Especial

UNESCO aceita a candidatura do Sona como Património Cultural da Humanidade

Joaquim Aguiar | Dundo

Jornalista

Passados quatro anos desde a realização da Primeira Conferência Internacional sobre a Educação Matemática, promovida pela Universidade Luegi A’NKonde, na cidade do Dundo, o Sona, a arte milenar dos Cokwes e povos aparentados do Nordeste de Angola, que consiste em desenhos na areia, foram declarados Património Cultural Imaterial Nacional, nos termos do Decreto Executivo 99/21, de 20 de Abril.

22/07/2023  Última atualização 08H55
Arte Cokwe © Fotografia por: DR
Este ano, foi submetido e aceite pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO)  a candidatura desta importante riqueza do conhecimento ancestral, transmitida de geração a geração, a património cultural imaterial mundial.

O professor associado da Escola Pedagógica do Dundo,  unidade orgânica da  Universidade Lueji A’NKonde (ULAN), Jorge Dias Veloso, disse ao Jornal de Angola  que o processo de candidatura do Sona como património cultural imaterial da humanidade foi submetida, revista e aceite pelo órgão competente da UNESCO, estando neste momento a decorrer o período de cerca de um ano em que estará disponível online para consulta pública.

Jorge Dias Veloso explica que o período de consulta decorre até Novembro, altura em que o Comité da Salvaguarda do Património Imaterial, órgão da UNESCO, vai deliberar sobre as candidaturas aceites.

A terceira etapa deste processo contempla um plano que está a ser desenvolvido pela Universidade Luegi A’Konde com vista a revitalizar e preservar o Sona como um bem cultural, histórico e científico, uma vez que decorrem vários estudos que consagram a geometria Sona como importante recurso pedagógico, esclareceu.

O professor Dias Veloso, associado ao Departamento de Investigação de Matemática, realça que a importância do aprofundamento do estudo e conhecimento do Sona está associada às competências e atribuições da Universidade Lueji A´NKonde, no âmbito da extensão universitária e numa perspectiva de prestação de serviço à comunidade, valorização recíproca e apoio ao desenvolvimento.

Outros objectivos preconizados pela ULAN, no quadro da I Conferência Internacional sobre a Educação Matemática, tem a ver com a conservação e valorização do património científico, cultural, artístico e natural, assegurar a formação técnico-profissional das pessoas e, principalmente, do seu corpo discente.

Dias Veloso observa, também, a necessidade de promover uma maior cooperação e intercâmbio cultural, científico e técnico com instituições congéneres nacionais e estrangeiras vocacionadas ao desenvolvimento das ciências e tecnologias, tendo em conta a consolidação do plano de salvaguarda e mobilização de apoios para a implementação dos diferentes objectivos que a Universidade se propôs alcançar.

Ressalta, no entanto, a "boa colaboração, no quadro de um protocolo, entre a Universidade Luegi A’Nkonde e o Instituto Nacional do Património Cultural”, que permitiu passar as diferentes etapas do reconhecimento do Sona como património cultural imaterial nacional e a candidatura a património mundial.

Mas destaca, também, o intercâmbio internacional entre investigadores da Universidade Luegi A’Nkonde e das universidades Federal da Uberlândia e da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira nos processos de promoção e divulgação dos Sona e da Geometria Sona.

O investigador em Ciências Matemáticas na Escola Superior Pedagógica do Dundo assegura que a noção de Etnomatemática já faz parte da formação de professores de Matemática e o uso desta ferramenta no ensino tem sido uma realidade.

"Pelo menos a noção de Etnomatemática já faz parte, em muitos casos, da formação de professores de Matemática. O uso dela no ensino tem sido uma realidade, independentemente de se fazerem referências explícitas ao conceito”, disse, confirmando que não é só no Brasil onde a Geometria Sona é aplicada no sistema de ensino, mas também em outros países.

"Não é só no Brasil, mas também noutros países que os professores usam os Sona, em particular a Geometria Sona, para ensinar conceitos matemáticos”, enfatizou.

Se é possível transportar a experiência brasileira para o contexto da realidade angolana, o professor e investigador de Matemática Dias Veloso acena positivamente, argumentando que, apesar da Geometria  Sona não estar curricularizada, há uma quantidade significativa de material disponível. "Quer com base em experiências anteriores, quer com base nas suas próprias iniciativas, os professores podem ensinar a Geometria Sona”, sublinhou.

