*
A circulação de veículos na zona do Hogiwa, um importante nó rodoviário na EN 100, a cerca de 70 quilómetros da vila de Porto Amboim, província do Cuanza - Sul, continua a ser feita sob graves restrições, com muitas viaturas, sobretudo as pequenas, a não conseguirem a travessia.
O antigo bairro Américo Tomás, hoje designado Cassenda, era considerado, durante os anos 60, zona de elite. A circunscrição, que também já se chamou Posto Belas, era de se lhe tirar o chapéu devido à sua posição geográfica privilegiada, e não só. Os seus moradores tinham o ensejo de ver de perto, através das janelas e varandas, as aeronaves que descolavam e aterrizavam nas pistas do aeroporto António Craveiro Lopes. Foi nessa infra-estrutura aeroportuária onde, em 1973, aterrou o avião Concorde. Naquela época nenhum aeroporto de Lisboa, a capital da Metrópole, tinha condições de aterrizagem daquele gigante do ar. Tal era o desenvolvimento de Angola. Foram bons momentos, segundo relatam moradores que vivenciaram essese outros episódios inesquecíveis
Durante
a projecção do bairro foram traçadas duas ruas principais, nomeadamente a rua
direita do aeroporto, que desembocava na zona da antiga Base Aérea nº 9 da
Força Aérea Portuguesa, na hoje designada Avenida 21 de Janeiro e a Rua 14, que
faz fronteira com o Laboratório de Engenharia de Angola (LEA) e a Comissão do
Prenda (actual Sagrada Esperança).
Era
nessa importante infra-estrutura rodoviária, então de terra batida e que dá
acesso ao bairro da Samba - Rua 14 ou do Laboratório de Engenharia - que naquele
tempo circulavam os autocarros 29 e 46.
O primeiro partia da Baixa de Luanda,
nas imediações da fábrica de gasosa Mission e Quick - actual sede da CNE nos
Coqueiros, e tinha como término a Comissão do Bairro Prenda, defronte ao Centro
Espírito Santo, ligado à Paróquia de São Pedro Apóstolo.
Já o
autocarro 46, no pós-independência, partia do Centro Espírito Santo da Paróquia
de São Pedro Apóstolo, no final da Comissão do Prenda, subia pela actual Rua do
Felício, passava pela Rua 14 e tinha como término o bairro da Kinanga, no local
onde foi construído o Memorial Dr. António Agostinho Neto.
A
Rua 14 começava na esquina da Comissão do Prenda, passava em frente ao
Laboratório de Engenharia de Angola e terminava no espaço onde foi construída a
passagem superior do Prenda, para quem se dirige ao Aeroporto Internacional 4
de Fevereiro.A circulação, naquela época, era feita em terra batida e em
sentido inverso ao actual: ao subir podia-se passar em frente ao LEA e alcançar a Avenida Lisboa (actual Revolução
de Outubro), ao passo que hoje tem apenas um sentido, passando pela
Administração Municipal da Maianga (ex- Posto Belas) para atingir a estrada
principal, a antiga Avenida Lisboa.
A
ex-Avenida Lisboa, que nasce no Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro e serpenteia
até ao Largo da Maianga, sempre foi considerada uma via estratégica para circulação do Norte para o Centro da cidade.
Deste ponto de intercepção (Largo da Maianga) passando pelo Largo Serpa Pinto,
seguindo em direcção a Mutamba e terminando na Avenida Marginal, essa rua no tempo colonial chamava-sePereira
Forjaz. No pós-independência passou a chamar-se Amílcar Cabral, em homenagem ao
líder da luta de libertação nacional da Guiné-Bissau e Cabo Verde.
Voltando
ao bairro Américo Tomás, o actual Cassenda.
Para facilitar a mobilidade dentro do bairro e para desafogar o pequeno
movimento automóvel da época, foram traçadas e construídas as ruas número 2, 3,
4, 5, 6, 7, 8, 9,10, 11, 12, 13, 15, 24 e as posteriormente designadasSagrada
Esperança e Unidade e Luta, e as travessas 3, 7, 9 e 12.
