Cultura

A guitarra angolana e os seus precursores

Como em tudo na vida há uma história para contar. O surgimento da música popular e urbana em Angola está intrinsecamente relacionado com a inclusão do violão ou guitarra como instrumento basilar da sua afirmação e sustentação

23/05/2021  Última atualização 19H12
© Fotografia por: DR
O uso da viola convencional no nosso país é secular e está assinalado desde os primórdios do século XX quando, reza a história, o músico João Baptista Sanches, de origem cabo-verdiana, criou uma escola de violão.

Pouco depois, os irmãos Assis, Fernando e Mário surgem igualmente com a sua escola de música e durante várias décadas outros interessados criam escolas de violão e piano, casos das famílias Mirumba, Murimba e Webba, sem serem suficientes nas suas épocas para os ensinamentos, pesquisa e divulgação dos primórdios da música angolana.

Aurélio de Oliveira Neves "Voto Neves”, nascido em 1880 e falecido aos 81 anos de idade, isto em 1961, surge também como uma das referências entre o início e meados do século passado, como tocador de violão. Era musicólogo, poeta e compositor, e além disso também tocava acordéon e harmónica.

Carlos Aniceto Vieira Dias "Liceu”, que tinha sido instruendo das escolas da família Assis, é a figura a quem, na década de 40, viriam a concentrar-se as atenções generalizadas dos amantes da música ao notabilizar-se como guitarrista sublime, em embrionários grupos musicais, caso dos Sambas. Liceu Vieira Dias, nascido em 1919 e falecido em 1994, cria o lendário Ngola Ritmos em 1947 e é, ao que se ouve dizer, o primeiro a estilizar temas do género musical Semba. Nesse feito contou com a cumplicidade dos inseparáveis companheiros e guitarristas Nino Ndongo e José Maria dos Santos, aos quais se junta anos mais tarde o também guitarrista José Cordeiro.

É facto que com o surgimento do Ngola Ritmos estabeleceram-se as bases para o que de seguida se passou a chamar Música Popular Angolana.
Fora do meio urbano luandense, entretanto, de São Salvador, actual Mbanza Kongo, surge o Grupo São Salvador liderado por Manuel de Oliveira e integrado pelos guitarristas Henrique Freitas e Jorge Eduardo, que emigram para o Congo/Kinshasa, em 1949. Estes inserem-se dentre os autores dos primeiros sucessos da chamada Rumba Congolesa, cantando e tocando com Wendo, Francó e Dr. Nicó, que viriam a tornar-se nas maiores figuras da guitarra no continente africano e bastante referenciadas no nosso país.

A esta gesta pioneira seguiu-se o surgimento de distintas gerações de guitarristas que ao longo das últimas seis décadas brindam a música angolana com bonitas melodias, muitas das quais verdadeiros clássicos com recortes de genialidade.

meio rural para o urbano e Duia, por sua vez, assumiu-se como o primeiro grande guitarra-solo da música angolana e fonte de inspiração para a nata de solistas que emergiram nas décadas de 60 e início dos anos 70, com natural destaque para os casos dos fenomenais Marito e Zé Keno, aos quais se somariam Dominguinho, Nito Saraiva, Mário Fernandes, Baião, Belmiro Carlos "Nito”, Quental, Constantino, Nelinho Airosa, Botto Trindade e Brando. Só para citar estes.

Sebastião Matomona, do Quinteto Angolano, dos Ngoma Jazz e do Cabinda Ritmos, outras referências da música dos anos 60 e início de 70, emerge como solista de referência em Luanda, transportando de forma ainda mais acentuada a rítmica das regiões fronteiriças à Norte, com os Congos. 

Abre-se um parêntesis para vincar que toda a música popular e urbana é híbrida. Ganha empréstimos. Acasala com outras sonoridades de origens próximas ou distantes. E a música angolana, embora tendo a sua identidade própria, obviamente, não foi nem é excepção.

Os músicos aqui citados constituem a principal referência da guitarra-solo angolana, alcandorados como solistas de eleição ainda no período anterior a proclamação da Independência Nacional.
São deles a autoria da quase totalidade dos solos e arranjos musicais que embelezam os temas classificados por muitos de nós como os grandes clássicos da música angolana.

