Entrevista

Afonso Vita : “Vamos colocar os vestígios da escravatura ao serviço do turismo”

André dos Anjos | Lobito

Jornalista

Doutorado em Geografia Humana aplicada ao Turismo pela Universidade de Coimbra, Afonso Vita é um académico que dedica particular importância à identidade cultural e ao manancial histórico do país. Há dias, apresentou em Luanda uma “Rota Turística e Cultural de Escravos em Angola”, projecto que pretende atrair para o país, afroamericanos descendentes de Angola. Nesta entrevista, entre outras coisas, fala do projecto.

19/06/2023  Última atualização 09H55
© Fotografia por: Edições Novembro

Apresentou há dias, em Luanda, um projecto designado "Rota Turística e Cultural de Escravos em Angola”, que visa, fundamentalmente, promover o turismo cultural, tendo como principal grupo alvo os afro-americanos. Como é que se operacionaliza isso?

Um projecto, como este, só pode ser operacionalizado com o suporte dos operadores turísticos, nacionais e estrangeiros, que actuam no mercado. Mas também com uma estratégia funcional de actracção e captação de turistas e visitantes.

 
Conhece exemplos, em África, bem-sucedidos neste tipo de iniciativas?

Sim. Gana, Senegal, Benim e Tanzânia, são exemplos de sucesso nesse nicho de mercado. Estes países conseguiram estruturar esse segmento do turismo, com o que conseguem atrair muitos afrodescendentes.

 
Pelo vasto conhecimento que tem em matéria de hotelaria e turismo, que aspectos precisam de ser melhorados para fazer de Angola um destino turístico apetecível, sobretudo na vertente do turismo cultural?

Em matéria de hotelaria, o país está minimamente preparado, pelo menos em termos de alojamento e restauração. Tem uma capacidade de oferta considerável, sobretudo, nas grandes cidades como Luanda, Benguela, Lubango, Sumbe e Malanje. Temos de reconhecer, no entanto, que as áreas que integram o projecto carecem ainda de investimentos, para agregar valor aos recursos turísticos e históricos existentes.

 
Que exemplos em África recomendaria Angola a seguir?

Em termos de reconstituição da geografia das rotas de escravos ou, se quisermos, da valorização, preservação e divulgação da história da parte do comércio triangular que nos toca, recomendaria seguir-se o exemplo do Benim, Gana e Senegal, as grandes referências em África, mas também o Brasil, que conseguiu recriar mais de 115 rotas ligadas a escravatura com o apoio da UNESCO.

 
Se quisermos nos cingir a África?

O Gana tem feito muitos investimentos nos últimos tempos, para captação da sua diáspora com uma estratégia forte, que inclui além da realização de "Fam Trips” e atribuição de nacionalidade aos seus descendentes.

 
No global, como avalia o mercado hoteleiro do país?

O nosso mercado hoteleiro está em franco desenvolvimento e tem vindo a dar mostras de recuperação dos impactos negativos da pandemia da Covid - 19, que afetaram, de maneira particular, o sector à escala global. Apesar da taxa de ocupação dos empreendimentos hoteleiros se situar ainda abaixo dos 50 por cento.

 
Qual é o número de camas disponível para turistas no país?

O parque hoteleiro angolano dispõe de 27.947 quartos, que perfazem 35.404 camas, excluindo o alojamento (pensões e hospedarias).

Uma das razões que elenca para fundamentar o projecto é o facto de o território que hoje é Angola ter sido um dos que mais escravos forneceu às Américas, cerca de 40 por cento, segundo estimativas, o que deixou fortes vestígios, que vão desde os lugares de captura aos de embarque, passando pelos sítios de concentração de escravos. Qual é o estado de conservação das vias de acesso a estas localidades?

Os vestígios ligados à história do tráfico negreiro, pelo menos os que integram a rota turística de escravos, estão quase em estado de abandono. Um dos principais objetivos deste projecto é preservar e valorizar os vestígios existentes e reconstruir ou recrear os desaparecidos ou em vias de desaparecimento. É, também, uma forma de mostrarmos ao mundo que valorizamos a nossa história e a nossa Identidade Cultural.

