Reportagem

Análise estratégica da Batalha do Cuito Cuanavale (Concl.)

Vamos prosseguir com a presente reflexão, para depois incorporar outros dados. No contexto desta abordagem, de cariz estratégico, é preciso notar que houve duas decisões estratégicas de Estado.

02/04/2023  Última atualização 09H17
© Fotografia por: Edições Novembro

A primeira decisão é do Estado angolano que partiu do princípio de que era essencial conduzir operações ofensivas estratégicas contra os objectivos estratégicos da UNITA, pensando que assim elas enfraqueceriam as forças guerrilheiras e colocariam a UNITA numa condição desvantajosa.Também as FAPLA se convenceram de que, uma vez derrotadas a UNITA e as Forças de Defesa da África do Sul (SADF), seria possível exercer de imediato o controlo sobre o território na direcção Sudeste.

A segunda decisão é do Estado sul-africano que resolveu realizar contra-ofensivas estratégicas para contrariar os desígnios do seu oponente; impedir o aniquilamento da UNITA e evitar o avanço das forças contrárias em direcção à fronteira Sudeste. Mas também há que adicionar às duas decisões estratégicas governamentais, a decisão estratégica da UNITA. Do ponto de vista da estratégia guerrilheira, era essencial continuar a expansão da guerrilha a Norte; pressionar no Leste e no Centro. Evitando, desta maneira, o colapso do seu centro político coordenador. Esta era a natureza do jogo estratégico dessa conjuntura, mas tudo seria decidido no campo da batalha militar.

Avancemos, no entanto, para os níveis estratégico operacional e táctico em concreto.Quando arrancaram os movimentos ofensivos estratégicos das FAPLA, tudo indicava que os objectivos militares estavam  ao seu alcance devido ao sucesso inicial das suas forças em direcção a Mavinga.Mas a contra-ofensiva estratégica das Forças de Defesa da África do Sul (SADF) travou as FAPLA. Estas, no meio do fogo cerrado, manobraram, combateram e passaram à defesa na região do Cuito Cuanavale, em conformidade com as ordens do comando da Frente. Neste sentido, a decisão tomada pelo comando da Frente  Sudeste das FAPLA, em ordenar a passagem à defesa das suas unidades em dois escalões, simbolizou a necessidade de travar uma batalha estratégica defensiva com os meios de que dispunha e outros que seriam, certamente, agregados pelo comando superior.

Também é preciso perceber que o agrupamento militar angolano-cubano organizou a defesa com a elasticidadedesejada e dispôs os seus meios de artilharia em posições que lhe permitissem alcançar as forças inimigas. De igual modo, do ponto de vista defensivo, a defesa tinha "uma série de meios artilheiros e tanques desdobrados em linha”, bem como havia cerca de "11 brigadas” desdobradas em "campo aberto e baixo”. É por esta razão que o Tenente-General Fernando Mateus, do agrupamento das FAPLA, fez a seguinte observação: "o nosso sistema de defesa ficou reduzido em distância em mais de sete quilómetros. Tínhamos nove quilómetros à frente da linha de defesa, com possibilidades de abatimento do inimigo” . Este sistema defensivo foi vantajoso e favoreceu a agrupação das FAPLA e FAR.

À margem desta organização defensiva, é indispensável destacar que a defesa das FAPLA/FAR trabalhou de maneira coordenada com as Armas da força aérea e defesa anti-aérea, assim como não lhes faltaram os apoios da rectaguarda. Os bombardeamentos eos golpesdos esquadrões aéreos angolano-cubanoforam essenciais, na medida em que eles neutralizaram muitos dos movimentos ofensivos do inimigo e atacaram as suas posições. Deste modo, os agrupamentos das tropas sul-africanas e aliados tiveram baixas significativas.

