Reportagem

Zona Desmilitarizada: turismo num palco da guerra entre as duas Coreias

Augusto Cuteta

Jornalista

A guerra eclodiu, em Junho de 1950, depois que a Coreia do Norte, com apoio da China, atacou o vizinho do Sul. No período inicial, os agressores encurralaram os adversários, que quase se viram sem saída.

10/08/2023  Última atualização 08H10
A partir da DMZ, os visitantes tomam contacto com aspectos ligados ao conflito que envolveu os dois países asiáticos © Fotografia por: DR
Mais tarde, enquanto a China, com auxílio logístico e político da ex-União Soviética, apoiava a Coreia do Norte, nesta batalha, que ficou conhecida como a "Guerra de Libertação da Pátria”, a Coreia do Sul passou a contar com a ajuda das Nações Unidas, tendo os Estados Unidos como seu principal aliado.

O conflito armado continuou. O Conselho de Segurança das Nações Unidas desenvolvia uma série de estratégias para acabar com a guerra, inclusive considerou a atitude da Coreia do Norte como uma invasão ilegal, daí exigir um cessar-fogo.

A situação prevalecia. Por isso, a ONU aprovou a Resolução 83, condenou a invasão e enviou tropas para restabelecer a paz na península coreana. Nessa missão, pelo menos 21 países associaram-se à causa, mas diz-se que mais de 80 por cento desses militares eram norte-americanos.

Este envio de tropas à Coreia mudou o cenário da guerra. Quando se achava que a batalha estivesse vencida pela parte Norte, as Nações Unidas, com o poderio dos Estados Unidos, no perímetro de Pusan, obrigaram os agressores a recuar no terreno, após uma ofensiva em Incheon.

Em função disso, a China foi forçada a participar directamente na guerra, enquanto aliado da Coreia do Norte, e deteve o avanço das forças norte-americanas.

Nessa altura, com a guerra mais intensa, Seul, capital da Coreia do Sul, sofria, em grande escala, os efeitos do conflito armado, que já envolvia equipamentos aéreos a atacar territórios de ambos os lados. Esse momento, ficou conhecido por "Alameda dos Migs”.

Mas, três anos depois, o conflito armado parou. E, isto ocorreu a 27 de Julho de 1953, data da assinatura de um armistício que firmou a Zona Desmilitarizada (DMZ, na sigla inglesa) como a separação do Norte e Sul da Coreia, e permitiu a troca de prisioneiros.

Os barulhos provocados pelos lançamentos de canhões e de tiros de armas menos pesadas deram lugar ao silêncio, depois do acordo. Mas, durante anos, os dois países continua(ra)m em "guerra” verbal.

Porém, em Abril de 2018, os presidentes desses dois Estados da Ásia, Kim Jong Un, ainda no poder na Coreia do Norte, e Moon Jae-in, que liderou a Coreia do Sul, até Maio do ano passado, deram um passo histórico, quando, na DMZ, assinaram um tratado de paz para encerrar oficialmente a guerra.

Após fazer esse relato a um grupo de jornalistas africanos e europeus que visitou, recentemente, a Coreia, o jovem militar sul-coreano, destacado na DMZ, fez uma pausa. Elevou ao queixo uma espécie de antena de rádio, que usava para indicar traçados em mapas e figuras numa exposição. E balanceava a parte inferior do corpo.

Nesse momento de silêncio, imagens da guerra civil angolana, que durou perto de 27 anos, tomaram conta do repórter deste diário. O jornalista não chorou, desta vez, embora se mostrasse bastante emocionado, com a batalha entre coreanos que provocou a morte de milhares de pessoas em três anos.

Porém, a visita ao lugar que separa as duas Coreias tinha de continuar. O jornalista estava mais animado. Durante quase hora e meia, os militares, que recebiam especialmente a equipa de escribas, parece, até, que pretenderam levar os visitantes à guerra. E conseguiram! Foi, pelo menos, a sensação com que ficaram os repórteres, quando afirmaram em coro, embora em línguas diferentes, que estavam no palco da batalha.

Paralelo 38, antes da DMZ

Durante a exposição, o jovem militar sul-coreano fez uma longa explanação sobre "O Paralelo 38”. Explicou que este situa-se ao lado esquerdo da Coreia do Sul e à direita para a Coreia do Norte.

O Paralelo 38 é uma linha divisória imaginária, que foi sugerida pela primeira vez, em 1896, para dividir as Coreias.

Tudo começou quando, nesta altura, o Império Russo procurava ter sob seu domínio este território asiático. Porém, o Império Japonês chegou a ter reconhecimento do Império Britânico sobre os seus direitos na Coreia.