Esse
modelo de urbanização consolidada e sem labirintos facilitou, no tempo
colonial, o trabalho dos agentes policiais e da PIDE, que controlavam
milimetricamente as populações indígenas que viviam nas imediações do bairro.Há relatos, por exemplo, de antigos
moradores segundo os quais os famosos agentes da PIDE Galo e Cabo Russo, comas
suas viaturas Jeep rusgavam a zona para
prender os "turras” que encontravam refúgio em casa dos seus padrinhos e
patrões europeus. Foram
momentosmemoráveis e de terror, segundo conta Kindala Kalamina, um antigo
morador que frequentava, com regularidade, a zona adjacente aocolégio Monte
Sol, onde viviaoseu padrinho de baptismo Lopes Joaquim, oriundo do Algarve,
região do extremo Sul de Portugal conhecida pelas praias mediterrânicas e pelos
resorts e campos de golfe.
Fernando
Pereira Silva, um português que viveu
neste bairro nos anos 60, e que em 1974 comprou a sua casa deixando de
pagar a renda no ano seguinte, afirma que "Américo Tomás era um bairro que
naquele tempo já era comparado a zonas da Grande Metrópole como Cascais,
Odivelas, Sintra, entre outros”.
Aos
78 anos de idade Fernando Silva, proveniente do Distrito de Bragança, região de
Trás-os-Montes, recorda com certa nostalgia que foi durante as confrontações
armadas entre os três movimentos de libertação, em 1975, que "fugiu” de Luanda
com a família deixando a sua casa toda ela mobilada e embarcando para Portugal,
onde começaria uma nova vida.
Rui
Branco Silva, algarvio de gema, diz ter vivido durante aquele período
(colonial) no Prenda, no limite com o Américo Tomás, perto da antiga Clínica Veterinaria e do CaféKissange. "O
bairro já era considerado umex-librisda zona”, disse.
Hermínia
Parenta, também antiga moradora, diz que notempo coloniala construção era
ordenada e de bom gosto e não havia barracas à semelhança do que acontecia nos
bairros periféricos considerados musseques.
Os
moradores que habitavam nos prédios tinham o privilégio de contemplar as
aterrizagens dos aviões, que, na sua maioria, eram provenientes do outro lado
do Atlântico. "O momento era aproveitado
para fazer fotos de recordação”, como contou Herculano Reis, morador do prédio número 40.
"Era
do terceiro andar para cima destes prédios que nós observávamos os aviões da
TAP, os DC-30 da Força Aérea Portuguesa e de outras companhias aéreas a
descolarem e a aterrarem com certa
regularidade. Nós fazíamos fotos e muito mais”, disse Manuel Bandeira, antigo
morador.
Manuel
Bandeira contou ainda que, uma vez, quando viajou para a Metrópole (Portugal) teve o ensejo de se
sentar junto a janela da aeronave e pôde contemplar a paisagem de fora, ver o
prédio onde residia, e, inclusive, o seu apartamento e fazer um adeus aos
familiares que acenavam da varanda, tudo isso numa acção combinada.
Manuel
Bandeira revelou ter na memória o registo dos momentos ímpares dos dias da
ponte área que aconteceu em 1975, quando milhares de portugueses (seus
conterrâneos) em desespero abandonaram a vida em Angola, numa das maiores
operações mundiais de resgate de cidadãos civis.
"Foi
a partir do quinto andar do meu apartamento que eu fotografei as aeronaves da TAP e de outras
companhias aéreas que transportavam os que embarcavam na ponte aérea,
provenientes das cidades e dos confins de Angola”, disse.
Mas,
diga-se, naqueles dias de desespero, em que muitos optaram por fugir da
instabilidade e da guerra civil, nem todos os portugueses se foram embora.
Alguns mantiveram-se no país. Muitos dos
que partiram eram portugueses mas nunca haviam estado em Portugal. Alguns, que
tinham "afilhados” negros, deixaram as
suas residências e os seus bens com estes. No geral, as residências do bairro
Américo Tomás foram saqueadas e ocupadas abruptamente pela população autóctone
da periferia. Umas quantas casas foram
transformadas em bases dos pioneiros guerrilheiros.
