Entrevista

Cantora ARY: “Estou mais crescida, mas ao meu jeito”

Analtino Santos

Jornalista

Ary, uma das mais populares cantoras nacionais, com vários sucessos musicais e prémios, dona dos álbuns musicais “Sem Substituição”, “Crescida mas ao meu jeito” e “10”, concedeu uma entrevista ao Jornal de Angola onde, de forma aberta, falou do seu percurso artístico. Carinhosamente tratada por Diva Ary, a cantora deu a conhecer que, em Agosto, vai fazer um concerto em Lisboa, no qual contará com a participação de nomes sonantes da música angolana

25/06/2023  Última atualização 07H40
© Fotografia por: Edições Novembro

Ary, uma pequena apresentação...
Eu sou Ariovalda Gabriel, filha de Mário José Gabriel, o famoso professor de ginástica e de Maria José Cambinda, uma senhora bancária. Sou natural do Lubango. Vim para Luanda com cinco anos e daqui não saí mais.

 
É mais caluanda que mumuíla...
É verdade. Todos dizem que "esta tua boca não é da Huíla”, mas esta é a minha forma de ser. De facto, sou mais caluanda, porque a minha vida toda foi feita aqui e só voltei para o Lubango quando me tornei cantora famosa, muitos anos depois.

 
Qual a razão de tanta simpatia?
Sou assim, isto faz parte da minha característica. Desde pequena, gosto muito de fazer os outros rirem, não gosto de tristezas. Sou mesmo assim, não forço nada, é mesmo algo natural  e meu.

 Ary é uma artista muito extrovertida, excêntrica. Isso traz-lhe alguns dissabores e incompreensões?
Se Jesus não agradou todo o mundo, imagine eu que sou um simples ser humano. De facto, no início da carreira, foi duro, porque criticavam-me, apesar de gostarem da minha música. Mas, como pessoa, não conseguiam me engolir, pela minha maneira muito à vontade, simples e extrovertida. Ary não mudou até hoje, continua a ser a mesma Ary porque eu impinjo as pessoas a aceitarem a forma como sou.

 
Quando foi convidada para o Show do Mês, os showistas não a encararam muito bem...
Sim, de facto, pensaram que seria muita confusão, dizendo que a Ary não sabe estar, apesar de ter muito reportório. Mas, olha, eles ficaram surpreendidos pela positiva, dei-lhes uma chapada sem mão. Como eu digo sempre, pelo mau aspecto da faca perde-se um grande bife. É que as pessoas, só de olhar, criticam logo, não convivem com as pessoas, não sabem o que aquela pessoa pode lhes passar de positivo, só me julgam por aqueles minutos de palco.  Ela não sabe estar. Se pararem e vierem ter comigo verão que ela não é bem aquela confusão, tem um lado humano, família, etc. Claro que hoje eu cresci, ganhei maturidade. Antigamente, eu não filtrava, não queria saber se era gala. Com os anos, vi que tenho de separar as águas, que há sítios que não é para fazer confusão.

 

Ary, hoje, tornou-se um exemplo de superação para muitas jovens cantoras. Qual é a mensagem que deixa a estas mulheres?
A mensagem que eu deixo para elas é não desistirem, porque chega sempre o dia de glória. Mas devem trabalhar muito e serem muito disciplinas. Para chegar onde estou tive de perder muitas festas, momentos com a família, perder noites. Foram muitas coisas ao longo desta caminhada para aqui chegar, mas valeu a pena, consegui trilhar a minha estrada, fazer carreira. Isto depende do que cada um quer. O que eu noto na nova geração, não todos, mas a maior parte, estão mais preocupados em serem famosos e não em fazer carreira. Se estás preocupado em ser famoso, serás durante um tempo e depois acaba. Mas se o foco é fazer carreira, então é só trabalhar com muito empenho e aproveitar cada oportunidade que apareça.

