Cultura

“A poesia e de um modo geral a literatura salvaram-me”

O poeta e crítico literário Lopito Feijóo recebeu na última quarta-feira, em Luanda, o galardão do Prémio Guerra Junqueiro das mãos da curadora Avelina Ferraz. Não cabendo em si de satisfação, Lopito Feijóo concedeu dias depois ao Jornal de Angola a entrevista que a seguir se publica, onde fala do seu percurso poético e de vida. O poeta assume-se como defensor de todas as “justas causas” e confessa que a poesia, e de um modo geral a literatura, são responsáveis por continuar vivo.

25/04/2021  Última atualização 09H03
© Fotografia por: DR
O Prémio Guerra Junqueiro é para si um momento alto de consagração da sua carreira literária?
Eu nunca me propus fazer carreira alguma, nem sequer pensei em fazer carreira literária, mas, sempre pensei ser um escritor e, mais concretamente, um poeta.  Na verdade, não me simpatizo muito com a palavra carreira. Acho-a pouco "palavra”, ou mesmo direi, pouco poética. Palavra para mim tem que ser ou tem que ter um mínimo de poeticidade. Eu suspeito e duvido muito da densidade e consolidação de algumas ditas carreiras em todas as áreas das sociedades. Até porque a mídia   e as redes sociais hoje promovem tudo e mais alguma coisa, muitas vezes sem  critérios meritórios.   
Entretanto, reconheço que a atribuição do prémio em referência ao escritor que sou, constitui um dos mais sublimes e singelos momentos da minha vida artística, pois é o reconhecimento de pouco mais de 40 anos de vida artística e literária.   
 
 
Publicou várias obras em Portugal, onde vai regularmente a festivais literários e em Moçambique é dos escritores angolanos mais conhecidos. No Brasil em determinados meios literários também é conhecido, tal como em Cabo Verde e na Guiné-Bissau. Tudo isso graças a um esforço pessoal?  
Sim. A resposta está dada. Tudo isso graças a um esforço pessoal com muitos sacrifícios espirituais e até materiais, pois uma internacionalização de vida literária implica pesados custos ao orçamento doméstico do simples, humilde e pobre cidadão amante das letras, num contexto político e social onde as questões espirituais e os motivos de prestígio ainda são subalternizados e não valorizados pelos departamentos governamentais "a quem de direito”, como se diz popularmente. Não queiras saber nem imaginas quanto tenho gasto ou já gastei para a promoção da literatura e da cultura angolana além-fronteiras.  São milhares de divisas cujo retorno vai surgindo paulatina e progressivamente no âmbito de um acumular de prestígio para nós, para a cultura angolana e para a nação e o povo angolano em geral… mesmo sem os necessários apoios e reconhecimentos oficiais do Estado.    

 
Como é que um menino que cresceu no Cazenga acaba por estar no centro de movimentos literários como a Brigada Jovem de Literatura e o OHANDANJI?
Esta pergunta merece uma resposta deveras quilométrica. Entretanto, vou em poucas palavras dizer que tudo acontece e vai acontecendo com base em princípios fundamentais que norteiam a minha postura social.  A humildade, a simplicidade, o foco, o desprezo pela vaidade, o desprezo pelos motivos de poder como os cargos e encargos disso e daquilo e outros quejandos. O amor ao próximo e o respeito pelo "outro”, vivendo e convivendo intensamente um dia após o outro, pois, como também tenho dito, o futuro é coisa dos deuses e o meu futuro hoje já é presente.   

 
Nos anos 80 os escritores da sua geração tinham plena consciência de que faziam a ruptura e que eram agentes de uma transformação histórica na literatura angolana?  
Definitivamente ganhei consciência de que estava num processo de ruptura com o passado quando, em companhia de alguns outros confrades brigadistas vimos a necessidade, e tivemos a oportunidade, de romper   publicando em 1984 o manifesto estético-literário OHANDANJI, do qual resulta a poética que ainda hoje cultivamos e que continuamente nos vai consagrando. Quero dizer que tudo o que fizemos e ainda vamos fazendo, foi feito e continuaremos fazendo conscientemente. Com carma, alma e sempre mais carma.

 
Eram muitos os que escreviam naqueles anos, hoje sobram poucos. Muitos perderam o entusiasmo pela escrita, uns foram levados pela morte ou arrastados por outras correntes da vida. Quer evocar nomes, coetâneos que injustamente estão esquecidos mas que foram importantes no percurso da vossa geração?  