Os primórdios do bairro
Segundo
relatos de antigos moradores, o nome Cassenda foi atribuído ao bairro em
homenagem a uma mulher chamada Cassenda, proveniente da região da Kibala,
província do Cuanza-Sul e que se instalou na zona nos primórdios dos anos 1930,tornando-se na
primeira moradora.
Na
época o local era uma mata com vegetação alta, árvores e arbustos de "piteiras”
(tabaibos). Dona Cassenda construiu a sua cubata de pau-a-pique e dedicou-se à
pequena agricultura de subsistência.
No
princípio dos anos 1940Dona Cassenda convidou alguns dos seus conterrâneos que
viviam na Kibala, Calulo e nos arredores da antiga cidade de Novo Redondo,
actual Sumbe, a viajarem para Luanda e se instalarem no local onde ela residia,
com o intuito de povoarem a área. É assim que num ápice o local foi "invadido”
por populares provenientes daquelas localidades.
Naquele
época ainda não havia a estrada asfaltada que separava o Cassenda da Elite
(Américo Tomás) da parte que passou a ser designada Musseque Cassenda, que fica
ao lado do Laboratório de Engenharia. Era uma zona única, livre, em que as
populações andavam de um lado para o outro.
Se
até ao início da década de 1950 as populações que se instalaram na zona eram, fundamentalmente, oriundas do
Cuanza-Sul, posteriomente começaram a surgir gentes provenientes de Malanje,
Catete, Caxito e Ndalatando.
Fruto
desta avalanche populacional a circunscrição passou, durante muito tempo, a ser
chamada Musseque Cassenda, por causa das casas que eram construídas, na sua
maioria, com chapas de tambor,
pau-a-pique e madeira, à semelhança das do bairro Catambor.
"Aquele
era o primeiro bairro Cassenda, do tempo colonial. O outro, próximo do
aeroporto, ainda não existia, era apenas um enorme matagal”, conta Avelino
Máquina, antigo morador originário de Calulo, município do Libolo e que se
instalou no Cassenda nos finais dos anos 1950.
O
bairro baptizado Musseque Cassenda surgiu num local onde existe, até aos dias
de hoje, uma frondosa mulembeira, na área adjacente à antiga loja do
comerciante português Carvalho, figura lendária na circunscrição, cuja esposa
chamava-se dona Fêmia. Essa casa
comercial no pós-independência viria a
chamar-se Casa Bumba, que depois deu lugar ao supermercado Shoprite - passe a publicidade.
Posto Belas versus Cassenda
António
Sete, 84 anos, natural da Kibala, instalou-se no Cassenda nos anos 1940. Ele dá a conhecer que o
Cassenda era também conhecido por Posto Belas, pelo facto da Administração
Colonial funcionar ali perto, por detrás do Laboratório de Engenharia de
Angola.
"Cassenda
ou Posto Belas era a mesma coisa, razão pela qual não havia muita confusão ou
diferença por parte da população. É assim que quando alguém dissesse ‘vou ao Posto Belas’ ficava logo
subentendido que ia ao Cassendaou vice-versa”, frisou António Sete.
O
ancião sublinhou que Posto Belas referia-se sobretudo "àquele Cassenda que se
desenvolveu muito rapidamente pelo facto da administração colonial ter aí
construido casas de alto padrão”.
Proveniente
da aldeia de Cabezo, município da Kibala, António Sete recorda que veio a Luanda a convite do seu irmão mais
velho Domingos Evaristo Sete, já falecido e que se encontrava a residir no musseque Cassenda na área adjacente à zona
do Manuel Praia.
"O
meu irmão mais velho, na época, já era muito conhecido nas lides desportivas,
pelo facto de ser um dos mais altos dirigentes da equipa de futebol local, o
Sporting da Kibala. Isso ajudou a minha inserção no bairro. Ele também era o
responsável pela manutenção do recinto
de jogo que se situava em frente a Igreja Metodista do Prenda, por detrás do
Lote 22”.