 

Quando começou a ganhar o gosto pela música e quais foram as suas influências?
Desde criança, sempre gostei de cantar com a família, na igreja e na escola. Na verdade, desde que me conheço como pessoa, amo cantar. Quanto às influências, no início, tive a Lauryn Hill, cantora americana e também das artistas que eu encontrei aqui, como a Yola Semedo, Lourdes Van-Dúnem. Oiço muito Belita Palma, gosto de David Zé, Artur Nunes, As Gingas do Maculusso, Margareth do Rosário e outros.

 

Ao citar Lauryn Hill remete-nos à fase em que apostava no Rap, Soul, R&B e outras tendências americanas...
Olha, eu não gostava de Semba nem de Kizomba. Apenas aprendi a dançar quando comecei a cantar estes estilos, porque não gostava mesmo. Na altura, havia os canais televisivos que passavam muitas músicas americanas e começámos a ter muitas influências de fora, todos queríamos ser americanos e eu bebia muitos deles. Por isso, só queria fazer aqueles estilos.

 

E como faz a mudança?
No decorrer do tempo o Heavy C, ao ouvir o meu timbre vocal, começou a mostrar algumas músicas gravadas a outros produtores e músicos. Quando ele dá ao Dj Manya e ao Yuri da Cunha, este diz "olha, ela faz-me lembrar a Nany, a voz e a forma dela”. E pediu para porem-me a cantar Semba e Kizomba.  Eu era miúda, tinha 7 anos. O Heavy C chegou e mandou-me cantar "Aí meu amor, meu patrão mandou chamar” e deste modo ele decidiu: "a partir de hoje vais cantar Semba e Kizomba”. Eu chorei tanto, porque não queria. Refizemos o disco todo que já estava quase pronto, gravado na África do Sul. E foi assim que fizemos "O teu grande amor”. Fomos ter com o Caló Pascoal, gravámos "Carta de Amor” com a Karina Santos e com o Yuri da Cunha gravei o "Meu Patrão”, tudo Semba e Kizomba, que hoje são estilos que me identificam, mas que antes eu desdenhava.

 

E desta forma nasceu o disco "Sem Substituição”. Este título tem alguma justificação?
Sim, porque eu cheguei para ocupar o meu lugar e lutar para mantê-lo. Não para tirar o lugar de alguém, muito pelo contrário. Vim para aprender com aqueles que eu já encontrei e passar o meu testemunho para quem veio depois. Não entrei nisso com espírito de competição.

 

E hoje temos  uma Ary muito eclética musicalmente...
Grande parte dos meus sucessos são de estilos diferentes, desde o Kuduro, Afrobeat que fiz com o Dj Jesus, folclore, os kuduros que gravei com a Titica, com Baló Januário a Cabecinha, Kilapanga, as Kizombas e Sembas. Então, eu faço um pouco de tudo, porque quando surgi como artista, mostrei às pessoas que não sou de um estilo apenas. Antes do disco era do Rap e R&B mas depois passei a gostar de tudo.

Antes do disco, participou em concursos de descoberta de novos artistas, como o Estrelas ao Palco. Fale desta experiência...
Vou confessar, eu não tenho uma boa experiência de concursos. Perdi. E perder não é nada bom. Isto frustra. Principalmente quando dão um não mal dito. Penso que devemos aprender a dar um não bem dito, porque a pessoa pode receber de uma forma errada. Quando eu recebi o não do Estrelas ao Palco, já não queria cantar mais.

 

Perdeu no Estrelas ao Palco mas venceu na carreira artística...
Para dizer que nem todo o mundo que vence estes concursos, ou seja, a maior parte, singra na carreira musical. Não sei porquê, contam-se aos dedos das mãos aqueles que ganharam e tornaram-se cantores. Mas dos que perderam, muitos são grandes músicos como eu, Sandra Cordeiro, Matias Damásio, Totó ST e outros exemplos de artistas que concorreram e não ganharam mas conquistaram o seu espaço. Penso que, às vezes, é necessário perdermos num determinado momento para ganharmos noutro. E foi o que aconteceu.


