Reportagem

Cassenda: Ascensão e declínio de um bairro que já foi da elite

César André

Jornalista

O antigo bairro Américo Tomás, hoje designado Cassenda, era considerado, durante os anos 60, zona de elite. A circunscrição, que também já se chamou Posto Belas, era de se lhe tirar o chapéu devido à sua posição geográfica privilegiada, e não só. Os seus moradores tinham o ensejo de ver de perto, através das janelas e varandas, as aeronaves que descolavam e aterrizavam nas pistas do aeroporto António Craveiro Lopes. Foi nessa infra-estrutura aeroportuária onde, em 1973, aterrou o avião Concorde. Naquela época nenhum aeroporto de Lisboa, a capital da Metrópole, tinha condições de aterrizagem daquele gigante do ar. Tal era o desenvolvimento de Angola. Foram bons momentos, segundo relatam moradores que vivenciaram essese outros episódios inesquecíveis

09/07/2023  Última atualização 06H20
© Fotografia por: Arsênio Bravo| Edições Novembro
Associado à elite colonial portuguesa, o antigo bairro Américo Tomás surgiu nos anos 1960, num projecto bem estruturado, urbanizado, caracterizado pela vista  privilegiada ao aeroporto António Craveiro Lopes, hoje Internacional 4 de Fevereiro. A Norte e a Sul o cenário era marcado pelavista panorâmica das magníficas praias da Samba.
Situado num local confortável da cidade, vizinho ao antigo bairro Salazar, actual Mártires de Kifangondo, o bairro Américo Tomás, a partir de 1974 passou a ser designado Cassenda. A localidade, desenhada a régua, esquadro e compasso por um renomado arquitecto português,  assemelhava-se às de Sintra, Setúbal, Costa da Caparica, e outras de Portugal.  Para além das vivendas foram também construídos cinco prédios para suportar a avalanche da população que não parava de vir da Metrópole. Esses edifícios, com o andar do tempo, tornaram-se cartões de visita para quem viesse de avião para Luanda.