Esquecidos? Não existem ou não conheço. Existem sim os de pouca entrega e como tal menos divulgados pela comunicação social em razão do muito pouco dinamismo das suas acções, pois poucos são os que sabem que o trabalho do qual resulta a afirmação artística implica entrega, coragem, sacrifícios do corpo e, simultaneamente, da alma, e fundamentalmente persistência, insistência e consciência. Olha que nem todos os humanos e jovens estão predispostos a suportar a maledicência, a intriga, a inveja e, não raras vezes, a calúnia que grassa no mundo das artes, das quais a arte literária não escapa. Portanto, os que se afirmaram e se vão consagrando o fizeram e vão fazendo com vontade e entrega pessoal. Os esquecidos, esqueceram-se e basta, pois são fortes os que se demarcam e se distinguem no âmbito da história universal.   

 
Como é que o Lopito foi a deputado? Nos dias de hoje como é que considera aquele período da sua vida: um parênteses na sua carreira literária?   
Num dos momentos mais difíceis e conturbados da vida dos angolanos, a mãe pátria fez um chamamento ao qual respondemos afirmativamente, representando no Parlamento, em razão da nossa representatividade e popularidade, o partido que achávamos estar em condições de melhor dirigir e conduzir o destino e os desígnios de todos os angolanos sem distinção e que, era naturalmente, o partido que estava no coração da maioria dos angolanos, tal como ficou provado nas urnas daquela altura. Entretanto, passaram-se 30 anos e a realidade sócio-política cambalhotou.  Mudaram-se os tempos, os templos, as vontades e as verdades e também as imprevistas vantagens. A poesia  e a literatura, de uma maneira geral, salvaram-me. Vi os propósitos que tinha cambalhotarem e fui salvo justamente por nunca ter feito o tal interregno ou parêntesis, de que me falas,  na minha vida literária.  
 
 
A rebeldia é muito associada à sua escrita e foi uma das razões invocadas para lhe darem o Prémio Guerra Junqueiro. Essa qualidade é que o torna tão popular entre as novas gerações de escritores?  
Sim. Quero crer. Sem vergonha de ser o que sou e como sou, faço por ser um patriota, um ser vertical, sempre com um olhar circunferencial olhando para a frente, para trás, para os lados, para cima e para baixo para não pisar ninguém mesmo sem saber. Faço por ser o mais honesto possível, frontal, coerente, correcto, claro e conciso. Apoiando sempre os jovens ávidos do saber e com vontade de aprender. Tendo também os meus defeitos, reconheço em mim algumas das qualidades do escritor Guerra Junqueiro, que foi também um grande tribuno.

 
Sente que a novíssima geração de escritores é portadora de algo realmente "novo” na literatura angolana?  
Pretendo ser prudente, para depois não voltarmos a falar nos "injustamente esquecidos” pela história. Existem referências e indícios de uma certa pujança autoral no domínio das letras, mas isso só não basta. Vamos dar tempo ao tempo porque nisto de afirmações  e consagrações artístico-literárias, como dizia Rilke, um ano não conta e dez são o mesmo que nada. Os jovens literatos têm na sua frente todo o tempo para nos mostrar que estão em condições de saltar as barreiras do seu próprio tempo.  Nada de pressas, apesar de que também já as tive.


Os seus últimos livros pretendem enunciar poeticamente uma "doutrina”, o que aliás se vê logo pelos títulos. Quais são os preceitos dessa doutrina? Qual é a lição ou a sabedoria que sintetizou da vida e quer passar aos leitores?  
Doutrina é algo que arquitectei e que venho construindo há mais de três décadas, por isso, os preceitos dela não cabem no espaço desta conversa. Brevemente será publicado um livro de estudo com mais de duas centenas de páginas da autoria de um historiador e crítico literário espanhol, onde tudo será explicado para a fruição, compreensão e governo dos nossos leitores.
 
 
A sua poesia é altamente política, na medida em que além da crítica social chega a questionar o próprio sistema político. Sente que a sua palavra é lida, é ouvida, no sentido de ser tida em conta?  
Sinto sim! Sou lido. Sei e constato que os meus textos de intervenção estão na boca e na mente do povo que calcorreia as ruas, vias e vielas das nossas cidades. Tenho sido abordado constantemente pelas pessoas que recitam, dizem e me lembram de alguns versos e poemas meus. Assumo-me como um autor engajado na defesa de todas as justas causas e constato que, entre nós, grassa ainda excessiva injustiça em todos os domínios da vida. Desde o social ao económico passando pelo jurídico. Nunca misturo a política, pura e dura, com a poética identitária, embora reconheça que toda a boa e grande poesia é poesia de amor, doutrinária, popular e revolucionária e, assim sendo, acaba por ser política.
 

