Reportagem

Alfarrabistas: Entre a sobrevivência e o amor à profissão pela venda de livros usados

Victória Ferreira

Os alfarrabistas têm sido desde sempre a alternativa para a compra de livros a preço acessível, mas nos últimos tempos os livros que vendem também já são considerados caros. Muitos leitores recorrem à Internet, onde baixam livros gratuitos, o que leva os homens da profissão que tanto serve aos intelectuais e aos estudantes a inovar para conseguirem vender os mestres mudos

21/04/2024  Última atualização 11H43
© Fotografia por: DR

Se antes vendiam os livros em tendas ou em quiosques, nas ruas da cidade ou mesmo nos mercados, os alfarrabistas procuram agora estar cada vez mais sofisticados para manter o negócio, numa altura em que se discute não só o fraco interesse pela leitura, como também o alto preço dos livros. Eles não apenas conhecem os títulos das obras bibliográficas, também desvendam os segredos que habitam nas suas páginas, para convencer o comprador.

Estêvão Monteiro, mais conhecido por Silas, lida com livros há mais de 20 anos, e, tal como os outros companheiros alfarrabistas, tem de imprimir uma certa dinâmica para poder vender. "Actualmente vendemos mais por encomenda, de acordo com a solicitação dos clientes, pois há uma fraca compra de livros devido a alta de preços. E se não soubermos selecionar os que mais têm probabilidade de serem vendidos,alguns livros podem ficar na estante até mesmo quatro anos. Como acontece”.

O negócio não é apenas reservado à venda de livros usados, actividade tradicional de um alfarrabista, mas também de obras novas. O estado de conservação determina os preços.

Inovar nas vendas

Estêvão Monteiro começou o negócio das letras com a venda de jornais em 2000. Ganhou o hábito da leitura e começou a coleccionar livros que adquiria no antigo mercado Roque Santeiro.

"Vender livros não é como vender um refrigerante. Somos obrigados a ler, a conhecer as obras e os autores, assim como a estar actualizado sobre o número de edições”, disse.

Só em 2011 Estêvão Martins começou a dedicar-se ao comércio de livros, quando a venda de jornais deixou de ser rentável e também por influência do mais-velho José António, um dos mais antigos nesta actividade em Luanda, lá para os lados do bairro Nelito Soares(Terra Nova)."De todo o negócio espera-se rendimento, e quando não dá o lucro esperado é preciso inovar”.

Segundo Estêvão Monteiro,  é necessário ter o domínio do negócio, pois quando se tem conhecimento sobre o autor, os títulos e as edições dos livros, para além do conteúdo, consegue-se passar mais informação ao potencial comprador, para o convencer a comprar.

"Se o comprador estiver à procura de um determinado autor, eu poderei indicar um outro que versa sobre a mesma matéria”, disse o alfarrabista.

Contudo, a adaptação não foi fácil para Silas, pois vendia na rua, sujeito a expulsão pelos fiscais, além da possibilidade de danificar e perder os livros.

"Em 2016 perdi cerca de 50 livros, todo o negócio das vendas. Tive de começar do zero e ir à luta porque tinha família para sustentar”, disse Silas, que é pai de seis filhos.

Um pouco depois dos Congolenses, num espaço em direcção à Estrada de Catete, Silas montou um contentor onde faz o comércio de forma mais organizada. Aprendeu a arte de empreender através das suas leituras e apostou na formação técnica em serralharia, electricidade e decoração de interiores. Tudo para aumentar os seus rendimentos. A venda de livros continua a ser a sua principal ocupação, é o seu dia-a-dia. Segundo Silas, existe uma permanente interação entre os alfarrabistas para a compra, troca e venda de livros entre si e para atender os clientes quando estes solicitam uma determinada obra.

 
Dificuldades na aquisição

Hoje a aquisição dos livros está cada vez mais difícil, pois antes podiam ser adquiridos através de fornecedores que os traziam de Portugal e do Brasil, mas que já não o fazem devido à inflação e às dificuldades na aquisição de divisas.

"O preço da alfarrábia pode variar entre os mil e os 30 mil kwanzas, e muitas vezes os leitores têm de escolher entre comprar um livro ou comida”, confessa Silas.

Na banca de Silas os livros de auto-ajuda são os mais procurados e podem ser vendidos a partir de 15 mil kwanzas. Os livros sobre empreendedorismo têm grande procura pelos jovens, assim como os técnicos."Apesar desses preços é aqui onde os estudantes conseguem encontrar livros mais baratos”.

 
Livros caros

O estudante do curso de Direito do Instituto Politécnico do Kilamba, António Caiombo, é apaixonado por Ciência Política e estava à procura de uma obra de Maquiavel, apesar de saber que existe no formato digital.

"Detesto livro digital.Prefiro apalpar e folhear um livro físico. Já houve tempo em que estiveram mais baratos, mas agora estão mais caros devido ao custo de vida”, disse.

O jovem Cristo Agostinho, de 18 anos, terminou o curso médio de Engenharia Informática e gosta de ler como passatempo. Finanças, Economia e Empreendedorismo são as suas preferências.No quiosque de Silas encontrou a obra "Pai rico, pai pobre”, de Robert Kiyosaki, que há muito procurava. Informou já ter assistido a uma palestra do autor, mas o preço de 28 mil kwanzas não estava ao seu alcance, apesar do desconto.