Durante a projecção do bairro foram traçadas duas ruas principais, nomeadamente a rua direita do aeroporto, que desembocava na zona da antiga Base Aérea nº 9 da Força Aérea Portuguesa, na hoje designada Avenida 21 de Janeiro e a Rua 14, que faz fronteira com o Laboratório de Engenharia de Angola (LEA) e a Comissão do Prenda (actual Sagrada Esperança).
Era nessa importante infra-estrutura rodoviária, então de terra batida e que dá acesso ao bairro da Samba - Rua 14 ou do Laboratório de Engenharia - que naquele tempo circulavam os autocarros  29 e 46. O  primeiro partia da Baixa de Luanda, nas imediações da fábrica de gasosa Mission e Quick - actual sede da CNE nos Coqueiros, e tinha como término a Comissão do Bairro Prenda, defronte ao Centro Espírito Santo, ligado à Paróquia de São Pedro Apóstolo.
Já o autocarro 46, no pós-independência, partia do Centro Espírito Santo da Paróquia de São Pedro Apóstolo, no final da Comissão do Prenda, subia pela actual Rua do Felício, passava pela Rua 14 e tinha como término o bairro da Kinanga, no local onde foi construído o Memorial Dr. António Agostinho Neto.
A Rua 14 começava na esquina da Comissão do Prenda, passava em frente ao Laboratório de Engenharia de Angola e terminava no espaço onde foi construída a passagem superior do Prenda, para quem se dirige ao Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro.A circulação, naquela época, era feita em terra batida e em sentido inverso ao actual: ao subir podia-se passar em frente ao LEA  e alcançar a Avenida Lisboa (actual Revolução de Outubro), ao passo que hoje tem apenas um sentido, passando pela Administração Municipal da Maianga (ex- Posto Belas) para atingir a estrada principal, a antiga Avenida Lisboa.
A ex-Avenida Lisboa, que nasce no Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro e serpenteia até ao Largo da Maianga, sempre foi considerada uma via estratégica para  circulação do Norte para o Centro da cidade. Deste ponto de intercepção (Largo da Maianga) passando pelo Largo Serpa Pinto, seguindo em direcção a Mutamba e terminando na Avenida Marginal,  essa rua no tempo colonial chamava-sePereira Forjaz. No pós-independência passou a chamar-se Amílcar Cabral, em homenagem ao líder da luta de libertação nacional da Guiné-Bissau e Cabo Verde.
Voltando ao bairro  Américo Tomás, o actual Cassenda. Para facilitar a mobilidade dentro do bairro e para desafogar o pequeno movimento automóvel da época, foram traçadas e construídas as ruas número 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9,10, 11, 12, 13, 15, 24 e as posteriormente designadasSagrada Esperança e Unidade e Luta, e as travessas 3, 7, 9 e 12.
Esse modelo de urbanização consolidada e sem labirintos facilitou, no tempo colonial, o trabalho dos agentes policiais e da PIDE, que controlavam milimetricamente as populações indígenas que viviam nas imediações do  bairro.Há relatos, por exemplo, de antigos moradores segundo os quais os famosos agentes da PIDE Galo e Cabo Russo, comas suas viaturas Jeep rusgavam a zona  para prender os "turras” que encontravam refúgio em casa dos seus padrinhos e patrões europeus.  Foram momentosmemoráveis e de terror, segundo conta Kindala Kalamina, um antigo morador que frequentava, com regularidade, a zona adjacente aocolégio Monte Sol, onde viviaoseu padrinho de baptismo Lopes Joaquim, oriundo do Algarve, região do extremo Sul de Portugal conhecida pelas praias mediterrânicas e pelos resorts e campos de golfe.
Fernando Pereira Silva, um português que viveu  neste bairro nos anos 60, e que em 1974 comprou a sua casa deixando de pagar a renda no ano seguinte, afirma que "Américo Tomás era um bairro que naquele tempo já era comparado a zonas da Grande Metrópole como Cascais, Odivelas, Sintra, entre outros”.
Aos 78 anos de idade Fernando Silva, proveniente do Distrito de Bragança, região de Trás-os-Montes, recorda com certa nostalgia que foi durante as confrontações armadas entre os três movimentos de libertação, em 1975, que "fugiu” de Luanda com a família deixando a sua casa toda ela mobilada e embarcando para Portugal, onde começaria uma nova vida.
Rui Branco Silva, algarvio de gema, diz ter vivido durante aquele período (colonial) no Prenda, no limite com o Américo Tomás, perto da antiga  Clínica Veterinaria e do CaféKissange. "O bairro já era considerado umex-librisda zona”, disse.
Hermínia Parenta, também antiga moradora, diz que notempo coloniala construção era ordenada e de bom gosto e não havia barracas à semelhança do que acontecia nos bairros periféricos considerados musseques.
Os moradores que habitavam nos prédios tinham o privilégio de contemplar as aterrizagens dos aviões, que, na sua maioria, eram provenientes do outro lado do Atlântico. "O momento era  aproveitado para fazer fotos de recordação”, como contou Herculano Reis,  morador do prédio número 40.
"Era do terceiro andar para cima destes prédios que nós observávamos os aviões da TAP, os DC-30 da Força Aérea Portuguesa e de outras companhias aéreas a descolarem e a aterrarem  com certa regularidade. Nós fazíamos fotos e muito mais”, disse Manuel Bandeira, antigo morador.
Manuel Bandeira contou ainda que, uma vez, quando viajou para a  Metrópole (Portugal) teve o ensejo de se sentar junto a janela da aeronave e pôde contemplar a paisagem de fora, ver o prédio onde residia, e, inclusive, o seu apartamento e fazer um adeus aos familiares que acenavam da varanda, tudo isso numa acção combinada.
Manuel Bandeira revelou ter na memória o registo dos momentos ímpares dos dias da ponte área que aconteceu em 1975, quando milhares de portugueses (seus conterrâneos) em desespero abandonaram a vida em Angola, numa das maiores operações mundiais de resgate de cidadãos civis.
"Foi a partir do quinto andar do meu apartamento que eu  fotografei as aeronaves da TAP e de outras companhias aéreas que transportavam os que embarcavam na ponte aérea, provenientes das cidades e dos confins de Angola”, disse.
Mas, diga-se, naqueles dias de desespero, em que muitos optaram por fugir da instabilidade e da guerra civil, nem todos os portugueses se foram embora. Alguns mantiveram-se no país.  Muitos dos que partiram eram portugueses mas nunca haviam estado em Portugal. Alguns, que tinham "afilhados” negros,  deixaram as suas residências e os seus bens com estes. No geral, as residências do bairro Américo Tomás foram saqueadas e ocupadas abruptamente pela população autóctone da periferia.  Umas quantas casas foram transformadas em bases dos pioneiros guerrilheiros.