Ary só carrega este lado negativo?
Não, nós também temos o lado positivo. Gostei de conhecer pessoas como a Karina Santos, o Jorge Antunes e a Patrícia Pacheco, que me acompanham até hoje, o Kueno Ayonda, o Isaú da Banda Maravilha, que imitou os Irmãos Kafala, o Bruno, que é professor de música... muito boa gente. Tenho boas lembranças, mas a experiência de ter perdido Ary emitiu um muxoxo nada bom. Foi uma fase divertida e fiz bons amigos, mas perder dói mesmo. O meu pai só ficou a saber que eu cantava naquele dia, quando eu lhe pedi para acompanhar-me e ele foi ver a filha a perder. Fui convicta de uma vitória e chorei muito, porque quando antes assistia ao Chuva de Estrelas eu dizia que iria para ganhar, mas perdi bem. Hoje dou graças a Deus por ter perdido. Queria desistir de tudo. Os que me deram forças foram os meus amigos, vizinhos e família porque eu continuava a cantar em casa, sempre Rap e outras músicas americanas. Também imitava as músicas e coreografias das Gingas.


Novo disco está quase pronto

Ary tem novas músicas com Badoxa, John Berry, Young Double e outras colaborações recentes. Estes temas fazem parte do novo disco?
Com o Badoxa a música "Ciúme” é minha e fará parte do meu próximo disco, mas com o Young Double e o Johnny Berry "Tenho Cara de Kit” e "Zala Calmé” são músicas deles em que participo e em estilos diferentes. O que acontece é que saíram ao mesmo tempo e com a minha voz, por isso muitos pensam que são músicas minhas. 

 

O que mais temos neste projecto discográfico? Outras produções, compositores e novidades?
Temos quatro ou mais músicas produzidas pelo Heavy C, composição e produção do Chilola de Almeida, tem arranjos do Dj Manya, tem produção dos Gabeladas em "Bolingo ya Motema”, participação da Titica, do Badoxa que já saiu... É agora que, num disco, tenho muitas participações, antes contavam-se. Tem ainda composições do Matias Damásio em três músicas. 

 
E quantas músicas podemos esperar?
A princípio, dez ou doze. Não adianta ter muitas músicas, porque as pessoas apenas ouvem a que está a bater, a promocional e quando compram o disco não exploram  as outras. Depois, quando estas começam a tocar, perguntam em que disco está ou se é de um novo álbum. As pessoas não prestam atenção.

 
Para quando o lançamento do próximo disco?
Na verdade, já estava pronto antes da pandemia e quando esta chegou estragou com tudo. Mas olha, vou confessar, estou com preguiça de lançar. Há momentos em que penso que preciso de descansar e tirar um ano, mas como vivo apenas da música... Não posso deixar ficar o meu filho sem leite, a minha única fonte de rendimento nestes anos todos é só a música. Eu vivo literalmente da música. Se paro com tudo, não como, assim como a minha equipa.

 

Mas, hoje, ela levou a algumas marcas...
Sim, mas quando eu digo viver da música é o que ela arrasta. O facto de eu cantar, é que faz com que as marcas queiram ou sejam arrastadas, porque se paro de cantar, todos largam-me. Então, tenho sempre de estar a trabalhar, por isso é que nunca parei até hoje, vivo disto. Nunca pensei que iria viver da minha arte, porque quando entrei era inocente. Quando descobri que a música vai dar para fazer mais dinheiro, e eu que já gosto dela, então foi golo e disse: "agora vou mesmo empenhar-me mais”. É assim que não parei até agora, e pretendo não parar. Isto pode. Eventualmente, acontecer caso consiga arranjar um outro negócio ou outra coisa que esteja a render bem, de forma que não precise de cantar muito. Aí descanso um ano, mas de outro modo, vão ter de me aturar muito em palco. E aguardem o próximo disco.

 
Das várias parceiras, um nome não passa despercebido, Titica. À semelhança de Paulo Flores e Yuri da Cunha. Nunca pensaram em fazer um trabalho colaborativo?
Para fazer as minhas parceiras é fundamental sentir algo pela pessoa, empatia. Não importa se é um anónimo, se a música mexer comigo, eu gravo, e com a Titica acontece tudo isto. De facto, temos muitos duetos, penso que cinco ou seis, mas nós nunca parámos para pensar nisto e é a primeira vez que me colocam este desafio. Olha que é algo a pensar e amadurecer, podemos ver esta possibilidade. Ela agora está em Portugal e isto dificulta um bocadinho, mas é um projecto que, se nós metermos a mão na massa, funciona.