Para evitar qualquer tipo de conflito, o Governo do Japão propôs ao Império Russo que os dois lados da Coreia fossem separados ao longo do Paralelo 38. Mas, esse acordo estava difícil de ser alcançado, o que fez com que o Império japonês assumisse o controlo total da Coreia, em 1910.

Após o Japão libertar a Coreia, em 1945, o Paralelo 38 passou a ser considerado como o limite dos dois territórios vizinhos; Norte e Sul, pelos Estados Unidos, ao dividir, praticamente, ao meio a península coreana.

A partir de 1948, esse Paralelo tornou-se a fronteira entre as recém-criadas Coreia do Norte e Coreia do Sul, como dois países novos, na altura.

Passados três anos, dois países entraram em guerra. O Exército norte-coreano atravessou o Paralelo e invadiu a Coreia do Sul.

Após o armistício que pôs fim à Guerra da Coreia, em 1953, a linha de demarcação foi estabelecida através da mediação da Zona Desmilitarizada da Coreia.

Esta linha de fronteira atravessa o Paralelo 38, num ângulo agudo, a partir do Sudoeste para o Nordeste e, actualmente, serve como a Linha de Demarcação Militar entre a Coreia do Sul e a Coreia do Norte.

Um lugar de encantos

A questão da guerra, apesar de fazer parte de um passado, de 70 anos atrás, os coreanos nunca a esqueceram. Porém, essas cenas de uma história triste atrai centenas de pessoas por dia, entre turistas nacionais e estrangeiros, que vão à DMZ contemplar os encantos paisagísticos e aprender mais sobre como as Coreias foram divididas.

Antes da guerra, reza a história que a zona onde está a actual DMZ era um espaço de cultivo agrícola. Depois do conflito armado, o lugar tinha ficado intacto, o que permitiu que a natureza voltasse a dar o "ar da sua graça”. Hoje, apesar de ser uma zona subdesenvolvida, é das que tem muitos ecossistemas diferentes, como florestas, estuários (áreas de transição entre a terra e o mar, entre a água doce e salgada) e pântanos, onde as aves migratórias gostam de ficar.

Além dos animais e plantas, o lugar acolhe dois pequenos povos neutros que vivem perto da linha divisória. Dum lado, os norte-coreanos, e do outro, os sul-coreanos. Apesar de estarem próximos, estes habitantes não se comunicam.

O pouco tempo de visita à DMZ não permitiu que se divisasse outras belezas do lugar. Mas, o cicerone deixou transparecer que a zona costuma ser apelidada de "o manto de espécies de peixes, mamíferos e aves”.

Depois de assistir a um curto vídeo sobre a transformação da DMZ, numa sala onde estavam dezenas de visitantes, os jornalistas conheceram, alguns à distância, outros pontos de entretenimento, cultura e história, com destaque para a Ponte da Liberdade, o Observatório Dora/Estação Dorason, o Terceiro Túnel de Infiltração e a Área de Segurança Conjunta (Panmunjom).

Normalmente, os turistas que visitam a DMZ, uma área de alta segurança militar, tomam, também, contacto com a Lagoa da Unificação, uma espécie de península coreana. Nesta zona, é comum assistir ao disparo de flashes fotográficos. Bem ao pé deste ponto está o Sino da Paz.

  Terceiro Túnel: um ponto de resistência

Depois de visitar vários pontos, juntamente com outras dezenas de turistas, incluindo a Sala de Exposição, Jonas Ossombery, do L’Union do Gabão, Tesfay Desta, da Agência de Notícia da Etiópia, Mpoki Thomson, do Citizen Newspaper, da Tanzânia, além do autor destas linhas, tinham um desafio a enfrentar: descer e subir o Terceiro Túnel de Infiltração.

Esta operação foi dos momentos mais difíceis da rota turística na DMZ, tendo em conta a inclinação acentuada do lugar e as baixas temperaturas dentro do túnel.

O Terceiro Túnel de Infiltração tem 1,635 metros de comprimento, dois metros de largura e igual dimensão de altura. Mas, nalguns troços do trajecto, as rochas sobressalentes obrigam os visitantes com altura acima de 1,60 a andar com o tronco curvado, para evitar acidentes.

Para aceder ao túnel, construído durante a guerra, supostamente pela Coreia do Norte para espionagem do acampamento do adversário, e descoberto mais tarde pelos sul-coreanos, o turista não pode levar equipamentos electrónicos. Por isso, telefones, tablets ou outro material de filmagem são deixados numa área apropriada.

Este é o túnel mais visitado, mas não o único. Entre os anos 70 e 90, a Coreia do Sul tinha descoberto três outros túneis. O primeiro foi em Novembro de 1974, por uma equipa de buscas, a oito quilómetros a Norte de Gorangpo.

Este túnel tem 90 centímetros de diâmetro e 1,2 metro de altura. Apresenta 3,5 quilómetros de trilhos e carreta ferroviária.