Os primórdios do bairro
Segundo relatos de antigos moradores, o nome Cassenda foi atribuído ao bairro em homenagem a uma mulher chamada Cassenda, proveniente da região da Kibala, província do Cuanza-Sul e que se instalou na zona  nos primórdios dos anos 1930,tornando-se na primeira moradora.
Na época o local era uma mata com vegetação alta, árvores e arbustos de "piteiras” (tabaibos). Dona Cassenda construiu a sua cubata de pau-a-pique e dedicou-se à pequena agricultura de subsistência.
No princípio dos anos 1940Dona Cassenda convidou alguns dos seus conterrâneos que viviam na Kibala, Calulo e nos arredores da antiga cidade de Novo Redondo, actual Sumbe, a viajarem para Luanda e se instalarem no local onde ela residia, com o intuito de povoarem a área. É assim que num ápice o local foi "invadido” por populares provenientes daquelas localidades.
Naquele época ainda não havia a estrada asfaltada que separava o Cassenda da Elite (Américo Tomás) da parte que passou a ser designada Musseque Cassenda, que fica ao lado do Laboratório de Engenharia. Era uma zona única, livre, em que as populações andavam de um lado para o outro.
Se até ao início da década de 1950 as populações que se instalaram  na zona eram, fundamentalmente, oriundas do Cuanza-Sul, posteriomente começaram a surgir gentes provenientes de Malanje, Catete, Caxito e Ndalatando.
Fruto desta avalanche populacional a circunscrição passou, durante muito tempo, a ser chamada Musseque Cassenda, por causa das casas que eram construídas, na sua maioria, com chapas de tambor,  pau-a-pique e madeira, à semelhança das do bairro Catambor.
"Aquele era o primeiro bairro Cassenda, do tempo colonial. O outro, próximo do aeroporto, ainda não existia, era apenas um enorme matagal”, conta Avelino Máquina, antigo morador originário de Calulo, município do Libolo e que se instalou no Cassenda nos finais dos anos 1950.
O bairro baptizado Musseque Cassenda surgiu num local onde existe, até aos dias de hoje, uma frondosa mulembeira, na área adjacente à antiga loja do comerciante português Carvalho, figura lendária na circunscrição, cuja esposa chamava-se dona  Fêmia. Essa casa comercial no pós-independência viria a  chamar-se Casa Bumba, que depois deu lugar ao  supermercado Shoprite - passe a publicidade.

