perante ao crime de tráfico sexual de menores, a pena já vai de 5 a 12 anos de prisão”, frisou.

O tráfico de pessoas, não importa a idade, é punível com 4 a 10 anos de prisão. "Se a pessoa em causa, a vítima, for uma criança, há sempre uma circunstância agravada”.

Tráfico de pessoas

Waldemar José referiu que quem, mediante violência, rapto ou ameaça grave, ardil ou manobra fraudulenta, com abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar, ou aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima, oferecer, aceitar, entregar, recrutar ou aliciar, acolher, alojar ou transportar pessoas, para fins de exploração de trabalho ou para prosseguir outras formas de exploração, comete o crime de tráfico de pessoas, e é punido com a pena de 4 a 10 anos de prisão.

No caso do fim ser a extracção de órgãos ou a colheita de tecidos humanos, destacou, a pena é de 5 a 12 anos de prisão. "Se da extracção ou da colheita de tecidos humanos resultar a morte da vítima, a pena é de 20 a 25 anos de prisão”.

O docente lembrou ainda que quem retiver, ocultar, danificar ou destruir documentos de identificação ou de viagem de pessoa vítima do crime de tráfico de pessoas pode ser punido com uma pena de 1 a 5 anos de prisão.

 Uma data em defesa dos menores e das mulheres

O dia 23 de Setembro foi escolhido pelos países participantes da Conferência Mundial de Coligação contra o Tráfico de Mulheres, em 1999, como o Dia Internacional contra a Exploração Sexual e o Tráfico de Mulheres e Crianças. A data foi inspirada na "Lei Palácios”, promulgada na Argentina em 23 de Setembro de 1913, com o intuito de proteger as crianças e adolescentes da exploração sexual e corrupção de menores.

O Protocolo de Palermo, criado, em 2000, pelas Nações Unidas, define o tráfico de pessoas como o recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins de exploração.

De acordo com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), a maioria das vítimas de tráfico humano são mulheres e meninas, sendo a prostituição forçada (em estabelecimentos, nas ruas, online ou na produção de material pornográfico) o principal meio de escravização.

O Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas das Nações Unidas aponta que 65 por cento das vítimas são mulheres e meninas, 92 por cento delas destinadas à exploração sexual. Outras formas incluem trabalho doméstico, em lavouras, tapeçarias, oficinas de costura, mendicância, retirada de órgãos.

Actualmente, uma forma de exploração ainda pouco debatida e, recentemente, definida por alguns especialistas é o tráfico sexual intra-familiar, que se tornou mais evidente com a pandemia da Covid-19. Esse crime atinge, esmagadoramente, crianças e adolescentes e, além do abuso praticado contra a criança pelos próprios familiares, constitui-se em negócio altamente lucrativo para os perpetradores, que propagandeiam esses materiais basicamente na Internet.

Os aliciadores estão presentes de forma massiva online. Mulheres são o principal alvo através dos chamados "golpes do amor”, que podem ser, em grande parte financeiros, porém, muitos deles são perpetrados por máfias de tráfico humano, cujos agentes oferecem o "trabalho dos sonhos” em países ricos ou seduzem as vítimas com promessas de casamento.

Meninos, via de regra, são traficados para trabalho forçado, principalmente em lavouras. Uma ocorrência clássica é o aliciamento e captura de menores para serem escravizados em lavouras de cacau, em países como a Costa do Marfim e Gana.

Os grandes produtores de chocolate vêm sendo pressionados a adoptarem políticas anti-tráfico humano, porém, pouco se tem avançado. O interesse do capital prevalece sobre a vida humana, ainda mais se tratando de imigrantres.

 Iqbal Masih

Um caso emblemático e pouco conhecido no ocidente é o de Iqbal Masih, menino paquistanês que, em 1987, aos 4 anos, foi obrigado a trabalhar em uma tapeçaria para pagar dívidas contraídas por sua família. Havia muitas crianças escravizadas naquela tapeçaria, que trabalhavam presas por pesadas correntes, sofrendo castigos físicos e privações.

Aos 10 anos, curvado, pequeno e com severos problemas de saúde devido à desnutrição, Iqbal descobriu que o trabalho forçado havia sido declarado ilegal pela Suprema Corte e conseguiu escapar. Tornou-se um activista pelo fim do trabalho infantil, integrando-se a uma organização de ajuda e resgate de vítimas.

Iqbal Masih ajudou a libertar cerca de 3.000 crianças escravizadas. O seu sonho de tornar-se advogado para lutar pelos direitos humanos foi interrompido aos 12 anos quando, após diversas ameaças, foi morto a tiros num domingo de Páscoa. De acordo com as investigações, acredita-se que tenha sido assassinado pela máfia dos tapetes.

Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Especial