 

Na nova geração, que artista escolheria para fazer uma parceria?
Fica muito difícil agora falar, mas estou a acompanhar e gosto do trabalho da Chelsia Dinorath. Sinto que das meninas da nova geração ela é que canta com alma e é humilde.

 

No palco tem como parceiros os integrantes da Banda Prontidão.

Alguma razão?

São jovens que têm contribuído para a nossa música. Grande parte dos integrantes da Banda Prontidão trabalham comigo há muito tempo, por exemplo o Yark, que é o meu director artístico, está comigo há mais de dez anos. É o mais antigo e fiel. Eles percebem-me e sabem a sonoridade que eu gosto e temos muita cumplicidade em palco. Eu os respeito como banda e como músicos. Não vou falar de outros mas muitas bandas e instrumentistas reclamam que não são valorizados pelos próprios artistas, que quando estão em palco só querem saber do seu nariz e não estão preocupados se estes estão bem. Eu reconheço. Se estou em palco a fazer um grande concerto, eles fazem parte de todo o processo, então todos têm valor. Dizem que de todos os artistas, eu sou a que mais valoriza o trabalho deles, por isso é que quando tenho um concerto, eles cancelam outros compromissos e apostam no meu. Mas, infelizmente, isto não se vê em todos os músicos e penso que isto é uma das principais razões que faz com que a Banda Prontidão e a Ary não se larguem. Nós somos um time. Eu gosto de trabalhar como família. Por exemplo, quando viajamos com outros artistas, existe aquela mesa que é apenas para músicos mas eu gosto de sentar-me com os meus.

 

O que é que o Agnelo Henriques representa na sua carreira?
O Agnelo, mais que um agente, é família. Ele está comigo há mais de dez anos, é alguém que Deus pôs na minha vida para somar. Ele é visionário e muito sabichão, um jovem batalhador e muito bom no que faz. É um bom organizador de eventos. Foi nesta área que o conheci e o convidei a trabalhar comigo. Estamos juntos desde então, às vezes, discutimos muito mas reconheço que sou abençoada por tê-lo ao meu lado.


Versões musicais com o timbre da Diva 

Ary tem sido bem sucedida em recuperar sucessos antigos: "Despedida de solteiro”, "Decepecion”, "Bida di gois”...
É verdade, graças a Deus. E olha que a maior parte delas foram para projetos de produtores. "Despedida de lar”é do DJ Malvado. Ele convidou-me e como eu já gostava da música achei fixe e ficou muito bonita. O "Decepcion”fui eu que escolhi porque o Dias Rodrigues tinha-me dado uma outra música para participar no Picante. Falei com o Lutchiana, que foi casado com a minha mãe, e ele autorizou com aquele sotaque "Arry você é minha filha,  pode cantarr” e depois ficou muito feliz com a versão que considera como sendo a melhor já feita de uma das suas músicas. Agora, o "Tá amarrado” eu ouvi pela primeira vez em 2008, quando fui cantar pela primeira vez no Palácio, nos cumprimentos de fim-de-ano, na altura do Presidente José Eduardo dos Santos. Desde que vi a Banda Movimento em palco, gostei e não esqueci a música. Ficou-me a instrumentalização e a forma como o Kintino interpretou. Então, quando decidi fazer o meu terceiro álbum lembrei-me dela para uma versão. Falei com eles e autorizaram-me. A produção foi do Dj Manya e ficou bonita.

 
Versões e autorizações e surgem muitas polêmicas. Ary já esteve envolvida em algumas?
Geralmente, falam da pessoa que cantou, nunca do dono do projecto, mas, graças a Deus, nas músicas que eu já interpretei nunca tive grandes problemas. Quando um Dj me convida para fazer uma versão eu pergunto como está, se falou com os donos ou quem detêm os direitos. Eu não quero problemas porque, no fim, a mal falada serei eu, então eles me provam que está autorizado, inclusive quando ouviam que era eu, muitos disseram que podia  cantar à vontade. Nunca tive problemas em relação a isto.