Posto Belas versus Cassenda
António Sete, 84 anos, natural da Kibala, instalou-se no Cassenda  nos anos 1940. Ele dá a conhecer que o Cassenda era também conhecido por Posto Belas, pelo facto da Administração Colonial funcionar ali perto, por detrás do Laboratório de Engenharia de Angola.
"Cassenda ou Posto Belas era a mesma coisa, razão pela qual não havia muita confusão ou diferença por parte da população. É assim que quando alguém  dissesse ‘vou ao Posto Belas’ ficava logo subentendido que ia ao Cassendaou vice-versa”, frisou António Sete.
O ancião sublinhou que Posto Belas referia-se sobretudo "àquele Cassenda que se desenvolveu muito rapidamente pelo facto da administração colonial ter aí construido casas de alto padrão”.
Proveniente da aldeia de Cabezo, município da Kibala, António Sete recorda  que veio a Luanda a convite do seu irmão mais velho Domingos Evaristo Sete, já falecido e que se encontrava a residir  no musseque Cassenda na área adjacente à zona do Manuel Praia.
"O meu irmão mais velho, na época, já era muito conhecido nas lides desportivas, pelo facto de ser um dos mais altos dirigentes da equipa de futebol local, o Sporting da Kibala. Isso ajudou a minha inserção no bairro. Ele também era o responsável  pela manutenção do recinto de jogo que se situava em frente a Igreja Metodista do Prenda, por detrás do Lote 22”.
Ainda segundo o nosso interlocutor, "naquele recinto de jogos, nos anos 60, sob sol abrasador, se registaram grandes trumunos e derbys, entre os quais se destacavam Sporting da Kibala-Las Palmas e 11 Bravos da Samba-Sporting da Gabela. No decorrer dos jogos, quando uma das equipas marcasse golo, os adeptos saltavam e gritavam em  delírio”.
Naquele tempo no musseque Cassenda, ainda no dizer da nossa fonte, as casas eram construídas ànoite, em tempo record, "senão arranjavas problemas sérios com o colono e ainda por cima pagavas multa”.
António Sete diz que havia muita rigorosidade em termos de fiscalização e todo o cidadão  que fosse surpreendido a construir sem autorização para além da multa era de imediato detido. "E mesmo nós, quando viéssemos dos kimbos e fóssemos apanhados na rua éramos levados para as casas dos brancos para trabalharmos como criados”, disse.
Contou que um dia desses, quando foi à loja do senhor Cunha beber um copo de vinho teve que se esconder no quintal do lojista para não ser detido e levado para ser criado(empregado doméstico).
"Como nem sempre  a sorte está connosco, um dia  andava distraidamente e em plena rua fui ‘agarrado’ pelos polícias e posteriormente levado e colocado a trabalhar como criado em casa do  senhor Albano César, antigo director-geral do Liceu Nacional Salvador Correia”.
António Sete dá a conhecer que os trabalhos prestados como criado eram grátis, sem qualquer remuneração financeira, razão pela qual muitos autóctones nessa condição fugiam para parte incerta, com maior incidência para as respectivas aldeias de origem.

Musseque Cassenda
Maria Pedro, 78 anos de idade, 50 dos quais como moradora, diz que no tempo colonial o Musseque Cassenda "já era respeitado porque nele vivia gente assimilada”.
"Naquele época (anos 1960) a zona tinha sido ocupada por poucas pessoas e as suas casas de madeira e pau-a-pique eram construídas com traços bem definidos, tinham qualidade. E as ruas possibilitavam que a circulação rodoviária se fizesse  sem constragimento”, conta Maria Pedro .
No período pós-independência  esse cenário mudou de figurino e o bairro ficou transformado num labirinto. Hoje não é possível circular comodamente pela área adentro, explica a anciã.
Para além da velha Cassenda viviam inicialmente no que viria a chamar-se Musseque Cassenda a velha Chica Graciano, Maria Safa, mulher do kota Jaburu, Isabel Preta, esposa do Mário que era filho do senhor Carvalho, Domingos Sete, tio do falecido Domingos Bumba, entre outras figuras emblemáticas da circunscrição.
No tempo colonial toda aquela zona adjacente onde hoje estão a concessionária Lusolanda, os prédios Libertação Total para África e dos soviéticos, e a rua das Mangueirinhas, era arenosa e verdejante com  cajueiros. Essa parte do musseque Cassenda era uma zona  verdejante com vista privilegiada para a antiga Avenida Lisboa, actual Revolução de Outubro, e que tinha como referência, do outro lado da avenida, o campo do Clube Desportivo Universitário de Angola (CDUA), onde, nas décadas de 1970 e 1980, desfilaram grandes estrelas do hóquei em patins, o lendário árbitro Marinho bem como figuras memoráveis do basquetebol angolano. Das estrelas  do hóquei em patins que brilharam no CDUA destacam-se o Fragata, Damásio dos Santos Júnior "Kaisara”, Julião, Bulica, Inácio Santos "Mama”, Kamão, Domingos Muhongo "Mingo Mucotó”, Manuel dos Santos "Né”, Nelson Amado "Sony”, entre outros.
Devido à sua  proximidade com a Avenida Lisboa, foram construídas infra-estruturas comerciais de raiz no musseque Cassenda, como a Casa Lusolanda,  concessionária das viaturas Suzuki, e muitas outras estruturas.
Mas nem tudo, no tempo colonial, era  um mar de rosas. No coração do bairro assistiu-se à construção desordenada de casas, o que deixou a zona com  apenas três ruas de alvenaria, nomeadamente a das Mangueiras, a do Prédio dos Sovieticos, que hoje dá acesso ao edifício da Logitécnica, e outra que passa por detrás da concessionária Lusolanda. Esta última rua,  com ou sem chuva, ficava permanentemente num estado lastimável, molhada e com lama à mistura.   Essa situação tornava-a intransitável.  A falta de esgotos ou saneamento básico fazia com que os moradores lançassem as águas residuais para a rua.
A má concepção  urbanística  está na origem dos males  que até hoje  afectam aquela zona do Cassenda, quer em termos de saneamento básico, quer de mobilidade rodoviária.
Nos anos 1970, a circunscrição viu  "nascer” uma grande infra-estrutura habitacional,  o prédio que depois da independência ficou conhecido como "Libertação Total para África”. 