Ainda
segundo o nosso interlocutor, "naquele recinto de jogos, nos anos 60, sob sol
abrasador, se registaram grandes trumunos e derbys, entre os quais se
destacavam Sporting da Kibala-Las Palmas e 11 Bravos da Samba-Sporting da
Gabela. No decorrer dos jogos, quando uma das equipas marcasse golo, os adeptos
saltavam e gritavam em delírio”.
Naquele
tempo no musseque Cassenda, ainda no dizer da nossa fonte, as casas eram
construídas ànoite, em tempo record, "senão arranjavas problemas sérios com o
colono e ainda por cima pagavas multa”.
António
Sete diz que havia muita rigorosidade em termos de fiscalização e todo o
cidadão que fosse surpreendido a construir
sem autorização para além da multa era de imediato detido. "E mesmo nós, quando
viéssemos dos kimbos e fóssemos apanhados na rua éramos levados para as casas
dos brancos para trabalharmos como criados”, disse.
Contou
que um dia desses, quando foi à loja do senhor Cunha beber um copo de vinho
teve que se esconder no quintal do lojista para não ser detido e levado para
ser criado(empregado doméstico).
"Como
nem sempre a sorte está connosco, um
dia andava distraidamente e em plena rua
fui ‘agarrado’ pelos polícias e posteriormente levado e colocado a trabalhar
como criado em casa do senhor Albano
César, antigo director-geral do Liceu Nacional Salvador Correia”.
António
Sete dá a conhecer que os trabalhos prestados como criado eram grátis, sem
qualquer remuneração financeira, razão pela qual muitos autóctones nessa
condição fugiam para parte incerta, com maior incidência para as respectivas
aldeias de origem.
Musseque Cassenda
Maria Pedro, 78 anos de idade, 50 dos quais como moradora, diz que no tempo colonial
o Musseque Cassenda "já era respeitado porque nele vivia gente assimilada”.
"Naquele
época (anos 1960) a zona tinha sido ocupada por poucas pessoas e as suas casas
de madeira e pau-a-pique eram construídas com traços bem definidos, tinham
qualidade. E as ruas possibilitavam que a circulação rodoviária se fizesse sem constragimento”, conta Maria Pedro .
No
período pós-independência esse cenário
mudou de figurino e o bairro ficou transformado num labirinto. Hoje não é
possível circular comodamente pela área adentro, explica a anciã.
Para
além da velha Cassenda viviam inicialmente no que viria a chamar-se Musseque
Cassenda a velha Chica Graciano, Maria Safa, mulher do kota Jaburu, Isabel
Preta, esposa do Mário que era filho do senhor Carvalho, Domingos Sete, tio do
falecido Domingos Bumba, entre outras figuras emblemáticas da circunscrição.
No
tempo colonial toda aquela zona adjacente onde hoje estão a concessionária
Lusolanda, os prédios Libertação Total para África e dos soviéticos, e a rua
das Mangueirinhas, era arenosa e verdejante com
cajueiros. Essa parte do musseque Cassenda era uma zona verdejante com vista privilegiada para a
antiga Avenida Lisboa, actual Revolução de Outubro, e que tinha como
referência, do outro lado da avenida, o campo do Clube Desportivo Universitário
de Angola (CDUA), onde, nas décadas de 1970 e 1980, desfilaram grandes estrelas
do hóquei em patins, o lendário árbitro Marinho bem como figuras memoráveis do
basquetebol angolano. Das estrelas do
hóquei em patins que brilharam no CDUA destacam-se o Fragata, Damásio dos
Santos Júnior "Kaisara”, Julião, Bulica, Inácio Santos "Mama”, Kamão, Domingos
Muhongo "Mingo Mucotó”, Manuel dos Santos "Né”, Nelson Amado "Sony”, entre
outros.
Devido
à sua proximidade com a Avenida Lisboa,
foram construídas infra-estruturas comerciais de raiz no musseque Cassenda,
como a Casa Lusolanda, concessionária
das viaturas Suzuki, e muitas outras estruturas.