Já Sílvia Cadete estava a procura de livro usado de Língua Portuguesa da 9ª classe. Embora quase a terminar o ano lectivo, os professores obrigam à aquisição do livro.

A estudante Marlene Silva, de 18 anos, do 1º ano do curso de Direito, não esperava encontrar um exemplar do Código Civil, usado, a 15 mil kwanzas."Tudo está a subir, mas os livros na rua já foram mais baratos. Nem sempre os pais têm o dinheiro para a compra de livros”.

Sílvia Cadete tem consciência da importância do manual de Língua Portuguesa nas aulas, mas os parcos recursos financeiros levaram-na a adiar a compra e a priorizar outras necessidades. Queria pagar apenas 5 mil kwanzas pelo livro, mas não conseguiu convencer o alfarrabista a fazer-lhe o desconto pretendido e teve de ir a um ATM rever as "últimas economias” para acrescentar  mil kwanzas.

 
Fraca procura

Estabelecido no mercado do 30, em Viana, frente à Administração, Martins Chipaca, 47 anos, é alfarrabista há mais de 20 anos. Ele lembra do tempo em que os mais velhos iam às feiras e conseguia vender todos os livros.

Chipaca considera que os alunos actualmente lêem muito pouco e só compram livros quando são obrigados pelos professores. Dada a fraca procura,  já tentou outro negócio mas não se adaptou.

Martins Chipaca vive na Estalagem, em Viana, e também já vendeu na Feira Popular, mas saiu de lá por falta de clientes. Gramáticas, dicionários e manuais de matemática são os livros mais procurados.

Chipaca não fica parado na sua bancada em Viana. Põe os livros na mochila e vai ao encontro de outros colegas para vender, trocar ou comprar livros para atender a pedidos específicos de clientes."Trabalhamos como os camponeses que ao lançarem as sementes à terra esperam obter a colheita no futuro”, disse o vendedor, que cultua na Igreja Adventista do Sétimo Dia.

O alfarrabista revelou que tem de ter cuidado com as fontes, para não comprar livros roubados."Já comprei livros de alguém que os tirou de um familiar sem autorização. Este por coincidência os reconheceu na minha bancada. Também já comprei duas caixas de livros que foram tirados de forma ilegal de uma editora e eu não tinha a factura quando fui interceptado pelos fiscais”.

Chicapa tem alguns clientes fiéis que o procuram quando precisam de alguma obra.Como revendedor, a antiga livraria Mensagem passava-lhe os livros que estavam há muito tempo nas estantes. E de algumas editoras beneficiava de descontos.Por outro lado, levava para algumas livrarias livros que elas não tinham.

Martins Chicapa acredita que a fraca procura que se regista actualmente deve-se à Internet, onde as pessoas podem baixar livros gratuitos ou investigar sobre as várias matérias."Outrora já vendemos mais. Hoje os alunos já não querem investigar nos livros, apenas na Internet. Mas há uns poucos que ainda preferem livros e os compram”.

Tal como Estêvão Monteiro, Martins Chipaca opta por se cultivar sempre para ter argumentos para vender. A leitura já faz parte das suas paixões, sendo Agualusa, Pepetela e Robert Kiyosaki alguns dos seus autores de eleição.

Pai de quatro filhos, é da venda de livros que tira o sustento e paga a escola deles. Os livros tiveram uma grande influência na família, porque os filhos ganharam o gosto pela leitura, "têm um comportamento aceitável, passam menos tempo na rua e fazem as tarefas quando chegam da escola”.

 
É difícil vender conhecimento

A Baixa de Luanda, Congolenses, Asa Branca e Correios são os trajectos que Francisco Luanda, 46 anos,faz todos os dias em busca de novidades para os seus clientes.

O antigo ardina afirma que "vender conhecimento é algo muito difícil. Tem de se ter tácticas, muita fé e coragem, e sobretudo auto-domínio, porque nem sempre vendemos, pois não há tantos clientes”.

Segundo ele, os livros de Gestão, Economia, História e Liderança são os mais solicitados. Os de Direito já tiveram muita saída. De acordo com o vendedor, um exemplar do Código Penal pode custar entre 10 mil e 12 mil kwanzas. No entanto, o Código Civil sai ao dobro, de 22 mil a 27 mil kwanzas.

Francisco vende livros desde 1998. É uma paixão que transcende o comércio.Ao mergulhar nas páginas dos livros e tomar contacto com a sua essência, transmite ao cliente certa curiosidade e interesse, o que o leva muitas vezes a pedir uma cadeira para se sentar e comprovar lendo as páginas iniciais e o índice, acabando muitas vezes por comprar.

"Quando o cliente encontra um bom livro, paga por vezes com um desconto, porque entendemos a situação actual que não está fácil. E quando alguém compra um livro é de louvar”.

Por causa dos preços muitas pessoas, principalmente  estudantes, optam por cópias, que os alfarrabistas não vendem. Francisco Luanda apenas tem disponíveis obras originais. Ele sustenta que nas obras antigas não pode faltar nenhuma página "senão perdem o valor de venda”.

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