O mítico Balão do Meio-Dia
O Cassenda possuía importantes infra-estruturas, com destaque para o Laboratório de Engenharia de Angola, onde posteriormente também funcionou, provisoriamente, a Companhia de Transmissões do Exército Colonial Português, bem como uma estrutura do Centro de Meteorologia de Angola, que servia de apoio às operações no aeroporto Craveiro Lopes. Todos os santos dias, ao meio-dia, esse Centro lançava um balão para situar a hora  e o período do dia.  É assim que os moradores o apelidaram "Balão do Meio-Dia”.  Quando quisessem ter noção do tempo, naquele período, as pessoas baseavam-se no lançamento do Balão do Meio-Dia.  Os adolescentes que se dirigiam às "explicações estudantis” improvisadas em quintais, corriam euforicamente para ver de perto o Balão do Meio-Dia, que era de cor branca.
O balão atraía muita gente e também era visto pelos moradores dos bairros circundantes, nomeadamente Prenda, Samba, Maianga e outros. O objecto "flutuante” depois de lançado fazia o seguinte trajecto: passava por cima do aeroporto Craveiro Lopes, prosseguia em direcção ao bairro Cassequel, Golfe, Viana e continuava até desaparecer de vista lá para os lados de Catete. Havia adolescentes curiosos que, nas suas brincadeiras, se dirigiam à "estação de meteorologia” e lançavam os seus papagaios para ver se  alcançassem o balão do meio-dia. Claro que as tentativas dos petizes redundavam em fracasso...
Para além das infra-estruturas acima mencionadas, havia também o supermercado Dia-a-Dia, o restaurante-bar Sol do Oriente, o Colégio Monte Sol e a loja do  senhor Careca, um português que se notabilizou na época.
Em frente a essa loja do comerciante Careca havia um campo de futebol, onde, nos finais de semana, os moradores disputavam partidas renhidas sob o sol ardente.
Antes do 25 de Abril, o bairro Américo Tomás, referimo-nos à parte elitizada, era de acesso "condicionado”  aos cidadãos de raça negra. Esses quando se dirigiam para a circunscrição apresentavam-se como criados, biscateiros ou  afilhados de baptismo de cidadãos de raça branca, sob pena de serem presos a qualquer momento.
Havia situações em que, quando um agente da PIDE apanhasse um autóctone, esse tinha como obrigação indicar a residência onde trabalhava ou justificar os motivos que o levavam a estar naquela zona.
Em termos de diversão o bairro era bastante pobre. Não tinha nada de atracção, é assim que os seus moradores tinham de atravessar a Avenida Lisboa e dirigirem-se ao antigo bairro Salazar onde existiam discotecas e os carrosséis que eram montados nos finais de semana.
Os moradores do Cassenda davam-se ao luxo de se dirigir até a área defronte ao colégio do IASA, no Prenda,  para assistirem ao Kutonoca ou apreciarem filmes no  cinema volante,  no largo próximo à Paróquia de São Pedro Apóstolo.
Em suma, os moradores do antigo bairro Américo Tomás não tinham, por  assim dizer, muitas opções de diversão. Por essa razão "invadiam” o musseque Prenda,  e não só, para saciarem a ânsia de lazer.