 

Mas há tempos, o Miguel Neto abordou o caso da Ary...
Sim, em tempos ligou-me o Miguel Neto a perguntar-me sobre a "Despedida do Lar”, porque, segundo ele, o artista reclamou. Mas eu disse-lhe que a conversa não era comigo e que até onde eu sabia estava tudo certo. Depois, a música tocou estes anos todos e como é que apenas agora  estão a reclamar? Algo não fazia sentido. E como sei que ele gosta de falar sobre os plágios na rádio pedi que ele fosse falar com os produtores para melhor informação, para antes de me estender, conversar com o Malvado e o Manya. Ele não voltou a tocar no assunto, penso que não encontrou irregularidades, porque antes conversaram com o dono da música.

 

Temos também o caso da música "Paga que paga”...
Sim, porque a Dircy já tinha interpretado há muito tempo o "Paga que paga”, que é uma composição do Kiaku Kiadaff. Quando o Chico Viegas convidou-me para participar no projecto, deram-me esta música. Gostei logo e gravei depois do Kiaku ter feito a voz guia. Mas quando começaram a surgir as reclamações da cantora, ele ligou-me e disse para não me preocupar e falar nada porque ele mesmo iria resolver o problema. Foi à Rádio explicar que nada era ilegal, que a música era dele e que não havia nenhum impedimento para a Ary cantar. Depois, abafaram o caso. De resto, nunca tive problemas.

 
Curioso, foi um episódio triste que lhe deu a alegria da conquista do Top dos Mais Queridos...
Não diria que foi um episódio triste porque sempre tive a minha consciência limpa. Podem fazer confusão, que não me afecta. O próprio dono veio falar que eu não tinha nada a ver. Do meu lado, eu sou da paz.

 
E qual foi a sensação ao conquistar o Top dos Mais Queridos 2007 em Malanje, com "Paga que paga”?

Isto depois de sete anos a concorrer entre os finalistas. E durante este período fiquei em segundo, terceiro lugar, mas o primeiro era um sonho e estava duro. Aconteceu quando eu deixei de ir para competir. Quando anunciaram o meu nome, atirei-me ao chão, não aguentei, foi muito bonito, um sentimento de louvar. Orei muito nesse dia, a agradecer a Deus pela bênção e eu própria disse que é só não desistir, porque quando a pessoa insiste e continua a trabalhar, os resultados surgem. E foi o que aconteceu. Fiquei feliz. Incrível. Uma amiga ligou e disse que quando consagraram Ary como vencedora, no prédio, os gritos pareciam de um jogo de futebol. E é bom quando o artista ganha e o povo está a favor. Tenho este prémio com muito carinho, porque quando todos reconhecem a vitória, é diferente. E, naquele dia, foi unânime, tanto entre os colegas como no público.

 

E a segunda vez?
Quando ganhei pela segunda vez, com a música "Papá fugiu”, com a participação de Baló Januário, a emoção foi outra, porque tornei-me na primeira mulher a conquistar dois títulos. Eram apenas homens, Yuri da Cunha e Matias Damásio, mas a primeira a conquistar foi a Patrícia Faria e depois a Yola Semedo. Também não tinha como eu não ganhar, cantei um assunto que tocou o coração de todas as mulheres, e não só, falei da fuga à paternidade e sobre os padrastos. É um assunto por que muitas mulheres angolanas passam e foram muitas que votaram naquela edição.


A cidadã, o activismo e a arte

Em temas como "Papá Fugiu” e "Betinho”  encontramos um activismo no campo do empoderamento feminino e na defesa da mulher. Fale desta postura da cantora...
A partir do momento que passei a perceber que o artista tem força e é um elemento a seguir, que tem voz e pode fazer que um assunto possa ser resolvido através da música, começámos a compôr assuntos que retratam a realidade do nosso quotidiano. Eu gosto de cantar estes tipos de temas. "Paga que paga” também vai nesta linha de um pai que tem dinheiro e que não  gasta em casa com os filhos e mulher, mas prefere gastar na rua. Sinto que quando canto uma música que fala destes problemas, sou muito mais ouvida. Gosto de cantar sobre o problema das pessoas e que, muitas vezes, também é o meu problema, porque muitas outras estão a viver ou passaram por situações semelhantes. Serve o exemplo do Betinho, que aborda a violência doméstica. Cantei de uma forma cómica e também peço para denunciarem. É um alerta, assim como em "Papá Fugiu”.