Quando olha para trás, para a sua obra, conclui que usou as palavras certas para dizer as coisas certas? Ou sente que seria capaz de reescrever tudo ou quase tudo?  
Tudo o que falei e escrevi está falado e está escrito. Nunca me arrependi de ter dito ou ter escrito o que disse e escrevi. Filosoficamente aprendi que há sempre um lugar para cada coisa, por isso eu não suporto ver coisas, sejam lá quais forem, fora do lugar e, principalmente, irrito-me sempre que descubro qualquer palavra fora do lugar em que devia estar, no âmbito do trabalho oficinal, porque as palavras devem sempre significar e representar as coisas e os sentimentos certos, mesmo quando são usadas em sentido figurado  no âmbito dos exercícios de versificação. Resumindo, direi que do ponto de vista conteudístico ou ético jamais mudaria uma ideia ou um pensamento mas, na minha condição de experimentalista, sempre que tiver que mexer na estética ou forma dos textos, não hesitarei porque, como dizia o poeta Vinícius de Moraes,  certamente,  a beleza é fundamental e devemos sempre abrir os olhos para a beleza, pois ela, de acordo com o oráculo de Ifá, acompanha as coisas boas. Estou certo ou estou errado?
 

Actualmente tem uma dedicação completa à escrita? Considera-se um escritor profissional?
Sim, actualmente vivo a literatura 24 sobre 25 horas por dia. Tirando a Aminata [a esposa], a poesia foi, é  e sempre será a minha maior paixão. É por ela e com ela que morrerei e disso não tenho dúvidas. Considero-me um simples e humilde aprendiz de poeta. Um eterno trabalhador e batalhador pela palavra poética.  


Distinguido pelo conjunto da obra
João Fernando André

Escritores angolanos, críticos literários e amantes das letras testemunharam, na quarta-feira, 21 de Abril de 2021, pelas cinco horas da tarde, a entrega do Prémio Literário Guerra Junqueiro ao poeta J.A.S. Lopito Feijóo K. O acto solene teve lugar na União dos Escritores Angolanos. Coube à curadora do prémio, Avelina Ferraz, a entrega do galardão ao autor de "Imprescindível Doutrina Contra” e outras obras.
Nas palavras da curadora Avelina Ferraz, Lopito Feijóo partilha semelhanças poéticas com Guerra Junqueiro, porque ambos têm uma poesia de intervenção e inconformista. "A entrega do Prémio Guerra Junqueiro a Lopito Feijóo, na sala magna da União dos Escritores Angolanos, é uma mais valia e demonstra a internacionalização da literatura angolana”, salientou o secretário-geral da UEA, David Capelenguela.

Participaram na cerimónia diversas entidades. Destaca-se a presença do ministro da Cultura, Turismo e Ambiente, Jomo Fortunato, da secretária de Estado Elsa Bárber, do professor Carlos Feijó, do escritor Domingos Florentino e dos distintos directores dos gabinetes da Cultura dos municípios de Luanda.
Depois do músico Cândido Ananaz cantar dois poemas da autoria do escriba galardoado, o historiador e crítico de arte Adriano Mixinge apresentou uma nota crítica da obra do autor distinguido e o PCA da Edições Novembro, Drumond Jaime, em 17 minutos, entrevistou Lopito Feijóo.

Para J.A.S. Lopito Feijóo K., em Angola, o orçamento para a área social tem sido muito pouco. Questionado sobre os conflitos inter-geracionais, Lopito foi peremptório, ao afirmar que "os conflitos inter-geracionais são saudáveis. Não há nada de favor.” Quanto aos jovens, o Poeta Andarilho espera ver uma juventude comprometida com o país. "Quero uma juventude forte. Que defenda causas”, rematou o poeta, que também é o presidente da SADIA – Sociedade Angolana de Direitos de Autor.
J.A.S. Lopito Feijóo K. é o primeiro escritor angolano distinguido com o famigerado Prémio Literário Guerra Junqueiro, criado em 2017.

Isaquiel Cori

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