Festival das Tradições

O director do Gabinete Provincial da Cultura, Turismo, Juventude e Desportos, José Fernando Pinto, anunciou ao Jornal de Angola  a realização, de 30 de Agosto  a 3  de Setembro, de um "Festival das Tradições”, na cidade do Dundo, no âmbito do resgate dos valores culturais positivos, com o objectivo de promover a dinamização, preservação e divulgação do património histórico e cultural Cokwe, alguns em vias de desaparecimento, com o principal enfoque na Arte Sona.

O Festival das Tradições será realizado em parceria com a Fundação Brilhante, no quadro da responsabilidade social da ENDIAMA, e vai ser um primeiro passo para um conjunto de acções que a direcção local da Cultura vai desenvolver para identificar zonas específicas e mestres que possam ainda executar a Arte Sona.

Para José Fernando Pinto, os municípios de Cambulo, principalmente as comunas de Luia, Canzar e Cachimo, assim como algumas áreas do município do óvua, são potenciais localidades onde ainda podem ser encontradas fortes evidências da Arte Sona.



Arte milenar de desenhar na areia  dos Cokwes e povos aparentados

A cultura Cokwe e povos aparentados do Nordeste de Angola é conhecida pela sua arte decorativa, que abrange áreas como a ornamentação de esteiras e cestos entrelaçados, trabalhos em ferro, cerâmica, esculturas, tatuagens, pinturas nas paredes das casas e os famosos desenhos na areia chamados Sona.

O Sona é uma arte milenar, que consiste em desenhos feitos na areia executados com a máxima precisão, pois serviam para transmitir às novas gerações os ensinamentos das vivências de fases intensas da "mukanda e mugongue”, rituais de passagem específicos da tradição dos Cokwe e povos aparentados, como os Luvales, Luchazes e Nganguelas.

Com base nesses desenhos, o reconhecido matemático holandês Paulus Gerdes, que trabalhou durante muitos anos na Universidade Pedagógica de Maputo, em Moçambique, desenvolveu, na década 1980, vários estudos e conceitos matemáticos presentes na execução dos Sona.

Esses estudos, actualmente disponíveis em três volumes sobre Geometria Sona de Angola, cujo primeiro volume foi publicado em 1993, são dirigidos ao público interessado em compreender um pouco mais sobre os desenhos na areia e descobrir tradições diferentes por meio da Matemática.

Além dos aspectos académicos reflectidos na Etnomatemática, os Sona, desenhos na areia, segundo os estudos feitos por Paulus Gerdes e outros pesquisadores desta temática, apresentam uma forte componente histórica, cultural e social dos cokwes da região Leste de Angola, Noroeste da Zâmbia e do Congo Democrático.

As histórias presentes na arte dos desenhos na areia faziam parte da forma mais expedita dos mais velhos da Corte Cokwe, conhecedores dos Sona e da sua execução, partilharem as suas crenças e mitos ao longo da tradição oral, que incluem provérbios, fábulas e jogos.

Segundo Gerdes, os Sona desempenhavam também um papel importante na transmissão de conhecimento e da sabedoria de geração em geração.

Mário Fontinhas, autor do livro "Desenhos na areia dos Cokwes do Nordeste de Angola: subsídios para a História, Arqueologia e Etnografia dos povos da Lunda” e pesquisador do Museu do Dundo na década de 1940, esclarece que os Sona narravam os acontecimentos possíveis sobre a caça, histórias de romances e representavam também lugares, pessoas em actividades comuns das aldeias, animais, utensílios, objectos, entre outros factores da vida destes povos.

Um dos desenhos mais importantes da colecção estudada até aos dias de hoje é a representação de Deus, que define a vida de acordo com a tradição dos povos cokwe e seus parentes.

Mário Fontinhas não sabe quando os Cokwes começaram a executar a arte de desenho na areia, mas considera que o processo de colonização não contribuiu o suficiente para a preservação desta arte, cuja decadência e extinção se foi acentuando ao longos dos tempos, com o falecimento dos anciões conhecedores destes desenhos, uma vez que eram feitos na areia e apagados logo a seguir ou deixados ao relento e o vento se encarregava de os apagar.

 "Isso dificultou, ao longo dos anos, que os Sona pudessem ficar registados de algum outro modo, não apenas pela memorização de poucas pessoas”, assinalou Fontinhas.

O pesquisador, que recolheu 287 desenhos na areia, entre 1945 e 1955, a maior e mais importante colecção de Sona recolhida entre todos os pesquisadores actualmente conhecidos, lembra que nessa época já era muito difícil encontrar pessoas mais velhas com conhecimento e domínio para executar os Sona mais complexos, existindo apenas, como refere na sua obra, pessoas mais jovens que se foram esbarrando por falta de incentivos.