 

Por falar em activismo, muitos reclamam da pouca participação dos artistas angolanos, que fogem abordar questões sociais mais sensíveis e estão mais preocupados em agradar ao poder politico...
Olha, a situação é que o artista só tem de fazer música. Nós também sofremos, às vezes as pessoas vêm-nos na televisão mas não sabem o que passamos e pensam que a nossa vida é um mar de rosas. Não é bem assim. Há artistas que ainda dormem no beliche. O problema é de todos. E muitos problemas em que as pessoas querem que o artista intervenha são assuntos da responsabilidade do Governo. E depois, quando abordamos determinados temas, as pessoas são consideradas revus. Há certas situações em que eu entendo os meus colegas, porque há problemas que quem tem mesmo que resolver é o pessoal lá de cima, não somos nós. Estamos num país em que quando tentas bater de frente, és mal conotado e fecham-te as portas. Infelizmente, aqui é assim. Alguns músicos que tentaram, acabaram mal ou tiveram que emigrar, ou seja, fugir. E depois, temos o outro caso. Muitos daqueles que incitam as pessoas para cancelarem os músicos, afirmando que não estão a favor das suas causas, não vivem cá. É de fora que lançam estes apelos e nós aqui a nos matar, quando eles lá estão muito bem. Olha, a minha forma de ajudar é dar o meu contributo, é fazer algumas acções sociais, como o fiz na altura da Covid. Mas é uma iniciativa minha, sem obrigação de ninguém ou alguém a me impingir, porque eu não gosto que me mandem. As acções sociais são coisas do meu coração e sempre que penso em ajudar numa determinada situação, assim faço.

 

Nem mesmo quando o sistema aproveita?
Por exemplo, há tempos estive num município da província de Luanda, onde fui visitar um bairro a convite do administrador local e dei uma entrevista. Disse que não gostei do que vi, porque aquilo não estava bem e eu não podia falar apenas para agradar. Eles chamaram um jornal ou uma televisão, por acaso, fui para dar um discurso mas quando vi aquilo, eu disse que não podia mentir e falei o que não estava bem e que devia mudar no município. Eu até sugeri para disponibilizarem verbas para mandar construir escolas. Em vez de chocar de frente, devemos dar ideias. E é assim que eu faço.

No confinamento, enquanto muitos artistas reclamavam da falta de palco, a Ary se reiventou e tornou-se a Rainha das Lives...

Sim, foi uma fase muito difícil porque só estávamos a gastar e tínhamos contas a pagar. Não tínhamos shows, mas conseguimos nos reinventar e fizemos shows e as marcas vieram atrás e começaram a juntar-se. Tudo parou e uma das formas que eles viram de promover os produtos deles era patrocinar as lives. E nós começámos a ganhar e passámos a ter como pagar a banda e, na televisão, passava em rodapé a marca da empresa, mas a maior parte das lives que fizemos eram para angariar fundos para ajudar os centros de acolhimento. E assim fizemos. Não era minha obrigação, mas foi o que eu fiz como cidadã, com a minha arte.

 

Ary canta nos concertos populares, lugares chiques, para os que mandam e os mandados. Onde gosta mais de escangalhar?
Meu irmão, sinto-me melhor e mais acarinhada no meio do povo. Não que não tenha boa recepção nas galas, onde gosto de ver as pessoas a saírem da zona de conforto e também sou muito bem tratada. Mas quando estou com o meu povo, meu, esquece. Quando atiro-me ao chão, cuia, tiro o sapato, cuia, diferente da gala, onde nem sempre consigo dar o meu máximo, é diferente. Os gritos são maiores, posso falar calão eles se identificam, é muito fixe. Mas repito, também vivo bons momentos nos lugares chiques.