Mas
nem tudo, no tempo colonial, era um mar
de rosas. No coração do bairro assistiu-se à construção desordenada de casas, o
que deixou a zona com apenas três ruas
de alvenaria, nomeadamente a das Mangueiras, a do Prédio dos Sovieticos, que
hoje dá acesso ao edifício da Logitécnica, e outra que passa por detrás da
concessionária Lusolanda. Esta última rua,
com ou sem chuva, ficava permanentemente num estado lastimável, molhada
e com lama à mistura. Essa situação
tornava-a intransitável. A falta de
esgotos ou saneamento básico fazia com que os moradores lançassem as águas
residuais para a rua.
A má
concepção urbanística está na origem dos males que até hoje
afectam aquela zona do Cassenda, quer em termos de saneamento básico,
quer de mobilidade rodoviária.
Nos
anos 1970, a circunscrição viu "nascer”
uma grande infra-estrutura habitacional,
o prédio que depois da independência ficou conhecido como "Libertação
Total para África”.
O mítico Balão do Meio-Dia
O
Cassenda possuía importantes infra-estruturas, com destaque para o Laboratório
de Engenharia de Angola, onde posteriormente também funcionou, provisoriamente,
a Companhia de Transmissões do Exército Colonial Português, bem como uma
estrutura do Centro de Meteorologia de Angola, que servia de apoio às operações
no aeroporto Craveiro Lopes. Todos os santos dias, ao meio-dia, esse Centro
lançava um balão para situar a hora e o
período do dia. É assim que os moradores
o apelidaram "Balão do Meio-Dia”. Quando
quisessem ter noção do tempo, naquele período, as pessoas baseavam-se no
lançamento do Balão do Meio-Dia. Os
adolescentes que se dirigiam às "explicações estudantis” improvisadas em
quintais, corriam euforicamente para ver de perto o Balão do Meio-Dia, que era
de cor branca.
O
balão atraía muita gente e também era visto pelos moradores dos bairros
circundantes, nomeadamente Prenda, Samba, Maianga e outros. O objecto
"flutuante” depois de lançado fazia o seguinte trajecto: passava por cima do
aeroporto Craveiro Lopes, prosseguia em direcção ao bairro Cassequel, Golfe,
Viana e continuava até desaparecer de vista lá para os lados de Catete. Havia
adolescentes curiosos que, nas suas brincadeiras, se dirigiam à "estação de
meteorologia” e lançavam os seus papagaios para ver se alcançassem o balão do meio-dia. Claro que as
tentativas dos petizes redundavam em fracasso...
Para
além das infra-estruturas acima mencionadas, havia também o supermercado
Dia-a-Dia, o restaurante-bar Sol do Oriente, o Colégio Monte Sol e a loja
do senhor Careca, um português que se
notabilizou na época.
Em
frente a essa loja do comerciante Careca havia um campo de futebol, onde, nos
finais de semana, os moradores disputavam partidas renhidas sob o sol ardente.
Antes
do 25 de Abril, o bairro Américo Tomás, referimo-nos à parte elitizada, era de
acesso "condicionado” aos cidadãos de
raça negra. Esses quando se dirigiam para a circunscrição apresentavam-se como
criados, biscateiros ou afilhados de
baptismo de cidadãos de raça branca, sob pena de serem presos a qualquer
momento.
Havia
situações em que, quando um agente da PIDE apanhasse um autóctone, esse tinha como
obrigação indicar a residência onde trabalhava ou justificar os motivos que o
levavam a estar naquela zona.
Em
termos de diversão o bairro era bastante pobre. Não tinha nada de atracção, é
assim que os seus moradores tinham de atravessar a Avenida Lisboa e
dirigirem-se ao antigo bairro Salazar onde existiam discotecas e os carrosséis
que eram montados nos finais de semana.
Os
moradores do Cassenda davam-se ao luxo de se dirigir até a área defronte ao
colégio do IASA, no Prenda, para
assistirem ao Kutonoca ou apreciarem filmes no
cinema volante, no largo próximo
à Paróquia de São Pedro Apóstolo.
Em
suma, os moradores do antigo bairro Américo Tomás não tinham, por assim dizer, muitas opções de diversão. Por
essa razão "invadiam” o musseque Prenda,
e não só, para saciarem a ânsia de lazer.