Diante das dificuldades de encontrar quem saiba mais sobre os Sonas nas comunidades da região Leste de Angola, Paulus Gerdes reuniu cerca de 500 desenhos na areia, publicados em ocasiões diferentes por oito conhecidos pesquisadores de vários países, num período de 59 anos.

A primeira colecção de 69 Sonas foi recolhida por Emil Pearson nos anos 1920 e publicada apenas em 1977. Dez anos mais tarde, Hermann Baumann recolheu quatro desenhos publicados em 1935 e Mário Fontinhas, entre 1945 e 1955, com o número "record” de 287.

Entre 1947 e 1950, E.

Hamelberger percorreu os aldeamentos Cokwes e recolheu 28 Sonas publicados em duas ocasiões, em 1951 e 1952, enquanto José Redinha, fundador e primeiro conservador do Museu do Dundo, foi responsável pela recolha de oito místicos desenhos na areia em 1953 e publicados no mesmo ano.

Eduardo Santos é outro pesquisador que, entre 1955 e 1960, conseguiu recolher 94 desenhos na areia publicados no ano seguinte, e Th. Center é responsável pela colecção de 13 Sonas, recolhidos em 1963 e publicados no mesmo ano.

O mais recente coleccionador de Sona é Gerhard Kubik, que entre 1973 e 1979, em três ocasiões, coleccionou 25 desenhos na areia publicados em 1975 e 1987.

Gerhard Kubik ressalta, no entanto, que esses desenhos, aparentemente pertencentes a uma tradição tão antiga, resistiram até aos nossos dias, provavelmente a partir de uma necessidade humana de partilhar as suas histórias.

"A partir de toda a evidência disponível parece que essas descobertas eram feitas por indivíduos em solidão, durante longas viagens através de áreas desabitadas. A tradição oral confirma que no passado os Sona eram frequentemente desenhados por caçadores, quando se sentavam para descansar e passar o seu tempo”, argumentou Gerhard Kubik. 

A Etnomatemática

A Etnomatemática é um conceito matemático lançado, em 1990, pelo grande pensador contemporâneo da Educação Matemática, o brasileiro Urbitan D’Ambrosio, por meio do livro,” Etnomatemática: Arte ou técnica de explicar e conhecer”, como uma metodologia para retraçar e analisar os processos de geração, transmissão, difusão e institucionalização de conhecimentos em diferentes sistemas culturais, numa perspectiva de pesquisa e de teoria geral do conhecimento.

Desde essa altura, o autor defendeu sempre  que todas as abordagens sobre a matemática, associada a formas culturais distintas, devem ser ligadas directamente ao conceito da Etnomatemática.

Segundo Urbitan, o objectivo deste conceito é dar primazia à identificação da memória cultural, códigos, símbolos, mitos e até mesmo maneiras específicas de raciocinar de um determinado grupo, ao contrário da matemática, encarada de forma mais ampla, que inclui contar, medir, classificar, ordenar, inferir e modelar. 

Já Eduardo Sebastiani Ferreira, matemático brasileiro, chama a atenção para o facto de que por meio do conceito de Etnomatemática é possível identificar a matemática como também um produto cultural. Ou seja, o também autor de vários estudos sobre a temática defende que cada cultura produz "matemática específica”, que resulta das necessidades específicas de um determinado grupo social.

Por outro lado, Milton Rosa e Daniel Orey, autores de um estudo sobre "abordagem do programa Etnomatemática: delineando um caminho para acção pedagógica,” qualificam a Etnomatemática como um programa que se identifica com o pensamento contemporâneo e sugerem, no entanto, que este conceito não pode limitar-se somente ao registo de factos e práticas históricas.

A perspectiva desta proposta académica é essencialmente resgatar os factos e práticas culturais marginalizadas, tendo em conta que este programa também faz parte de um sistema de pensamento matemático sofisticado, que visa desenvolver habilidades matemáticas e o entendimento de "como fazer” a matemática.

Por isso, Milton Rosa e Daniel Orey defendem que as investigações que adoptam essa linha de pesquisa procuram identificar as técnicas ou habilidades práticas utilizadas por distintos grupos culturais em busca do conhecimento e de um entendimento sobre o mundo que nos cerca.