Compão e a reportagem de Charulla de Azevedo
Em 1965 a administração colonial portuguesa, com o intuito de acomodar alguns dos seus funcionários, escolheu um terreno próximo ao Laboratório de Engenharia de Angola, onde construiu casas em formato de "comboio”. Era um espaço privilegiado que passou a chamar-se Compão. Constituídas por dois quartos, sala, cozinha, quarto de banho e um vasto quintal, essas residências foram entregues a pessoas assimilada de profunda confiança.
No Compão também foi construído um balneário público, bem como um campo multiuso. Moradores que residiam próximo ao Compão relataram que ali passaram também a morar uns quantos "bufos”, informadores da PIDE, misturados numa simbiose com os funcionários da Câmara Municipal que pertenciam ao Posto Belas.
Foi nessa área do Cassenda onde, em 1970, a emblemática revista "Notícia”, através da pena refinada do seu fundador, o jornalista João Charulla de Azevedo, publicou uma grande reportagem sobre o "modus vivendi” da população e o trabalho dos informadores disfarçados da PIDE, que ali residiam. Na reportagem o articulista contava, sem receio e detalhadamente, o "modus operandi” da polícia secreta, bem como narrava o quotidano e as aventuras de alguns dos seus moradores.
O escriba entrevistou vários moradores, dentre os quais se destacavam o menino Contreiras, de 15 anos, natural de Malanje, que foi apanhado de surpresa e fotografado quando andava debaixo das acácias a tentar caçar um "rabo de junco” para saciar a fome. A reportagem abordava também problemas relacionados com a situação das zonas adjacentes ao bairro, bem como as buscas e detenções de que os autóctones eram alvo por parte  da PIDE.
A reportagem de Charulla de Azevedo sobre o Compão "ganhou”manchete  narevista semanal "Notícia” e teve bastante repercussão tanto em Luanda como nas demais províncias ultramarinas portuguesas.
João Charulla de Azevedo foi, inegavelmente, uma das figuras políticas mas discutidas na colónia portuguesa de Angola, na década de 1960. Jornalista possuidor de um estilo directo e de certa maneira de "falar” com o leitor, os seus escritos eram sempre carregados de intenção. Tivesse razão ou não, era sempre convincente. Arrastava a opinão pública atrás de si. Mas nunca se recusou a reconhecer um erro. Nunca hesitou em rectificar, com sinceridade, posições erradas.
Não foi perfeito. Nem infalivel. Mas foi certamente um dos mais distintos  e combativos jornalistas de Portugal, que veio a falecer prematuramente aos 34 anos de idade, em 1967.
Soares André Luís "Rito” diz que se recorda da revista "Notícia” e da edição que tinha como manchete o  Compão. Mas, o que mais o marcou naquele tempo era, segundo ele, quando em companhia dos seus amigos saltava o muro do Laboratório de Engenharia para ir buscar (roubar) mangas e cajus.

Loja do senhor Carvalho
No tempo colonial no musseque Cassenda existia uma loja, próximo à entrada do Laboratório de Engenheria, que era muito concorrida e cujo proprietário era o português Aníbal de Carvalho, mais conhecido por senhor Carvalho, esposo da Dona Fêmea. O estabelecimento comercial apresentava-se recheado de produtos básicos e era bastante frequentado pelos moradores das redondezas, muitos dos quais se beneficiavam dos fiados (kilápis/créditos).
Nascido na Freguesia de Antas, região de Viana do Castelo, Portugal, o senhor Carvalho tinha uma "mão benevolente”. Ajudava os cidadãos  humildes que se dirigiam à sua loja com o intuito de solicitar um fiado, que devia ser pago no final de cada mês. Apesar de algum "racismo à mistura”, o comerciante prestava os favores que lhe eram solicitados pelos moradores, que o tinham quase como um "Deus”. A loja  tornou-se numa referência obrigatória no bairro. O senhor Carvalho era também proprietário de outros estabelecimentos comerciais espalhados por Luanda:  Flor do Prenda, Farmácia ao Lado, edificio do Granada e Agência  de Viagens Expresso.  As suas propriedades incluía numa parte dos Armazéns Mulembeira, situado no bairro do Catambor, e moradias espalhadas por alguns musseques de Luanda.
Judith Bumba, esposa do falecido Domingos Bumba, ambos afilhados de casamento  do senhor Carvalho e de dona Fêmea, diz que  estes entregaram-lhes a famosa "loja do senhor Carvalho” quando  em 1975 embarcaram na ponte aérea para Portugal.  A nossa interlocutora disse que o património deixado pelos padrinhos não lhes foi entregue de mão beijada, sublinhando que envolveu alguns valores para que tivessem acesso àquele estabelecimento comercial, "que de loja pequena foi transformada numa loja gigante”.
Para além desta loja, de acordo com Judith Bumba, os padrinhos deixaram outros estabelecimentos que "acabaram por se perder por causa da ganância de certas pessoas”.
"Estamos a trabalhar afincadamente com os tribunais para ver se conseguimos recuperar outros imóveis deixados pelos nossos padrinhos e que nos foram atribuídos”, garante Judith Bumba.
O Jornal de Angola apurou que os netos do senhor Carvalho e da dona Fêmea, nomeadamente Calucha e Pilito, só para citar estes, actualmente vivem, juntamente com a sua mãe dona Fernanda, no edifício Flor do Prenda.
Mas no Cassenda da elite existiam outros comerciantes portugueses, como foram os casos dos senhores Cunha, Gil, António Bessa, Pinto, Dona Maria, esposa do senhor Joaquim e os proprietários da loja das Montanhas, que ficava situada numa pequena montanha que existia no bairro, naquele tempo, segundo contou Dona Nené, irmã menor de Dona de Fernanda.