Homenagem à Nany  e a busca de outros palcos

Este ano, em Março, por ocasião do Mês da Mulher, fez um concerto em homenagem à Nany. E mais uma vez Ary surpreendeu. Fale desta experiência...
Como disse, no início da minha carreira, o Yuri da Cunha e outros diziam que fazia lembrar a Nany, quer pela forma de estar em palco quer pelo timbre. E olha que eu não bebia muito dela, mas depois de começarem a falar muito da Nany, eu comecei a prestar atenção a algumas coisas. Só dei mesmo conta que temos o mesmo timbre quando fiz este show, um desafio feito pela direcção do Porto de Luanda porque eles é que estão a cuidar da saúde da Nany no Centro de Reabilitação. Eles decidiram homenagear a senhora enquanto está em vida, o que acho certo, e na lista de artistas que eles tinham viram que a Ary era a que mais se enquadrava. Deram-me um toque um mês antes para fazer um concerto apenas com as músicas da Nany. Não vacilei e disse que seria uma honra. Pedi que ela fosse assistir esta homenagem mas a família mostrou resistência no início. Tudo foi resolvido depois pelo pessoal do Porto de Luanda, que explicou o  conceito e que seria algo bonito e que tudo seria revertido para ela. E foram todos.

 

E como foi cantar para a Nany?
Quando disseram que a Nany estava na sala, eu fiquei muito nervosa, porque uma coisa é interpretar a música de alguém quando não está lá e outra é o dono da música assistir e avaliar se estás a cantar bem a música. Logo que entrei em palco, parece que a Nany se viu em palco, porque eu coloquei aquela roupa curta que ela gostava e a peruca loira que usava, os óculos e o corpo dela, até me apertei para mostrar aquela silhueta que ela ainda tem. Ela quis subir ao palco, mas não deixaram. Foi um show muito bonito e eu até disse já posso parar de cantar, sinto-me realizada porque cantei para uma das rainhas da música de Angola.

 
Ary está a prepararum grande concerto em Lisboa...

Sim, todos os anos, eu faço um concerto na época do meu aniversário em Angola. Este ano,  levo o concerto para Lisboa, em Agosto. No verão europeu acontecem concertos todos os dias. Vamos dar no meu dia, 3 de Agosto. Estou muito ansiosa e preocupada, porque não sei o que me espera, porque será o meu primerio grande show sozinha em Portugal.

 
Já temos alguns convidados?

Titica, Gilmário Vemba, C4Pedro e o Badoxa estão confirmados e teremos algumas surpresas, talvez o Bonga, Paulo Flores, Yuri da Cunha ou mesmo uma cantora nova. O que posso dizer é que estou a preparar um show muito bonito para Lisboa, para fazer uma festa verdadeiramente à moda angolana. Ainda em Lisboa estarei num dos palcos principais do Festival da Costa da Caparica e o Agnelo está a fechar outros que em breve anunciaremos.

 

Para quando um passo fora do espaço dos falantes da língua portuguesa na conquistade outros mercados?
Tenho a maior parte dos prémios nacionais e muitos estão repetidos. E é o que digo, em Angola já não tenho mais nada a provar, é só continuar a cantar. Agora, o desafio é que conheçam a minha música fora de Angola.

 

Então o que falta?
Olha, para tudo é necessário apoio financeiro, quer dos empresários quer das autoridades. Para nós, músicos, é necessário lutar com as nossas forças, porque tudo fora do país paga-se, mesmo as participações com artistas americanos ou nigerianos cobram. E em divisas. Se chega um empresário ou mesmo o Governo e diz esta verba vamos canalizar para a música e arte mas que escolham os artistas sérios, Angola vai longe. Parem e olhem para o mundo, agora tem uns quatro ou cinco músicos nigerianos a tocarem muito e os próprios americanos a pedirem colaboração. Isto significa que o nome da Nigéria está em cima. Faz com que os outros países se interessem pela Nigéria e até ajuda no turismo, porque querem conhecer o país da estrela. Digo, se o Governo apostar na música de verdade, o nome de Angola estará em alta, o mundo ficará atento. Ganham não só nós, os músicos, como também o país. A música tem poder.

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