 

Na sua pesquisa identifica, salvo erro, 18 pontos com interesse histórico espalhados pelo país, entre lugares de concentração e de embarque de escravos, mas o roteiro que propõem resume-se ao Soyo, Ambriz, Luanda e Massangano. Que critérios ditaram a escolha?

Na verdade, identificamos nove localidades no país com vestígios do tráfico negreiro transatlântico, nas províncias de Benguela, Bengo, Cabinda, Cuanza-Norte, Cuanza- Sul, Malanje, Namibe, Zaire e Luanda. No entanto, tratando-se de um projecto que se pretende operacionalizar a curto prazo, achamos por bem resumir o roteiro a quatro localidades, que podem ser visitadas em oito dias.  A intenção é, como já disse, colocar os vestígios da escravatura ao serviço do turismo.

 

O projecto prevê a realização de um festival bianual designado "The Yalankuwu

Festival”, que vai juntar afrodescendentes e angolanos, no que se pode chamar um "reencontro” entre irmãos nascidos de um e de outro lado do Oceano. Para quando a primeira edição?

O "The Yalankuwu Festival” pretende ser um evento bianual de encontro e reencontro da Africanidade em Angola. A intenção é trazer ao país irmãos de várias geografias separados por razões históricas para, juntos, analisarmos o nosso passado comum, apontar caminhos e definir estratégias para prevenir a repetição da escravatura ou fenómenos si-

milares. Mas também pretende ser uma ponte entre Angola e a diáspora africana e uma oportunidade de terapia, para permitir que, tanto os promotores do tráfico de negreiro como as vítimas, possam conviver no mesmo espaço, reconhecendo os erros do passado e assumindo o compromisso de nunca reeditar a escravatura.

 
Para quando a primeira edição?

A primeira edição acontece já no próximo ano. Se tudo correr bem, em Agosto.

 
No essencial, em que consistirá o festival?

Na primeira edição, o festival vai incluir, entre outros momentos, uma mesa redonda sobre o comércio triangular e suas consequências; apresentação de oportunidades de negócios e parcerias, visita guiada ao Centro Histórico de Mbanza Kongo - Património da Humanidade, uma cerimônia de rituais e bênçãos, feira de artesanato e artes e concurso de gastronomia e dança entre as representantes das quatro localidades que configuram a rota turística.

 
Qual é o número de turistas esperado na primeira edição?

Atendendo à capacidade instalada em termos de alojamento e os esforços em curso do órgão de tutela para melhorar a situação, prevê-se um universo de 500 turistas, número que, com certeza, vai subir gradualmente de edição para edição.


Recentemente, uma família afro-americana descendente de angolanos, a família Tucker, visitou o país, num exercício de descoberta das suas origens. Como é que tudo isso começou?

A história da família Tucker começa com a descoberta que os próprios fizeram, a partir dos Estados Unidos da América, de que são  originários de Angola. Primeiro veio um membro da família visitar o país e, depois, em 2021, aquando da visita do Presidente João Lourenço aos Estados Unidos, onde foram recebidos pelo Chefe Estado angolano, Este convidou a família para uma visita colectiva. Depois vieram três membros da família e, na última deslocação, o número subiu para 19, incluindo amigos, que visitaram as províncias de Malanje, Cuanza-Norte e Luanda. Para este ano, as previsões apontam a vinda de dois grupos, um com cerca de 60 pessoas e o outro com mais de 40.

 
De que forma os operadores hoteleiros e turísticos, no país, podem contribuir para uma melhor operacionalização do projecto?

O país tem profissionais à altura, para todo o tipo de serviços hoteleiros e turísticos, podendo haver uma ou outra dificuldade, porque, para esse segmento de turistas, há necessidade de se prestar uma atenção especial.

 
Os trabalhos de investigação que conduziram à sua tese de doutoramento: "Desenvolvimento do Turismo Cultural e de Memória em Angola – Rota de Escravos” levou, nove anos, corrija-me se estiver errado. A que se deveu tanto tempo?