Memorável Carro do Fumo
À semelhança do que acontecia noutros musseques de Luanda, o carro do fumo era uma presença marcante no Cassenda: "Abram as janelas, vem aí a tifa!”. Era assim que o carro do fumo era anunciado. Com o anúncio, num ápice, um bando de crianças saía à rua em êxtase, atrás de um dos seus maiores divertimentos, no rescaldo das chuvas.
"Eram assim na maioria das vezes”,diz  Soares André Luís "Rito”, antigo morador da Comissão do Prenda, hoje Sagrada Esperança, zona fronteiriça ao antigo bairro Américo Tomás, que acompanhou muitas vezes de perto esses episódios. "Ninguém perdia a alegria de correr atrás de uma carrinha de caixa aberta que aspergia uma gorda e apetitosa nuvem de DDT para matar mosquitos. As viaturas que faziam esse tipo de trabalho  pertenciam à empresa de distribuição e venda de combustível  SACOR”.

Segundo o nosso interlocutor, o carro do fumo não circulava apenas nos bairros da elite, onde residia a população de raça branca. Também iam desinfestar os musseques.  "No quesito desinfestação o colonialista português teve uma acção de inclusão. O paludismo, a partir dos anos 1970, começou a ser mesmo combatido a sério”, afirma Soares André Luís "Rito”.
A antiga SACOR, que procedia à desinfestação, note-se, foi a primeira empresa portuguesa a dominar todo o processo de importação, transporte, refinação e distribuição dos produtos petrolíferos. Foi fundada em 28 de Junho de 1937 por dois cidadãos romenos radicados em França, Martin Sain e Sando  Garrian,  que acabariam por se instalar em Portugal.

O lendário Laboratório de Engenharia de Angola
O Laboratório de Engenharia de Angola, projectado nos anos 1960 pelo arquitecto português Vasco Vieira da Costa e construído no mesmo ano, tornou-se na "coqueluche” do bairro Cassenda. Essa magnífica infra-estrutura de apoio ao ramo da construção civil, e não só, foi durante muito tempo uma das referências obrigatórias da circunscrição e além fronteiras.
Localizada junto ao antigo musseque Prenda, a edificação dessa infra-estrutura de betão armado e fibrocimento (pavilhões)   teve como objectivo não só organizar a cidade do asfalto mas também promover o desenvolvimento consolidado.
OLEA destaca-se no musseque com um conjunto de grande dimensão, definido por eixos ortogonais e espaços verdes  distribuídos entre pavilhões. Na época, de acordo com o projetista Vasco Vieira da Costa, era clara a intenção de se criar uma hierarquia de percursos quer viário quer pedonal, associada à concepção de pequenas praças que contribuíssem para a reestruturação do conjunto. As clareiras  de águas pluviais foram integradas neste sistema acompanhando os caminhos pedonais, e assim desenhando o espaço público.
A entrada faz-se pela rua do Laboratório especialmente traçada para aceder aos equipamentos e aos cerca de sete hectares livres de restrições e que  libertaram, aparentemente, o arquitecto de limitações na implementação do edifício.
Na Memória Descritiva do projecto o arquitecto explica, detalhadamente, como a topografia do terreno foi um dos factores determinantes na implantação dos vários pavilhões que albergam os laboratórios.
A propósito dos pavilhões de Geotecnia (A), Estradas e Aeródromos (B) e Edificios e Estruturas (C), o arquitecto refere que se defendeu a necessidade de se manter o pavimento à mesma  cota do terreno.
Os três pavilhões situam-se no extremo norte do edifício, com 30 metros de intervalo entre eles, e são coroados pelas oficinas e pelo pavilhão de materiais de construção implantados num eixo perpendicular.
Projectar  de acordo com o clima foi um dos aspectos centrais na obra de Vasco Vieira da Costa, o que é reafirmado na Memória Descritiva, uma vez que a preocupação com a organização dependeu, principalmente, do estudo  judicioso e da necessidade de atenuar os inconvenientes resultantes da incorreta orientação a que a topografia do terreno conduziu.
Nesse quesito, Vasco Vieira da Costa tirou proveito da exposição de uma das fachadas de maior desenvolvimento aos ventos predominantes de Sudoeste, criando condições para que todos os espaços de trabalho fossem ventilados transversalmente, de modo a evitar qualquer tipo de ventilação mecânica.