Também, no decurso dos combates, a parte sul-africana disparou 20.000 projécteis de calibre 150 milímetros contra as linhas de defesa das FAPLA/FAR.Já os agrupamentos da aviação angolana efectuaram mais de 245 bombardeamentos em diferentes direcções da região do Cuito Cuanavale e descarregaram  oitenta e duas toneladas de bombas, até ao dia 30 de Novembro de 1987,conforme atestam os registos da então FAPA/DAA .Essas acções prosseguiram até Março de 1988, representando um apoio de grande relevância para as tropas que se encontravam nas linhas de defesa. Também as forças inimigas tiveram perdas acentuadas em meios aéreos devidoàs"emboscadas aéreas”  das unidades das FAPLA.

Na verdade, estas questões contribuíram, como um todo, para o vigor da defesa estratégica das FAPLA/FAR no Cuito Cuanavale. Assim, a fortaleza inexpugnável do Cuito Cuanavale manteve-se de pé.

No entanto, qual era,nessa altura, a situação real das Forças de Defesa da África do Sul (SADF) no campo de batalha? O articulista de assuntos estratégicos e tácticos, Kelly Bell, interpretou o estado das forças sul-africanas da seguinte maneira:

"A recusa sul-africana em sofrer baixas, combinada com o aumento da resistência marxista, fez com que as operações caíssem pela metade. Seguir-se-ia o impasse. (…)

Com o objectivo de reduzir o conflito, Pretória implementou tácticas de contenção. A 82ª Brigada foi trazida para socorrer outras unidades da SADF que estavam exaustas dos combates (…). Um novo ataque lançado em 23 de Março, a Operação Packer, comprimiu as forças das FAPLA em um enclave cada vez menor ao redor da ponte Cuito Cuanavale e a 82ª Brigada iniciou um extenso campo minado para imobilizar o inimigo durante a campanha seguinte”.

Esta leitura do articulista caracteriza muito bem o estado de ânimo e o moral baixo das forças sul-africanas, mas também é visível o corte acentuado da realidade do campo de batalha. Isto é, as Forças de Defesa da África do Sul(SADF) introduziram essa e outras unidades, assim como desencadearam acções ofensivas. Mas estas redundaram em fracasso total por força das barreiras de fogo de artilharia e dos consecutivos golpes dos esquadrões aéreos das FAPLA/FAR. Mesmo assim as suas unidades blindadas procuraram avançar, mas tombaram nos campos de minas. Deste modo, as unidades sul-africanas paralisaram em definitivo e começou o recuo.

Diantedesta realidade do campo de batalha, assomam as  seguintes perguntas: Qual foi o desenlace concreto da batalha?Que tipo de batalha teve lugar? Quais são as consequências militares e políticas da batalha? As respostas, como um todo, constam da terceira parte desta comunicação.


Avaliação e significado da batalha  

Antes de mais, é preciso destacar que o comando da Frente Sudeste das FAPLA tomou, em Novembro de 1987, a decisão acertada, do ponto de vista estratégico-operacional, quando ordenou a passagem das suas tropas à defesa. Do ponto de vista estratégico, esse comando fez uma manobra estratégica defensiva de formato  retrógrado. Isto é, o comando da Frente Sudeste decidiu aproveitar as condições favoráveis do terreno do Cuito Cuanavale e os seus obstáculos naturais, para combater em condições mais vantajosas. Com a mudança de atitude e direcção estratégicas,a reorganização das forças no terreno competiu aos comandos das Brigadas das FAPLA. Mas mesmo assim foi necessário colocar no terreno entidades militares de nível mais elevado, em busca de uma melhor coordenação dos esforços defensivos entre as unidades, o comando da Frente e o Estado-Maior General. Já  a profundidade da operação defensiva estratégica foi estabelecida em função das dinâmicas dos combates.

Quanto à sua duração, a operação defensiva estratégica do Cuito Cuanavale dependeu, em grande medida, dos desenvolvimentos dos combates ofensivos e defensivos. Estas foram as principais operações e acções tácticas, mas não houve  nenhum choque violento entre as forças das partes. No contexto das batalhas, o choque violento é de "valor considerável”. Mas, em abono da verdade, as partes fizeram tudo em busca da mudança estratégica. Neste ponto, os esforços estratégicos defensivos das FAPLA/FAR foram mais assertivos.