Compão e a reportagem de
Charulla de Azevedo
Em
1965 a administração colonial portuguesa, com o intuito de acomodar alguns dos
seus funcionários, escolheu um terreno próximo ao Laboratório de Engenharia de
Angola, onde construiu casas em formato de "comboio”. Era um espaço
privilegiado que passou a chamar-se Compão. Constituídas por dois quartos,
sala, cozinha, quarto de banho e um vasto quintal, essas residências foram
entregues a pessoas assimilada de profunda confiança.
No
Compão também foi construído um balneário público, bem como um campo multiuso.
Moradores que residiam próximo ao Compão relataram que ali passaram também a
morar uns quantos "bufos”, informadores da PIDE, misturados numa simbiose com
os funcionários da Câmara Municipal que pertenciam ao Posto Belas.
Foi
nessa área do Cassenda onde, em 1970, a emblemática revista "Notícia”, através
da pena refinada do seu fundador, o jornalista João Charulla de Azevedo,
publicou uma grande reportagem sobre o "modus vivendi” da população e o
trabalho dos informadores disfarçados da PIDE, que ali residiam. Na reportagem
o articulista contava, sem receio e detalhadamente, o "modus operandi” da
polícia secreta, bem como narrava o quotidano e as aventuras de alguns dos seus
moradores.
O
escriba entrevistou vários moradores, dentre os quais se destacavam o menino
Contreiras, de 15 anos, natural de Malanje, que foi apanhado de surpresa e
fotografado quando andava debaixo das acácias a tentar caçar um "rabo de junco”
para saciar a fome. A reportagem abordava também problemas relacionados com a
situação das zonas adjacentes ao bairro, bem como as buscas e detenções de que
os autóctones eram alvo por parte da
PIDE.
A
reportagem de Charulla de Azevedo sobre o Compão "ganhou”manchete narevista semanal "Notícia” e teve bastante
repercussão tanto em Luanda como nas demais províncias ultramarinas
portuguesas.
João
Charulla de Azevedo foi, inegavelmente, uma das figuras políticas mas
discutidas na colónia portuguesa de Angola, na década de 1960. Jornalista
possuidor de um estilo directo e de certa maneira de "falar” com o leitor, os
seus escritos eram sempre carregados de intenção. Tivesse razão ou não, era
sempre convincente. Arrastava a opinão pública atrás de si. Mas nunca se
recusou a reconhecer um erro. Nunca hesitou em rectificar, com sinceridade,
posições erradas.
Não
foi perfeito. Nem infalivel. Mas foi certamente um dos mais distintos e combativos jornalistas de Portugal, que
veio a falecer prematuramente aos 34 anos de idade, em 1967.
Soares
André Luís "Rito” diz que se recorda da revista "Notícia” e da edição que tinha
como manchete o Compão. Mas, o que mais
o marcou naquele tempo era, segundo ele, quando em companhia dos seus amigos
saltava o muro do Laboratório de Engenharia para ir buscar (roubar) mangas e
cajus.
Loja do senhor Carvalho
No
tempo colonial no musseque Cassenda existia uma loja, próximo à entrada do
Laboratório de Engenheria, que era muito concorrida e cujo proprietário era o
português Aníbal de Carvalho, mais conhecido por senhor Carvalho, esposo da
Dona Fêmea. O estabelecimento comercial apresentava-se recheado de produtos
básicos e era bastante frequentado pelos moradores das redondezas, muitos dos
quais se beneficiavam dos fiados (kilápis/créditos).
Nascido
na Freguesia de Antas, região de Viana do Castelo, Portugal, o senhor Carvalho
tinha uma "mão benevolente”. Ajudava os cidadãos humildes que se dirigiam à sua loja com o
intuito de solicitar um fiado, que devia ser pago no final de cada mês. Apesar
de algum "racismo à mistura”, o comerciante prestava os favores que lhe eram
solicitados pelos moradores, que o tinham quase como um "Deus”. A loja tornou-se numa referência obrigatória no
bairro. O senhor Carvalho era também proprietário de outros estabelecimentos
comerciais espalhados por Luanda: Flor
do Prenda, Farmácia ao Lado, edificio do Granada e Agência de Viagens Expresso. As suas propriedades incluía numa parte dos
Armazéns Mulembeira, situado no bairro do Catambor, e moradias espalhadas por
alguns musseques de Luanda.