A este escol de criadores junta-se a versatilidade de um Carlitos Vieira Dias, filho de "Liceu” e seguidor na linha que define o padrão da guitarra angolana, raro e sublime na execução das violas solo, contra-solo, ritmo e baixo. Carlitos foi maestro nos grupos em que passou.
Outro virtuoso homem da viola, a quem nesta homenagem é obrigatório destacar, é o investigador e professor de guitarra Mário Rui Silva, estudioso de música angolana e refinado executante de guitarra acústica.

Fulgurante foi o retorno ao país, após a proclamação da Independência Nacional, da plêiade de guitarristas radicados no Congo/Kinshasa, capitaneados pelo jovem Teddy Nsingui da orquestra Inter Palanca de Matadidi Show. Tão notável foi a aparição destes que até ao presente Teddy Nsingui dá mostras da sua criatividade pujante e reconhecida competência nos mercados nacional e internacional.

Outros rebentos, entretanto, foram emergindo com natural realce para o arranjista e orquestrador Betinho Feijó, a quem se atribui a responsabilidade na estética que o Semba assumiu desde a viragem do século e entrada no novo milénio.
Além de Betinho Feijó, outras figuras pródigas da guitarra-solo emergiram com notoriedade, casos do talentoso Simons Mancini, Alex Samba, Zé Mueleputo e mais recentemente do jovem Texas, apenas para assinalar os mais destacados.

Até aqui falamos basicamente dos guitarra-solo e da sua trajectória ao longo da história da Música Popular Angolana. Mas não está tudo dito. Na chamada África Negra, de facto, é a guitarra-solo que comanda os destinos da música na sua concepção e execução. Mas, genericamente, a sua acção é complementada com as intervenções das guitarras-ritmo e baixo, e nalguns casos do contra-solo, contra-ritmo e contra-baixo.

Em Angola, Dúia foi o primeiro solista de eleição. Seguiram-se-lhe Marito e Zé Keno. Mas, entre nós sempre existiram os ritmistas de refinado pendor melódico e harmónico. O que falar da classe de figuras como Almerindo Cruz, Zeca Tirillene, Mingo, Teta Lando, Gino, Dulce Trindade, Betinho Feijó, Alfredo, Kintino e Pirica Dúia? Isto sem menosprezar os demais.

Na classe dos baixistas, outro instrumento fundamental na manobra de qualquer banda musical, o que dizer do desempenho de um Voto Neves (filho) no Grupo Ngongo, Carlitos Vieira Dias, Humberto Vieira Dias, Caetano, Manuel Claudino "Manuelito”, Marques Trindade, Carlos Timóteo "Calilí”, Moreira Filho, Kinito Trindade, Carlitos Chiemba, Eduardo Paim, Mingo Kanhoto e Mias Galheta? Grandes tocadores.

Para a conclusão do elogio aos guitarristas angolanos, mais algumas achegas que o momento em si exige.
O escritor, etno-musicólogo, maestro e professor de música, Jorge Macedo, debruçando-se sobre esta classe artística escreveu o seguinte: "Na execução do Semba, a célebre viola-solo exerce um papel considerado de ornamentação, reforço e comentário. Os efeitos que a viola-solo produz tornam-na instrumental, na menina histórica encarregada de voar, de fazer voar as sensibilidades por mundos afectivos em espaços ilimitados. A viola-solo comenta, faz flores musicais e estende a melodia por outras trajectórias análogas, subtis, ricas. Na música Semba ela está presente cobrindo espaços que lhe são cedidos para a variação e ornamentação”. Fim de citação.

Ao executante de viola, no geral, é exigido talento, capacidade na execução, criatividade e profundo conhecimento da grandiosidade do instrumento musical que tem em mãos.
Quando assim acontece, o dedilhar de um violão pode exaltar de forma perene os sentimentos do incauto ao mais exigente dos mortais. Vai ao encontro do pleno. Atinge o âmago. Transforma-se em mais do que um amparo. Faz vibrar, lacrimejar, reflectir, vira fonte de inspiração, enfim… Um misto de sensações que tornam a viola num instrumento musical fascinante.
E este fascínio é merecedor do reconhecimento e apreço de todos nós.
Guitarristas angolanos, muito obrigado!

Gilberto Júnior |*
*Texto de apresentação da Gala do Top dos Mais Queridos de 2016, em Ndalatando, no Cuanza-Norte, dedicado aos guitarristas

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