Consideram também fundamental buscar constantemente fundamentos teóricos de um substrato conceitual sobre técnicas, habilidades ou práticas pedagógicas, que possam apoiar as teses que sustentam a Etnomatemática como uma proposta que tem como objectivo primordial valorizar a matemática dos diferentes grupos culturais. 

A Geometria Sona

Paulus Gerdes confessa, no seu livro "Geometria Sona de Angola: Matemática duma tradição africana” , o primeiro volume desta colecção, que a sua paixão pelo aprofundamento dos estudos da Geometria Sona  foi despertada ao tomar contacto com o livro "Desenhos na areia dos cokwes  do Nordeste de Angola”, publicado por Mário Fontinhas em 1983.

O professor Gerdes percebeu as propriedades matemáticas subjacentes nos desenhos Sona e decidiu iniciar uma longa jornada, para compreender os conceitos envolvidos na sua execução e explorar o uso dos Sona na educação matemática e a possibilidade da sua aplicação numa sala de aulas.

Gerdes apresenta um levantamento de elementos matemáticos presentes nos Sona que podem ser usados na educação básica, tais como análise combinatória, mínimo múltiplo comum, máximo divisor comum, progressões aritméticas, progressões geométricas, teoremas de Pitágoras, simetrias, assim como estabeleceu uma relação dos resultados dos seus estudos com o algoritmo euclidiano.

As propriedades apresentadas são apenas algumas das várias que podem ser estudadas por meio dos Sona, como é o caso da representação gráfica dos grafos de Euler.

Gerdes considera que a matemática, convencionalmente estudada, não passa também de uma Etnomatemática, por ter raízes em território europeu.

A esse respeito, Urbitan D’Ambrósio explica que "hoje, essa matemática adquire um carácter da universalidade, sobretudo, devido ao predomino da ciência e da tecnologia modernas, que foram desenvolvidas a partir do século XVII na Europa, e servem de respaldo para as teorias económicas vigentes”.

Os Sona evidenciam a existência de uma matemática própria e, é por isso, que os diferentes pesquisadores sobre a matéria reforçam a necessidade de ensinar os desenhos na areia, para proporcionar um modo diferente no tratamento de conceitos matemáticos de forma inovadora e visão mais extensiva sobre a matemática.

 Dayene Ferreira dos Santos defende na sua tese "Uma abordagem Etnomatemática para o ensino da matemática”, que serviu para a licenciatura em matemática na Universidade de Santa Catarina, no Brasil, que esta temática vem ao encontro de uma tomada de consciência, por trazer cultura, história e, o mais importante, uma alternativa à matemática moderna, que está ainda intrínseca à prática de muitos educadores. 

Na referida tese, Dayene dos Santos afirma que pretende levar aos alunos do ensino fundamental do seu país um pouco da matemática do povo Cokwe do Nordeste de Angola, levando-os à investigação e descobrir com eles as regras de construção dos desenhos na areia.

"Se nós educadores matemáticos estivermos dispostos a mudar a nossa postura, poderíamos retirar este segmento da falência. Basta apenas investirmos um pouco do nosso tempo e força de vontade em fazer diferente”, escreveu Dayene dos Santos na parte conclusiva da sua tese, reforçando que a Geometria Sona é apenas um exemplo dos tantos que deram certo nas salas de aula pelo mundo afora.

Outro exemplo vem de Elizângéla Gonçalves de Araújo, também investigadora brasileira, que com o trabalho sobre "Etnomatemática com Geometria Sona desperta o pensamento matemático dos estudantes em sala de aula”, descrevendo episódios vividos em aulas experimentais sobre a Geometria Sona.

"No primeiro momento expliquei que estaríamos a estudar a Geometria Sona, não apenas a Geometria Grega, habitualmente estudada nas escolas”, assinalou Elizângela Gonçalves, que disse ter apresentado em seguida os objectivos do trabalho, que consistiram, primeiro, no aprimoramento do espírito investigativo, conhecer um pouco da história dos cokwes de Angola e reconhecer a simetria nos desenhos Sona, de forma clara e com a linguagem mais próxima da utilizada pelos estudantes.

Foram igualmente ministradas aulas sobre conceitos de "simetria e monolinearidade”, tendo, no entanto, confessado que foi um belo desafio fazer uma prática diferente da matemática na sala de aula.

"Uma realidade só nasce onde antes uma utopia foi plantada”, sublinhou Elizângela Gonçalves, para descrever a difícil missão que se tem pela frente para que o Programa da Geometria Sona possa ser concretizado na educação básica ou na educação superior.

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