Certo, o doutoramento levou nove anos, porque tinha que conciliar o trabalho, com a formação académica. Nos primeiros anos, eu a leccionar na Universidade Privada de Angola ( UPRA). Tive de suspender a docência para prestar maior atenção à formação.  Em 2019 surgiu a pandemia da Covid-19 e o cenário complicou- se mais ainda, com o encerramento das fronteiras nacionais e internacionais.

 
Na sua tese de doutoramento dedica particular atenção à identidade cultural e ao manancial histórico e cultural do país. Sente que há pouca divulgação destes aspectos?

A divulgação do património histórico ligado à escravatura constitui uma missão determinante na valorização dos nossos valores históricos e culturais. É uma tarefa que devia engajar todas as forças vivas da Nação. A media tem responsabilidades acrescidas.

 
Entre as principais figuras angolanas que se bateram contra a escravatura longe da terra, e que cita na sua tese de doutoramento, destaca as que se notabilizaram no Brasil, mas não faz alusão a nenhuma que se tenha destacado na América do Norte. Como se explica isso? 

É verdade que entre as figuras históricas angolanas na diáspora destaca-se mais as que foram parar ao Brasil. Tal se deve mais à facilidade de acesso à informação do que a outros factores. Mas na minha tese de doutoramento são mencionadas figuras que desempenharam um papel preponderante nos Estados Unidos da América, como Ângela, a primeira mulher negra que chegou àquele país. Quando se assinala a chegada dos primeiros africanos naquela antiga colônia inglesa (há 403 anos), a história gravita à volta dela. Convém lembrar que o primeiro grupo de escravos que chegou aos EUA saiu de Angola.

 
Quer citar outras referências?

Podíamos falar do Jemmy, que liderou a rebelião Stono de 1739, na Carolina do Sul, a mais sangrenta e violenta revolta de escravos na história dos Estados Unidos da América. Durante um final de semana, com os patrões a descansarem, os escravos levantaram-se contra os  seus patrões, cortando-lhe as cabeças, como forma de reivindicar justiça e liberdade. Segundo relatos, Jemmy tinha domínio das armas e experiência que adquiriu no Reino do Kongo, onde foi seguidor da profetiza Kimpa Vita. Foi capturado e vendido como escravo, depois da morte do líder do movimento Antoniano.

 
Para quando a publicação em livro da sua tese de doutoramento?

A publicação do livro da tese está prevista ainda para este ano. Provavelmente, entre Agosto e Setembro.

 
Quando começa, exactamente, o tráfico negreiro?

O tráfico negreiro, também conhecido por comércio triangular, é um processo que teve início por volta de 1444 e que se foi consolidando gradualmente. Portugal foi pioneiro neste negócio e Senegal foi o primeiro território a sentir a amargura daquilo que se viria transformar em tragédia para os homens, mulheres e crianças africanas, transformados em mercadoria durante cerca de cinco séculos. Portugal não só criou, como monopolizou o comércio triangular durante 100 anos. Alguns investigadores falam em 150 anos. Inglaterra, França, Espanha e outros protagonistas entraram no negócio depois. A Bula Pontifícia emitida pelo papa Nicolau V, para o rei Afonso V de Portugal, a 18 de Junho de 1452, que ordenava a redução dos africanos infiéis, na visão do líder católico, à servidão, acelerou o processo.

 
E Portugal, como pioneiro no negócio, não ficou com uma parte de escravos?

A população de Lisboa quinhentista chegou a ter cerca de 10 por cento de negros, que eram usados como mão-de-obra barata, até, 1763, data da abolição da escravatura. Essa população diluiu-se completamente.


Passados quase 403 anos ainda é legítimo falar em feridas criadas pelo fenômeno?

O tráfico negreiro é considerado como o pior crime na história contra seres humanos. Marcou negativamente a África. Mas, o mais importante, hoje, não é encontrar culpados, mas sim reconhecer que foi um erro e que o mundo deve reconciliar-se com a sua história.

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