Do ponto de vista de duração, a Batalha do Cuito Cuanavale durou quatro meses. Isto é, começou em Novembro de 1987 e terminou no dia 23 de Março de 1988. Por outras palavras, ela iniciou com a passagem das FAPLA à defesa e culminou com a decisão sul-africana de terminar  a batalha estratégica ofensiva,devido à quebra de combate. Estrategicamente falando, uma batalha termina quando um dos contendores reconhece a "quebra da condição de combate”. Perante esse posicionamento militar, o comando das Forças de Defesa da África do Sul (SADF) decidiu retirar as suas forças do campo da batalha, mas de forma gradual. Desta maneira, os desenvolvimentos militares subsequentes, que tiveram lugar nas direcções Sudeste e Sudoeste, não se enquadram no contexto da Batalha do Cuito Cuanavale.

No contexto da presente abordagem estratégica, também é essencial valorizar a condução estratégica da guerra e o papel desempenhado pelo alto comando militar das FAPLA, particularmente o condutor dos esforços estratégicos da guerra, o Comandante-em-Chefe José Eduardo dos Santos. Do ponto de vista da estratégia, este ponto é central.

Desta maneira, o significado estratégico da Batalha do Cuito Cuanavale, segundo o Comandante-em-Chefe José Eduardo dos Santos, resume-se ao seguinte entendimento: "Nesta luta, o apartheid foi derrotado e perderam a face todos os seus aliados e apoiantes. A República de Angola desempenhou um papel de grande relevo ao participar exemplarmente com as FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola) em batalhas de grande envergadura contra unidades do exército sul-africano nas províncias do Cunene e do Cuando Cubango, que ocupavam ilegalmente, e onde foram derrotadas nas localidades do Cuito Cuanavale, Chipa e Calueque.

A batalha do Cuito Cuanavale foi uma das mais importantes que ocorreram na África ao Sul do Sahara, entre Angola e a África do Sul, depois da Segunda Guerra Mundial. Nela participaram mais de 24 mil homens. Do lado de Angola combateram mais de nove mil homens, com 62 tanques, 51 carros blindados, 113 peças de artilharia, 288 veículos de transporte, duas esquadras de aviões de combate e uma de aviões de apoio e reconhecimento, uma esquadra de helicópteros de apoio e resgate.

As vitórias abriram caminho para a assinatura em Nova Iorque, em Dezembro de 1988, do acordo entre Angola, África do Sul e Cuba, sob mediação dos Estados Unidos da América, pondo fim ao conflito regional e permitindo a independência da Namíbia, a libertação de Nelson Mandela e a abolição do sistema do apartheid. Deste modo, foi conquistada a libertação total de África e realizado um dos maiores sonhos do nosso Continente”.

 

Conclusões

A Batalha do Cuito Cuanavale é, por excelência, uma batalha estratégica defensiva.Ela entrou para os anais da história militar da África Austral, visto que moldou a região,do ponto de vista político, como um todo.Os seus resultados permitiram fechar o ciclo das lutas de libertação, à luz do grande ideário do Comité de Libertação de África da OUA. Do ponto de vista da arte da guerra, ela inaugura o surgimento do conceito de guerra de média intensidade,atendendo à envergadura dos combates ofensivos, defensivos, os meios e os homens. Assim, é legítimo que se introduza o conceito de guerra de média intensidade na tipologia das guerras. A Batalha do Cuito Cuanavale situa-se acima das batalhas das guerras de baixa intensidade.

 

 

NOTAS:

 

- Entrevista, Tenente General Fernando Mateus à Revista Pátria, Abril 2015 – Nº13 – Mensal – Angola, p.43.

 - Cf. Balanço sobre a FAPA/DAA até 30 de Novembro de 1987, Gabinete do Cdte. da FAPA-DAA, 1987, p.24.

  - André Feliciano Bimbe, Missões e Emprego da DAA nos Diversos Tipos de Acções Combativas, ISEM, 1999, p.8.

- Kelly Bell, Cold War Campaign: South Africa in Angola, Strategy &Tactics nº235 –June 2006.

Miguel Júnior

 


Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Reportagem