Triste cenário actual
Com a proclamação da independência e o consequente nascimento da República Popular de  Angola, o Governo decidiu prestar maior atenção ao bairro,  que sofreu uma  requalificacão. Com outra imagem  e visual,  fruto da requalificação, o bairro Cassenda, o da elite, foi a partir dos anos 1990 "invadido” por cidadãos do Oeste de África à semelhança do Mártires de Kifangondo, o antigo bairro Salazar.
Devido à proximidade ao Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro, o bairro,  num ápice, transformou-se num local apetecível de comércio informal e de negócios "escuros” e de alto padrão, como soe dizer-se. Assim, nos dias de hoje, são notórias as cantinas dos famosos "mamadus” em cada esquina.
A circunscrição no pós-independência ganhou novas infra-estuturas e mudou de figurino. Estamos a falar dos blocos de apartamentos construídos por empresas cubanas defronte à  Força Aérea Nacional e ao Terminal Aéreo Militar, bem como dos blocos adjacentes à rotunda da avenida Hochi Min.
Os antigos prédios erguidos no tempo colonial e que sempre foram  considerados cartão de visitas para quem chegasse de avião encontram-se, nos dias de hoje, cansados, fruto da má utilização por parte dos utentes e da falta de manutenção. Desde a sua construção nos anos 1960, de acordo com relatos de alguns antigos moradores, os edifícios nunca sofreram manutenção, razão pela qual carecem, urgentemente, de profunda reabilitação, sob pena de consequências irremediáveis. As escadas deste prédios são escuras, já não possuem corrimãos, os elevadores não funcionam e os moradores são obrigados a carregar água aos bidons escadas acima pois há muitos anos este precioso líquido deixou de jorrar nas torneiras. As áreas de alvenaria foram alteradas com a construção de novas estruturas, os espaços de lazer para crianças estão cheios de água paradas e os esgotos totalmente entupidos.
O péssimo estado em que se encontram esses edifícios "prospera” ante  o olhar silencioso e quiçá cúmplice das autoridades.
Vários apartamentos, alguns dos quais coabitados por duas ou três famílias, mudaram de figurino, com a construção de novos compartimentos.  O arrendamento de apartamentos a expatriados está na ordem do dia. "É um negócio lucrativo. A procura é enorme e assutadora”, diz Suzana Inácio, antiga moradora de um dos icónicos edifícios que já foram cartão de visitas do Cassenda e de Luanda.
Outra dor de cabeça que sentem os moradores conscienciosos do Cassenda está relacionada com os espaços baldios que os colonos reservaram para a construção de quadras multiuso e parques de lazer e de estacionamento de viaturas, que foram invadidos e ocupados por  novas edificações.
As próprias vivendas foram de tal modo alteradas, algumas transformadas em edifícios de um ou mais andares e os quintais com muros altos, que os antigos proprietários e os próprios arquitectos seriam incapazes de as reconhecer.

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