Judith
Bumba, esposa do falecido Domingos Bumba, ambos afilhados de casamento do senhor Carvalho e de dona Fêmea, diz
que estes entregaram-lhes a famosa "loja
do senhor Carvalho” quando em 1975
embarcaram na ponte aérea para Portugal.
A nossa interlocutora disse que o património deixado pelos padrinhos não
lhes foi entregue de mão beijada, sublinhando que envolveu alguns valores para
que tivessem acesso àquele estabelecimento comercial, "que de loja pequena foi
transformada numa loja gigante”.
Para
além desta loja, de acordo com Judith Bumba, os padrinhos deixaram outros
estabelecimentos que "acabaram por se perder por causa da ganância de certas
pessoas”.
"Estamos
a trabalhar afincadamente com os tribunais para ver se conseguimos recuperar
outros imóveis deixados pelos nossos padrinhos e que nos foram atribuídos”,
garante Judith Bumba.
O
Jornal de Angola apurou que os netos do senhor Carvalho e da dona Fêmea,
nomeadamente Calucha e Pilito, só para citar estes, actualmente vivem,
juntamente com a sua mãe dona Fernanda, no edifício Flor do Prenda.
Mas no Cassenda da elite
existiam outros comerciantes portugueses, como foram os casos dos senhores
Cunha, Gil, António Bessa, Pinto, Dona Maria, esposa do senhor Joaquim e os
proprietários da loja das Montanhas, que ficava situada numa pequena montanha
que existia no bairro, naquele tempo, segundo contou Dona Nené, irmã menor de
Dona de Fernanda.
Segundo
o nosso interlocutor, o carro do fumo não circulava apenas nos bairros da
elite, onde residia a população de raça branca. Também iam desinfestar os
musseques. "No quesito desinfestação o
colonialista português teve uma acção de inclusão. O paludismo, a partir dos
anos 1970, começou a ser mesmo combatido a sério”, afirma Soares André Luís
"Rito”.
A
antiga SACOR, que procedia à desinfestação, note-se, foi a primeira empresa
portuguesa a dominar todo o processo de importação, transporte, refinação e
distribuição dos produtos petrolíferos. Foi fundada em 28 de Junho de 1937 por
dois cidadãos romenos radicados em França, Martin Sain e Sando Garrian,
que acabariam por se instalar em Portugal.
O lendário Laboratório de
Engenharia de Angola
O
Laboratório de Engenharia de Angola, projectado nos anos 1960 pelo arquitecto
português Vasco Vieira da Costa e construído no mesmo ano, tornou-se na
"coqueluche” do bairro Cassenda. Essa magnífica infra-estrutura de apoio ao
ramo da construção civil, e não só, foi durante muito tempo uma das referências
obrigatórias da circunscrição e além fronteiras.
Localizada
junto ao antigo musseque Prenda, a edificação dessa infra-estrutura de betão
armado e fibrocimento (pavilhões) teve
como objectivo não só organizar a cidade do asfalto mas também promover o
desenvolvimento consolidado.
OLEA
destaca-se no musseque com um conjunto de grande dimensão, definido por eixos
ortogonais e espaços verdes distribuídos
entre pavilhões. Na época, de acordo com o projetista Vasco Vieira da Costa,
era clara a intenção de se criar uma hierarquia de percursos quer viário quer
pedonal, associada à concepção de pequenas praças que contribuíssem para a
reestruturação do conjunto. As clareiras
de águas pluviais foram integradas neste sistema acompanhando os
caminhos pedonais, e assim desenhando o espaço público.
A
entrada faz-se pela rua do Laboratório especialmente traçada para aceder aos
equipamentos e aos cerca de sete hectares livres de restrições e que libertaram, aparentemente, o arquitecto de
limitações na implementação do edifício.
Na
Memória Descritiva do projecto o arquitecto explica, detalhadamente, como a
topografia do terreno foi um dos factores determinantes na implantação dos
vários pavilhões que albergam os laboratórios.