O segundo túnel foi encontrado, em Março de 1975. Fica a 13 quilómetros ao Norte de Chul-won. Aqui, uma máquina de perfuração subaquática tinha feito 45 furos. Dessas perfurações, sete penetraram com sucesso no túnel.

Este túnel, segundo o militar que orientou os visitantes, tem 50 metros de profundidade, 2,2 metros de diâmetro, dois metros de altura e 3,5 quilómetros de comprimento.

A saída Sul deste segundo túnel é dividida em três direcções. É cerca de cinco vezes maior que o primeiro túnel, possibilitando que 30 mil soldados armados pudessem andar nele em uma hora, juntamente com veículos que incluem artigos de campo.

Houve um quarto túnel. Foi encontrado em Março de 1990, a 26 quilómetros a Nordeste de Yangsu. Localizado a 1,2 quilómetros da Linha de Demarcação Militar, a altura do túnel e o diâmetro são de 1,7 metros, a profundidade é de 145 metros e o comprimento é de 2.052 metros.

Mas, a nossa visita foi no Terceiro Túnel de Filtração. Este foi descoberto em Outubro de 1978, quando um jorro subaquático, durante uma expedição, revelou a sua forma.

Localizado a apenas 52 quilómetros de Seul, é considerado o mais teatral do que o primeiro e o segundo túneis. Tem dois metros de diâmetro e igual dimensão de altura, 1.635 metros de comprimento e uma média de 73 metros abaixo da superfície.

Tal como o segundo, este terceiro túnel tem três saídas no extremo Sul e capacidade para permitir a passagem de 30 mil soldados armados por hora.

O trajecto é duro. Ao descer, a inclinação é bastante acentuada, que, nalguns pontos, dá a sensação que se está a correr. Mas, o mais desgastante é o regresso. Muitos fazem determinadas paragens para suportar o desafio de sair do túnel.

Há, igualmente, casos de uns que desistem logo à partida. Primeiro é a humidade dentro do túnel. Depois, o esforço físico que se exige. Aliás, não foi à toa que Thomson, que é, até, fisicamente mais forte entre os jornalistas, desistiu 15 minutos depois de entrar no túnel.

Jonas conseguiu entrar e sair do túnel, tal como o autor dessas linhas e os outros jornalistas e suas respectivas tradutoras (todas coreanas). Porém, o primeiro, além das muitas paragens durante o retorno, apesar da humidade, saiu do túnel bastante esgotado.

  O Norte visto de perto através do Observatório Dora

Depois de sair do Terceiro Túnel de Infiltração, os visitantes são levados para o último ponto de atracção turística. Trata-se do Observatório Dorasan ou Dora, onde o turista tem uma visão geral da Zona Desmilitarizada Coreana.

A partir do Observatório Dora, através do uso de prismáticos, que são equipamentos visuais sofisticados e de longo alcance, do lado Sul, vislumbra-se o Norte.

Por causa dos prismáticos, instalados num edifício erguido no topo do Monte Dora ou Dorasan, construído em 1986, os turistas nacionais e estrangeiros costumam considerar o lugar como o ponto mais fácil de estar na Coreia do Norte, mesmo dentro do território sul-coreano!

Por exemplo, a partir do Observatório Dora, é possível avistar no território norte-coreano a conhecida "Cidade Fantasma” de Kijŏngdong, construída para a propaganda do regime norte-coreano.

A pequena cidade, erguida nos anos 50, era um lugar que, supostamente, abrigava soldados. Hoje, é tida como uma zona de "mentirinha” ao se descobrir que os prédios que a constituíam eram apenas cenários e as pessoas figurantes.

Além de permitir que se divise quase toda a fronteira entre os dois países, no Observatório pode-se ver, igualmente, os postes pintados na parte Sul e os sem cor no Norte, lugares próximos de onde os Presidentes dos dois países assinaram os acordos de harmonia em 2018, a chamada Área de Segurança Conjunta (JSA).

Por norma, é na JSA, um prédio no meio da DMZ, onde os governantes dos dois países, às vezes, se encontra(ra)m para discutir e tentar acabar com os cenários conflituosos.

O acesso à JSA é difícil, pois carece, inclusive, de autorização especial do Governo sul-coreano e das Nações Unidas, que, juntamente com os Estados Unidos, tomam conta da DMZ.

Mesmo quando a visita estiver autorizada, essas entidades podem cancelar a presença de turistas, dias antes, caso haja animosidades entre os dois países, para evitar colocar em perigo a vida dos visitantes.

A Zona Desmilitarizada foi o último ponto das visitas que a equipa de jornalistas fez à Coreia. É uma viagem de autocarro de cerca de duas horas, a partir de Seul.

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