A
propósito dos pavilhões de Geotecnia (A), Estradas e Aeródromos (B) e Edificios
e Estruturas (C), o arquitecto refere que se defendeu a necessidade de se
manter o pavimento à mesma cota do
terreno.
Os
três pavilhões situam-se no extremo norte do edifício, com 30 metros de
intervalo entre eles, e são coroados pelas oficinas e pelo pavilhão de
materiais de construção implantados num eixo perpendicular.
Projectar de acordo com o clima foi um dos aspectos
centrais na obra de Vasco Vieira da Costa, o que é reafirmado na Memória
Descritiva, uma vez que a preocupação com a organização dependeu,
principalmente, do estudo judicioso e da
necessidade de atenuar os inconvenientes resultantes da incorreta orientação a
que a topografia do terreno conduziu.
Nesse
quesito, Vasco Vieira da Costa tirou proveito da exposição de uma das fachadas
de maior desenvolvimento aos ventos predominantes de Sudoeste, criando
condições para que todos os espaços de trabalho fossem ventilados
transversalmente, de modo a evitar qualquer tipo de ventilação mecânica.
Triste
cenário actual
Com
a proclamação da independência e o consequente nascimento da República Popular
de Angola, o Governo decidiu prestar
maior atenção ao bairro, que sofreu uma requalificacão. Com outra imagem e visual,
fruto da requalificação, o bairro Cassenda, o da elite, foi a partir dos
anos 1990 "invadido” por cidadãos do Oeste de África à semelhança do Mártires
de Kifangondo, o antigo bairro Salazar.
Devido
à proximidade ao Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro, o bairro, num ápice, transformou-se num local apetecível
de comércio informal e de negócios "escuros” e de alto padrão, como soe
dizer-se. Assim, nos dias de hoje, são notórias as cantinas dos famosos
"mamadus” em cada esquina.
A
circunscrição no pós-independência ganhou novas infra-estuturas e mudou de
figurino. Estamos a falar dos blocos de apartamentos construídos por empresas
cubanas defronte à Força Aérea Nacional
e ao Terminal Aéreo Militar, bem como dos blocos adjacentes à rotunda da
avenida Hochi Min.
Os
antigos prédios erguidos no tempo colonial e que sempre foram considerados cartão de visitas para quem
chegasse de avião encontram-se, nos dias de hoje, cansados, fruto da má
utilização por parte dos utentes e da falta de manutenção. Desde a sua construção
nos anos 1960, de acordo com relatos de alguns antigos moradores, os edifícios
nunca sofreram manutenção, razão pela qual carecem, urgentemente, de profunda
reabilitação, sob pena de consequências irremediáveis. As escadas deste prédios
são escuras, já não possuem corrimãos, os elevadores não funcionam e os
moradores são obrigados a carregar água aos bidons escadas acima pois há muitos
anos este precioso líquido deixou de jorrar nas torneiras. As áreas de
alvenaria foram alteradas com a construção de novas estruturas, os espaços de
lazer para crianças estão cheios de água paradas e os esgotos totalmente
entupidos.
O
péssimo estado em que se encontram esses edifícios "prospera” ante o olhar silencioso e quiçá cúmplice das
autoridades.
Vários
apartamentos, alguns dos quais coabitados por duas ou três famílias, mudaram de
figurino, com a construção de novos compartimentos. O arrendamento de apartamentos a expatriados
está na ordem do dia. "É um negócio lucrativo. A procura é enorme e
assutadora”, diz Suzana Inácio, antiga moradora de um dos icónicos edifícios
que já foram cartão de visitas do Cassenda e de Luanda.
Outra
dor de cabeça que sentem os moradores conscienciosos do Cassenda está
relacionada com os espaços baldios que os colonos reservaram para a construção
de quadras multiuso e parques de lazer e de estacionamento de viaturas, que
foram invadidos e ocupados por novas
edificações.
As próprias vivendas
foram de tal modo alteradas, algumas transformadas em edifícios de um ou mais
andares e os quintais com muros altos, que os antigos proprietários e os
próprios arquitectos seriam incapazes de as reconhecer.
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